Na
euforia do absolutismo
Em 1746, quando a Europa vivia a Guerra de
Sucessão da Áustria, dois funcionários chineses, Jan Kuóng-lam e Tchéong
U-Iam elaboram uma monografia sobre o território, Ou-Mun
Kei-Leok (ver a trad. port. de
Luís Gonzaga Gomes, Edição da Quinzena de Macau, Outubro de 1979), quando na
cidade havia 10 000 chineses e 5 212 portugueses, dos quais apenas 90 eram reinóis.
Conforme pode ler-se em tal relatório, actualmente
o número de bárbaros é cerca de dez mil. A sua índole é ardilosa, o seu
vestuário estranho, e as suas espadas aguçadas e os tiros das suas peças
reboam, ultrapassando montanhas e mares. Encontrando-se satisfeitos são como
seres humanos,, mas se estão encolerizados, são como bestas.
Em Macau, vivem
misturados bárbaros de diversas raças e existem maus chineses que entraram na
sua religião, além de haver indivíduos perseguidos pela lei que se escondem
entre eles. Aliás, os que se converteram em Macau são os residentes de longa
data que, a pouco e pouco, se deixaram influenciar, profundamente, pela
linguagem e costumes (dos estranhos), de forma que, a pouco e pouco, se vão
transformando em bárbaros.
Tal como desde sempre, existiam entre os
chineses dois partidos quanto à presença dos portugueses em Macau. Para uns, os
estrangeiros deveriam ser ordenados a destruir as suas casas e a seguir nos seus
barcos e nas suas viagens. Já para outros, eles trazem vantagens para a China e
fazem progredir o comércio.
O tom chinês vai, aliás, manter-se. Em 1873,
quando a administração portuguesa falava na extensão
dos direitos de soberania, ainda protestávamos pelo facto dos chineses
chamarem ao governador cabeça de soldados
e, quatro anos depois, reclamávamos pela circunstância das autoridades
chineses considerarem Macau território
arrendado aos portugueses para aí morarem.
·
No século XVIII, em plena euforia do absolutismo europeu,
quando governava a China o Imperador Che K'ien-Long (1736-1796), surgem as
reformas constantes das Providências Régias
de 4 de Abril de 1783, promovidas pelo ministro da marinha e do ultramar,
Martinho de Melo e Castro, pelas
quais é destruída a autonomia de Macau. transformando-se o Leal Senado em mera
câmara integrada na hierarquia piramidal do Estado Moderno Soberano e passando
o governo local a estar dependente do Vice-Rei da Índia, ao mesmo tempo em que
se instituía uma alfândega portuguesa.
As relações do poder político chinês com o
território também se intensificam, havendo uma efectiva compenetração de
poderes. Desde os finais do século XVII que se estabelecera uma alfândega
chinesa dentro de Macau; em 1736 estabelece-se mesmo um mandarim no seio da
cidade (o tso-tang) e em 1749 passou a
vigorar para a população chinesa aí residente o código penal do Celeste Império.
Os papéis oficiais portugueses de 1783
qualificavam Macau como um Estabelecimento
que forma um Domínio
da Coroa de Portugal, considerando que o mesmo foi nela integrado pelo direito
de conquista, apesar de se salientar que no
Império da China não fizemos Conquista e que apenas nos foi cedido o importantíssimo
Porto de Macao, sendo a Coroa de Portugal a única de todas as da Europa, e pode
ser do Mundo, que conserve hum Estabelecimento no referido Império, logo
salientando que há até o prezente huma
irreparavel falta, he a de se não ter hum claro conhecimento da lingoa Chineza,
da sua escrituração, e da inteligencia dela.
Reconhece-se também a existência de uma
dualidade de poder entre um Senado da Câmara que seria composto
de Gente ignorantíssima em matérias de Governo, e não cuidando mais que nas
utilidades do seu Negócio.
