O hibridismo português

Julgo que só com o esotérico do sebastianismo podemos entender o percurso de Macau, esse supremo hibridismo que tanto se mostrou legítimo como eficaz. Esse resto do Primeiro dos Impérios que os portugueses, continuando Alexandre, puderam edificar. Como reconhece Gilbert Durand, o sebastianismo é ... uma espécie de quixotismo lusitano que afirma a surrealidade do sonho em que vive um povo contra as mesquinhas verdades do Sancho Pança.

Éramos no século XVI pouco mais de três milhões de almas, apertados pelo muro de Castela em terra de fome. Tínhamos sobretudo fome de terra e dessedentámo-la no mar. E, pelo Atlântico, a caminho do sul, depois de dobrarmos a Boa Esperança, começámos a nortear.

Quisemos a Índia que visionámos do Rio dos Bons Sinais. Mas a Índia não bastou. Descemos para Malaca e voltámos a subir, flanqueando o Grã Catai pelo mar oriental. Pousámos em Macau, sítio que ficava estrategicamente colocado entre Goa e o Japão. Um encruzilhada que também vai servir para seguirmos China dentro. Vieram sobretudo mercadores e missionários que os soldados eram precisos em Goa.

Tudo acontecia quando os Habsburgos de Madrid e de Viena comandavam a resistência europeia à  pressão turca, vencendo em Lepanto (1571) e em Viena (1638). Quando os russos começavam o avanço cristão para Leste (vencem em Kazzhan em 1552 e conquistam Nerchinsk em 1689), na mesma altura em que os espanhóis se estabeleciam nas Filipinas (1570), eis os portugueses a assentarem em Macau (1570). Depois de Ceuta (1415), de Goa (1510), de Malaca (1511) e de Ormuz (1515). Depois de  Vasco da Gama, de D. Francisco de Almeida, de Afonso de Albuquerque e de D. João de Castro.

Sem ofender, nem defender, fomos ficando. Pelo comércio, pela religião e com as armas dialogantes da política. E assim fizemos, até hoje, a nossa peregrinação permanecente. Animávamo-nos a ideologia de um humanismo católico renascentista e ainda vigorava alguma coisa da raiz relativista de um aristotelismo e de um tomismo, segundo os quais a verdade tem sempre um bocado de erro e o bem sempre um bocado de mal, tal como a verdade tem muitos erros e o bem alguns pedações de mal.

No Grã Catai também vigorava o Império da ideia e o governo pelo pensamento. Com ele navegámos na senda de um Quinto Império.

Trazíamos connosco a experiência de um reino filho da Europa da respublica christiana, num ambiente universalista que conseguia conversar com o Império Celeste.

 

 

(Para fugirmos às questiúnculas jurídicas sempre prenhes dos bizantinismos dos textos e dos dever-ser das normas chamemos a Macau, o território. Com alguém me vai dizendo, pena que não seja colónia porque se assim fosse ainda podia haver alguma mística de missão. Assim, não. Vêm para cá todos os frustrados de Lisboa.

Macau é assim uma espécie de degredados pela frustração e alguns proclamam que aqui pode fazer-se a única descolonização exemplar.

Um território chinês sob administração portuguesa, sob administração e não sob soberania, sublinhe-se. Onde apenas 3% da população tem a cidadania portuguesa, onde um taxista não entende quando lhe pedimos para ir ao Palácio do Governador.

Segundo a Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China, assinada em Pequim em 13 de Abril de 1987, o governo de Pequim voltará a assumir o exercício da soberania sobre Macau a partir de 20 de Dezembro de 1999, data a partir da qual se estabelecerá uma Região Administrativa Especial de Macau, dentro da República Popular da China e directamente subordinada ao respectivo Governo Central onde manter-se-ão substancialmente inalterados os actuais sistemas social e económico, bem como a respectiva maneira de viver durante cinquenta anos, pelo que a região poderá por ai própria definir as suas políticas de cultura, educação, ciência e tecnologia, bem como as suas políticas orçamentais e fiscais, tendo como línguas oficiais o chinês e o português.

 

(Eis Macau, esse originário concelho medieval europeu que primeiro teve o consenso dos mercadores  missionários e só depois teve burocratas e soldados continua a ser uma pequenina república incrustada num dos maiores grandes Estados Continentais do mundo.

Um desses restos do primeiro dos ciclos imperiais dos portugueses, paralelo ao de Marrocos, antes do Brasil e antes de África.

São estes restos que constituem a nossa despedida como potência administrante de territórios exóticos.

Aqui continua a funcionar o small is beautiful da pequena polis, onde até nem falta um apartheid entre os integrados (portugueses, macaenses e chineses de Macau) e a mole imensa que vem da China.

Aqui continua o pragmatismo do buscar canela. É a Macau, árvore das patacas para os que querem fazer fortuna ou sair da mediania baixa que nivela a maioria dos portugueses de hoje.

Aqui não se perdeu a vontade primordial do fazer cristãos e a Igreja Católica não só se mostra pujante como ainda consegue ter uma excelente penetração na sociedade civil, principalmente graças ao prestígio das suas actividades assistenciais.

