Macau
filipino
Mas é depois da morte oficial de D. Sebastião (1578), do
fim da dinastia de Aviz (1580) e das Cortes de Tomar (1581) que Macau vai
conformar-se, numa altura em que também aí chega o jesuíta italiano Matteo
Ricci (1582). Assim, em 1580, Lisboa, capital do reino de Portugal sob
administração da Casa de Áustria, sediada em Madrid, envia para Macau o
primeiro ouvidor, um magistrado
equivalente aos juízes de fora e aos corregedores.
Até então, o modelo de autogoverno era encabeçado
por um capitão de terra, assistido
por dois homens-bons, directamente
eleitos pelos moradores, triunvirato que estava dependente do capitão
mor da viagem para o Japão, ou da
viagem da China e do Japão, nos períodos em que este estacionava no local.
Recorde-se que o primeiro destes capitães foi Fernão Peres de Andrade, em
1517, sendo um cargo de provimento anual, que
durou até 1623. Saliente-se que o primeiro capitão de terra foi Diogo
Pereira, eleito em 1562, e que o cargo foi formalmente extinto em 1563, mas que
o mesmo continuou a exercer tal actividade até 1587.
Por outras palavras, entre as boas intenções
da lei estadual, executada pelas ordens vindas de Lisboa ou de Goa, e as práticas
locais, existia aquele casuísmo que manda adaptar os princípios às circunstâncias.
Violar alguns pormenores da lei ou levar a governança a praticar algumas
fraudes à mesma lei, pode não ser desrespeitar o direito, mas tão só admitir
outras fontes de direito, além do decreto estadual. E o que aconteceu nesse
Macau primitivo foi que o costume se tornou mais forte que o alvará régio, que
os estilos trataram de colmatar os
vazios de diplomas ditados à distância por quem desconhecia as realidades.
Mas é só em 1582 que Macau reconhece Filipe I
como rei de Portugal, com a condição da povoação poder servir como intermediária
nas relações com a China, em detrimento das Filipinas. Nesta imposição de
condições ao poder lisboeta, os moradores contaram com o apoio do Vice-rei de
Cantão que invocou a circunstância de só conhecer as autoridades portuguesas
e as assembleias de moradores do local.
E lá se demonstrava o facto da autonomia local
fazer um jogo complicado com o poder central, utilizando para o efeito alguns
conluios com as autoridades chinesas de Cantão, tal como estas utilizavam Macau
para ludibriarem certas ordens da Corte Imperial, nesse pluralismo onde a
autonomia emerge, muitas vezes, como forma de gestão de dependências,
utilizando o silêncio e o faz de conta
em vez do desrespeito frontal de uma ordem vinda de cima ou vinda de longe. Uma
ficção face à super-estrutura legal e à arquitectura do poder central, mas
que era uma efectiva verdade, sentida no terreno, e que acabou
por ser a mais eficaz garantia da nossa presença e a menos hipócrita
forma de cumprimento dos princípios.
Em 1583 o poder régio lisboeta, através do
seu representante em Goa, tenta conformar regimentalmente a força do
autogoverno dominante no local, pela criação de um Senado
de Macau e de uma guarda de segurança,
ao mesmo tempo que a povoação passa
à categoria de cidade. No ano
seguinte aperfeiçoa-se o modelo de Senado da Câmara, enquanto o governo
militar passa a depender do Vice-Rei da Índia. Contudo, os assuntos extraordinários
continuavam a ser decididos por um conselho
de homens bons, uma assembleia geral de moradores previamente convocada, No
Senado incluem-se dois juízes ordinários, três vereadores, um dos quais
fiscal do erário público, chamado Procurador
da Cidade. A instituição da governança em causa era presidida pelo Bispo
ou pelo Capitão de Terra, eleito
pelos habitantes, com a assistência do Ouvidor.
