O chicote soberanista

A instalação dos britânicos na outra margm do delta e o rugir do complexo de superioridade dos ocidentais face à derrotada multidão dos chineses vai acicatar o nosso desejo de copiarmos modelos imperiais alienígenas e não tarda que o chicote soberanista se desembainhe, não só contra a intervenção das autoridades chinesas, mas também contra o comunitarismo do plurissecular autogoverno de Macau representado pelo Leal Senado que, apesar de tudo, havia resistido ao absolutismo, em nome do tradicionalismo e da capacidade de mobilização de apoios financeiros para o subsídio a actividades militares face a circunstâncias excepcionais de insegurança. Uma instituição que, logo em 2 de Março de 1844, era reduzida à dimensão de mera câmara municipal, na mesma altura em que surgia  oficialmente a Província de Macau, Timor e Solor, num bloco que só vai ser quebrado em Outubro de 1850.

Já no ano anterior se iniciara a ocupação da Ilha da Taipa pelo governador José Gregório Pegado, mas, nesta primeira extensão do nosso espaço territorial, o governador ainda utilizou os nossos métodos tradicionais, dado que previamente visitou o Vice-Rei de Cantão que prometeu fechar os olhos perante tal operação que decorreu quando Xangai era aberta ao comércio europeu.

Mas é só a partir de 1846, quando deixámos de pagar foro de chão à China, que o Estado Moderno chega a Macau através do reformismo de Ferreira do Amaral, o primeiro governador não dependente de Goa. Tomou posse em 21 de Abril de 1846 (fora nomeado em Dezembro do ano anterior) e, desde logo, tomou medidas drásticas: aplicou um decreto de 20 de Novembro de 1845 que declarava Macau porto franco; em seguida, estabeleceu um imposto predial e industrial, também aplicável aos chineses residentes, e determinou o registo ou cadastro dos barcos de transporte ou faitiões.

Esta medida levou a uma revolta organizada dos chineses em 8 de Outubro de 1846. Foi o carácter destemido do governador, à frente de pouco mais que meia centena de soldados que a jugulou, ao mesmo tempo que impediu o posterior boicote do comércio, ameaçando com uma repressão sangrenta.

Para além disso, obrigou o mandarim chinês a abandonar Macau, reduzindo a jurisdição especial dos chineses à existência de um Procurador da Cidade que, logo em 20 de Agosto de 1847, passa a depender do Governador, através da Secretaria do Governo, e não do Leal Senado, como até então.

Apesar das imediatas queixas do Leal Senado, remetidas para Lisboa logo em Fevereiro de 1847, não tardou que a respectiva autonomia fosse comprimida

Ao mesmo tempo, o governador modernizava a circulação no território, abrindo vias internas que cortavam a direito o espaço sem respeitarem os locais onde os chineses tinham as suas sepulturas, embora com a boa intenção de quebrar as muralhas que acantonavam a presença portuguesa na península. Finalmente, tratou de ocupou militarmente a ilha da Taipa (em 9 de Setembro de 1847 era içada aí, pela primeira vez, a bandeira portuguesa).

Segue-se o arrolamento de todos os chineses residentes no território (20 de Dezembro de 1848), bem como a extinção das próprias alfândegas chinesas (5 de Março de 1849), inevitável corolário do regime de porto franco,  enquanto proíbe que os mandarins entrem em Macau tocando bátega, como faziam quando entravam em terras chinesas (18 de Março de 1849).

Não faltou sequer um conflito com os próprios britânicos, com incidentes por ocasião da procissão do Corpo de Deus de 17 de Julho de 1849, quando os súbditos de Londres trataram de aplicar o princípio da extraterritorialidade dos cidadãos em causa, desrespeitando a autoridade portuguesa.