Esta perspectiva, consagrada durante a viradeira
anti-pombalista do reinado de D. Maria I, contrastava, aliás, com um parecer do
Conselho Ultramarino de 10 de Novembro de 1750, onde ainda se mantinham certos
resquícios da perspectiva tradicionalista, quando se considerava que tendo
os nossos ajudado os chinas na repressão dos piratas, eles permitiram que
ficassemos em Macau, reconhecendo-se que não era a nossa força militar aí
estacionada (cerca de 100 soldados) que poderia causar susto aos chineses, até porque o sustento diário da cidade
dependia dos víveres que nos chegavam através das Portas do Cerco. A razão
fundamental da atitude das autoridades chinesas estaria nas muitas conveniências que a nossa presença dava aos mandarins de
Cantão, nomeadamente da prata que recebiam.
As reformas de 1783, marcadas por um
absolutismo e por um centralismo já serôdios têm mais a ver com o conflito
entre a autoridade militar, do governador, e a autoridade fiscal e política, do
Senado. Aliás, já em 1735, havia falhado a tentativa do Vice-Rei da Índia de
colocar o governador na presidência do Senado.
Vivia-se então novo período de decadência do
território, na sequência da expulsão dos jesuítas, e, por legítima defesa,
os moradores tratavam de ceder às pressões chinesas. É este o ambiente que
Bocage aí vai encontrar em 1789-1790, cantando a existência de um governo sem mando, de muita
pobreza, muita mulher vil e de um
Senado que a tudo é superior.
No entanto, os chineses preferiam conciliar-se
com as nossas teses tradicionalistas. Ainda em 17 de Setembro de 1808, o
mandarim da Casa Branca em ofício ao Procurador de Macau dizia que embora
o pequeno território de Macau tenha sido cedido aos portugueses por um acto de
bondade e de piedade da Celeste Dinastia da China, e ainda que eles o ocupassem
em paz e bom entendimento desde há centenas de anos estava condicionado o
trânsito de navios de guerra estrangeiros.
Diremos, a respeito da perspectiva absolutista
do soberanismo, que vai dominar a teoria oficial portuguesa até aos tempos mais
recentes, que Macau foi bem diferente das praças do norte de África, porque
para tal sítio não fomos fazer a guerra, nele deixando, apesar de tudo, uma
pequena comunidade mista de filhos da terra, que faltou em Marrocos. Aí, a
convivência e a simbiose foram e são mais fundas que a nossa passagem pelo
Magrebe, apesar de, nas pedras, não sermos tão resistentes, como no norte de
África.
Aliás, tal mistura lusotropical chegou ao
final do século XX, apesar da distância e das abissais diferenças entre a
China o Ocidente.
De certo que houve intolerância. Houve muitos
soberanistas e alguns outros esclavagistas, mas estes talvez tenham sido
compensados pela paixão do diálogo e pelo interesse no negócio.
Viemos à procura de bugigangas, enquadrados
pelos que acalentavam fazer cristãos e, comerciantes e missionários, uns e
outros, quando aqui pousaram, sempre usaram a espada embainhada.
Aqui chegámos antes de podermos trazer a
soberania. Aliás, só Ferreira do Amaral com fortalezas e fronteiras vai tentar
implantar o que nunca podia ter havido.
Aqui não se deu a chamada exportação do Estado referida por Jorge Borges de Macedo. Pagávamos
foro de chão, os chineses tinham alfândegas dentro do território de Macau e
os mandarins chineses tinham jurisdição criminal sobre os chineses residentes
e reclamavam-na relativamente a portugueses que ofendessem o Imperador. Da mesma
forma, o Senado de Macau praticava uma constante negociação com as autoridades
chinesas, utilizando meios irregulares de pressão e negociação, como as
ofertas e os subornos.
Os dogmas do soberanismo e do centralismo
administrativista da modernidade política que marcam o edifício do Estado a
que chegámos fazem com que pareçam naturais modelos políticos artificialmente
instituídos pelas terapias de choque do terrorismo de Estado absolutista e pelo
construtivismo das reformas administrativas do liberalismo que, entre nós,
passaram pelo terramoto pombalista e pela instituição dos modelos de reforma
administrativa da primeira metade do século XIX com que acedemos ao esquema
organizacional napoleónico, desde
o centralismo de Mouzinho da Silveira ao concentracionarismo de Costa Cabral.
Aliás, foram estes chicotes lisboetas que aqui
tiveram reflexo com a instituição da omnipotência do governador, delegado da
soberania, da Coroa ou da República, nomes que fomos dados à abstracção do
Estado.