Destaca-se a figura do Procurador que, se em
1583, não passava de um simples vereador, com o pelouro das finanças, eleito
anualmente, assume, em 1584, as funções de intermediário nas relações da
cidade com as autoridades chinesas, núcleo a partir do qual passou a exercer as
funções de juiz nos pleitos entre cristãos e chineses. Isto é, o procurador
exercendo funções no âmbito das finanças, da justiça e das relações com a
China, comprimiu os poderes do ouvidor e, em meados do século XVIII, passou a
ter relações privilegiadas com o mandarim chinês, estabelecido em Macau desde
1736, fazendo um jogo duplo, dado que este mandarim o considerava como mero
tribunal subordinado à respectiva jurisdição.
O centralismo filipino que não quis, ou não
teve força, para esmagar a autonomia do reino de Portugal, também não
concretizou um eventual desejo de aproximação dos modelos ultramarinos
portugueses às práticas imperiais de Madrid. Não nos transformávamos, de
facto e de direito, numa monarquia única, com um só poder central
unidimensionalizando em súbditos os respectivos dependentes. As parcelas
integradas na esfera política portuguesa continuavam uma saudável pluralidade
estatutária, onde, para além do reino, existiam os senhorios da conquista,
da navegação e do comércio.
Macau continuava a não ser pertença do reino, não se instituíra por efeito
da conquista, resultando apenas dos modelos expansionistas da navegação e do comércio
que sempre admitiram poderes conflituantes com quem se convivia, não pelo
simples mando da nossa força, mas também pelo engenho e arte da estratégia e com o apoio dessas formas imateriais
de influência que passam pela língua, pela cultura e pela própria religião,
instrumentos preferenciais para a construção desse poder dos sem poder a que viríamos a dar o nome de Quinto
Império, esse império depois dos impérios, pelos quais Portugal se
diluiria no universal da esfera armilar.
Em 1585 surge a primeira obra impressa e, no
ano seguinte, o Vice-rei da Índia, autoriza que Macau passe a designar-se Cidade
do Santo Nome de Deus na China, com os privilégios do foral de Évora e do
segundo foral de Coimbra, decalcados no de Cochim.
Em 30 de Novembro de 1594 surge o Colégio
dos Jesuítas, em vez da anterior casa
da Companhia de Jesus, sem dúvida, o primeiro modelo universitário de
matriz ocidental estabelecido no Extremo Oriente que, logo em Dezembro desse
mesmo ano, passa a colégio universitário, uns estudos gerais, abrangendo as áreas
das letras, da filosofia, dos casos de moral, do direito canónico e da
teologia.
A história de Macau tem, aliás, muito da história
dos jesuítas. Logo nos finais do século XVI foi o jesuíta português Bento de
Góis que demonstrou que o Império da China correspondia ao Grã Catai de Marco
Polo. Com efeito, os jesuítas estiveram na China entre 1583 e 1805, data da
morte do Padre Bernardo de Almeida, então primeiro presidente do Tribunal de
Astronomia de Pequim, com a qualidade de mandarim. Eles, os chamados Padres
da Corte, os nossos efectivos embaixadores em Pequim, dedicados à fé, não
deixavam de cultivar a cartografia, a música, a matemática e a astronomia, não
se eximindo em desenvolver a própria actividade de fundidores de canhões.
Contra os piratas vieram mercadores, missionários,
aventureiros e os mandarins deixaram e agradeceram, até que o Imperador cedeu.
Pequim estava a seiscentas léguas e Lisboa, a quase doze meses de viagem.
Assim, Macau foi crescendo. Os portugueses, que começaram por ser simples diabos
brancos, o nome que os chineses davam aos bárbaros,
estrangeiros ou selvagens (Ie-Ian), não
tarda que sejam chamados Fat-Long-Kei,
isto é, gente do Grande Oeste ou
irmão de um dos quatro mares e Sai-Ieon-Ian
(homem do Atlântico), enquanto os ingleses e os holandeses aparecem
sempre como bárbaros vermelhos e os
africanos como diabos negros.