A primeira república democrática do Oriente

Recapitulando, podemos dizer que Macau foi crescendo devagar. Antes de ter direito a ser cidade, foi bispado. Antes de ter bispado, viveu sem representante directo da coroa nem lei estadual. E é desse primitivo assentamento que vai surgindo a forma: a primeira cerca muralhada, uma Santa Casa da Misericórdia; um hospital; uma escola; uma fronteira simbólica. Só depois de um eclesiástico nomeado por Roma, é que foi emitido o primeiro magistrado pelo centro do aparelho de poder lisboeta. Só a partir de então é que o prévio governo local, com uma guarda de segurança, é reconhecido por Goa e Lisboa. E só depois da primeira obra impressa é que se institucionaliza a cidade, para logo surgir a primeira universidade.

É tudo um pouco mais vivo e, portanto, mais complexo do que duas ou três adjectivações de carácter preconceituadamente ideológico, dizendo como o meu amigo António Hespanha, que a organização de Macau foi o suporte dos desígnios autonomistas e centrípetos da oligarquia da cidade, que assim tendeu, pelo menos até finais do século XVIII, para a situação de "república mercantil". É que dizermos república mercantil tem o sabor dos principados italianos, das signoria, quando o que marca o estabelecimento é aquilo que o mesmo autor reconhece como autogoverno e pluralismo político.

Eis Macau, um processo ingenuamente democrático, de acordo com as mais íntimas, mais antigas e mais autênticas concepções portuguesas do poder político. Com aquilo que Jaime Cortesão imorredoiramente qualificou como os factores democráticos da formação de Portugal. A comunidade precedendo o governo, a assembleia que aparece antes do executivo, o concelho que precede a câmara, isto é, a adopção daquele princípio fundamental do processo democrático, segundo o qual o principado, ou governança, ser uma emanação da república, ou comunidade. Macau transformava-se assim naquilo que Almerindo Lessa qualifica como a primeira república democrática do Oriente.

De fora, colonialmente, só vêm o governador ou capitão (o militar) e o magistrado (o poder judicial). Por outras palavras, o distante poder central apenas a confirma e conforma aquilo a que localmente se dera matéria..

Antes de receber foral, a terra já passara de estabelecimento ou assentamento a povoação e desta categoria a cidade. Porque, primeiro, chegou a solidariedade horizontal da Misericórdia e do hospital e só depois se fixou a fronteira.

A pequena polis feita em nome da deusa, logo construiu uma igreja, primeiro de madeira e, depois, de pedra, confirmando-se assim o predomínio do animal de trocas sobre o animal de guerra.

Em suma: os portugueses nunca aqui chegaram por direito de conquista, como os textos do soberanismo absolutista tentaram justificar a posteriori. Como em 1547, reconhecia um funcionário chinês, Lam Hei-Yuen, os portugueses não invadiram as nossas fronteiras, não mataram a nossa gente, não nos roubaram e os chineses desejam comerciar com eles.

Aliás, nas relações com a China, os portugueses de Macau, como salienta o Padre Benjamim Videira Pires, no seu magnífico trabalho de 1988, Os Extremos Reconciliam-se, em vez da postura do antes quebrar que torcer, sempre tiveram uma política de flexibilidade como a do bambu, que dobra, mas não quebra, onde torcemos sem quebrar. Por exemplo, em 1573, quando levantámos as portas do Cerco, nunca tivemos nelas ameias guarnecidas com peças de artilharia nem outros fortes anteriores voltados para ela. As bocas dos canhões sempre estiveram voltadas para o mar, de onde poderiam vir os piratas e os salteadores, principalmente os nossos aliados cristãos e ocidentais...

Um processo democrático que foi, muitas vezes, objecto de incompreensões pelos que como tal se proclamavam em Lisboa, principalmente a partir de 1820, quando liberais e ultraliberais, confundindo tradicionalismo com absolutismo, trataram de usurpar a plurissecular autonomia das instituições locais de autogoverno, comprimindo a autonomia do Senado, substituindo as entidades eleitas por funcionários de nomeação e usando, quase exclusivamente do poder de um delegado militar do poder central, o governador, essa entidade que efectivamente estava ligada à qualificação que os chineses lhe davam de cabeça de soldados. Macau, que for a obra de comerciantes, navegadores, missionários, degredados e aventureiros, onde sempre faltaram os soldados, acabou por ser dominado, neste último século e meio, por oficiais graduados em políticos.

A partir do Marquês de Pombal e com os decretos de Joaquim António de Aguiar chegou a vaga do anticlericalismo, comprimindo e quase liquidando essa forma de extensão do poder português que era actuada pelas congregações religiosas, não faltando sequer que o poder lisboeta despachasse representantes das nossas associações secretas como delegados do poder central, que, brincando com o fogo das seitas chinesas do mesmo teor, quase conduziram ao desastre da nossa presença.

Não faltaram sequer, mais recentemente, alguns prosélitos portugueses de ideologias exóticas que tentaram um abandono em nome do internacionalismo, como se fosse possível ensinar o padre nosso ao vigário . Para vergonha da cabeça do Império, mas para bem do nome de Portugal,  valeu-nos a fidelidade, o sentido de honra e o respeito pelo princípio da continuidade das instituições históricas, manifestado por alguns filhos da terra e outros tantos chineses, bem como as excepções de alguns enviados de Lisboa, que conseguiram, apesar de tudo, vencer as tormentas do PREC e aquelas desditas corruptas da pós-revolução que procuraram em Macau algumas prebendas e outras tantas postas e postos para o sôfrego clientelismo dos detentores do poder lisboeta.