O governador acabou assassinado em 22 de Agosto de 1849 por sete chineses, perto das Portas do Cerco. Não se tratou de mera vingança pessoal, mas de um assassinato político levado a cabo pela organização secreta chinesa da Sociedade dos Rios e dos Lagos, representante de um mais amplo movimento de resistência que procurava opor-se aos planos portugueses de alargamento do espaço territorial português às ilhas circundantes de Macau, desde a Taipa e Coloane, às ilhas da Lapa, D. João e Montanha, delineados a partir de 1844. Aliás, Ferreira do Amaral, o herói de Itaparica, obedecia a essa estratégia e tinha íntimos contactos com o governador britânico de Hong Kong, Sir John Davis, com quem conjugava acções.

 Enraivecidos, no dia 25 de Agosto, passámos à ofensiva militar, com o tenente macaense Vicente Nicolau de Mesquita, à frente de três dezenas e meia de soldados, a conquistar o forte do Passaleão, em território chinês, registando-se assim o único confronto militar formal entre portugueses e chineses ao longo deste quatro séculos e meio de presença portuguesa nos mares e terras da China. Contudo, a movimentação militar acabou por ser contida e, em 16 de Setembro de 1849, o Vice-Rei de Cantão já oficiava ao Governo de Macau, informando ter sido preso e executado o assassino de Ferreira do Amaral. Muito simbolicamente, em 16 de Janeiro de 1850, já eram recebidas a cabeça e a mão do governador.

Contudo, nesse mesmo ano de 1850, em 28 de Outubro, a mesma sociedade secreta que assassinara o governador levou a cabo a explosão da fragata Dona Maria II, estacionada no ancoradouro da Taipa, eliminando desta forma a possibilidade de um alargamente da influência portuguesa na região, através da via militar.

A estratégia imperialista que os governadores representavam contra o carácter plurrissecular do modus vivendi que o autogoverno de Macau estabelecera com as autoridades formais e as sociedades secretas chinesas sofria assim um forte abalo. Portugal, por falta de força, não podia desempenhar papel idêntico às restantes potências europeias.

O plano que pretendia integrar a variedade e a diferença de Macau num todo unidimensional, sujeito a modelos imperiais alienígenas, não podia ser concretizado e vinham ao de cima os métodos tradicionais da nossa diferença. Aliás, as seitas chinesas logo arranjaram uma lucrativa actividade, quando, a partir de Macau, organizaram o célebre tráfico dos cules, a emigração, mais ou menos forçada, de mão de obra chinesa para a América do Sul.

Macau continuava um acaso nascido de uma efectiva e profunda necessidade. Em Macau, os portugueses de Macau, iam fazendo história, sem saberem da história que iam fazendo. E assim contornaram a revolta dos Taipingues e dos Boxers, o turbulento processo da implantação da república na China, bem com as poteriores guerras civis e a própria instalação do maoísmo.

É que Macau, conforme a consulta do Conselho Ultramarino, de 1853, subscrita, entre outros, por Almeida Garrett, não passava de uma colónia de missionários e comerciantes, onde, em vez das armas surgia outro motivo para a nossa influência: a lealdade do nosso carácter, a superioridade de nossa inteligência e a sublimidade das nossas crenças religiosas. Onde não chegaram as armas de nossos Capitães, chegaram as letras e as ciências dos nossos matemáticos, e onde não podiam penetrar os arcabuzes de nossos soldados, iam e venciam as sotainas e as sandálias de nossos missionários. Ali cederam as armas à toga; ali foram os livros mais adiante do que as lanças, e Pedro Nunes excedeu a Afonso de Albuquerque (p. 402).

Veja-se o que se passou com o processo de aplicação do Código Civil do Visconde de Seabra de 1867. Com efeito o pluralismo dos estatutos pessoais, ainda consagrado pelo direito privado das Ordenações, acaba por ser destruído pelo uniformismo cidadânico do novo Código Civil. Contudo, o Decreto de 18 de Novembro de 1869, que manda aplicar o Código ao Ultramar, acaba por ter de consagrar algumas restritas excepções, entre as quais se consagram os usos e costumes dos chins nas causas da competência do procurador dos negócios sínicos (nº 1 do artigo 8º).

A força da diferença leva também a que a própria Carta Orgânica do Império Colonial Português, de 1935, não preveja a existência de indígenas no território, à semelhança do estabelecido para Cabo Verde e para o Estado da Índia.