Aqui, as nossas potencialidades são as nossas principais vulnerabilidades.

Nós que viemos para a China para não lhe fazer a guerra, acabamos por aproveitar as guerras dos outros para adquirirmos algumas vantagens.

Macau ainda resiste. Porque a vontade de poder de Pequim não foi derribada pelos ventos da história da descolonização dos anos sessenta e setenta. Porque se resistiu às aventura do PREC. Porque novas ficam as memórias de um império a haver, que poderia ser a língua, mas que afinal acaba por ser a memória.

 

Pelo contrário, houve e continua a haver alguns, embora poucos, militantes do sonho sonho português de Quinhentos, desses para quem ser português começa por ser assumir um saber de experiência feito e pela experiência pensado. Não o veni, vidi, vinci - o chegar, ver e concluir -, conforme a tese prévia que se procura demonstrar com bocadinhos da experiência. Porque são sempre possíveis argumentos feitos com pedacinhos destacados da realidade que conseguem dar ar de justificação a qualquer hipótese. Não! O que vale é procurar compreender, apanhar as coisas da realidade em conjunto, coisa com coisa, todas as coisas no todo, tentando chegar ao global e detectar que cada coisa parcelar pode ter o sentido do todo. Que no singular, na diferença, pode, e tem de estar, o universal.

Talvez seja este o sentido português do universal. O respeito pela diferença dos outros e a tentativa de assumirmos a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações, como diria Toynbee.

 

Ainda hoje Macau conserva resquícios de uma longa tradição de real autogoverno, apesar da cobertura que lhe é dada pelo diáfano manto da legalidade e da administração pública portuguesa, tal como antes se fingia a existência de uma colónia plenamente integrada no império português. Com efeito, não é Macau que está dependente de Lisboa, dado que, desde há muito, é o próprio status de Macau que determina as decisões de Lisboa quanto aos interesses de Macau.

E a China nunca esteve arredada deste processo, tendo algo mais que a mera influência no governo do território.

Partidos, ainda hoje, não existem, dado que dominam os lobbies formais e informais, transformados em verdadeiros canais de poder.

Neste sentido, Macau aproxima-se de uma espécie de corporacionismo presidencialista, dado que a síntese de todo este paralelograma de forças  acaba por ser o governador que, sem forças de bloqueio institucionais, face à não existência de efectiva separação de poderes, acaba por ser uma espécie de Vice-Rei que concentra as funções executivas, legislativas e moderadoras. Tem sobretudo o poder confederativo de que falava John Locke, o poder de representação que lhe advém das relações externas.

E aqui o regime é tipicamente colonial, advindo-lhe a autoridade do flutuar da bandeira portuguesa nos mastros oficiais e nos mastros imateriais do prestígio.

Aliás, o governador não tem, como fonte da respectiva legitimidade, qualquer ligação à vontade popular, difícil de canalizar-se, até pela circunstância de só uma restrita minoria  da população estar territorialmente enraizada pela  nascença ou pela residência permanente.

O regime não é efectivamente democrático, embora exista uma democracia da sociedade civil integrada nos quadros de uma autoritarismo tipicamente colonial, dado que a Assembleia Legislativa    não é o auto-organizado Senado de antigamente. Aliás, o nome de Leal Senado serve hoje de qualificativo à câmara municipal de Macau.

Do mesmo modo, existe uma sociedade pluralista que é, ao mesmo tempo, uma não sociedade aberta.

Finalmente, se procura instituir-se um Estado de Legalidade, não funcionam, nem podem um funcionar, os mecanismos de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.

Macau não acaba em 1999. No dia 20 de Dezembro desse mesmo ano, cerca de dois anos e meio depois de Julho de 1997, data da devolução à China de Hong Kong, deixará de ser hasteada a bandeira da República Portuguesa neste território, mas Macau há-se permanecer a cidade de Macau, sob administração chinesa.

Ser fiel a Portugal há-de ser, a partir de então, manter a fidelidade a uma criatura que os portugueses contribuíram para fazer nascer, crescer e desenvolver. O mistério de Macau passará, a partir de então, por saber-se se a personalidade dessa entidade vai ou não resistir à vaga unidimensionalizadora dessa megapolis que é a República Popular da China.

Alguns apostam em pedras de calçada, no cimento armado e no betão das grandes obras, ditas de regime. Outros nas televisões, nas bibliotecas e nas instituições de ensino. Certos tácticos falam mesmo na potencialidade disseminadora dos quadros intermediários da administração pública localizada.

A fase das grandes obras públicas terminou com a nova ponte, o aeroporto e o centro cultural ainda em construção. Agora é tempo de uma apressada aposta nos bens imateriais onde o ensino luso-chinês e o instituto politécnico parecem bem mais profícuos que a chamada universidade.

Porque esta, fiel ao que torto nasce e que tarde ou nunca se endireita, não terá podido cumprir a sua missão, principalmente na área dos chamados estudos portugueses que não se conseguiu libertar do atrofiado desvario em que mergulharam as nossas faculdades de letras, atafulhadas numa permanecente guerra civil fria, povinda do salazarismo e do abrilismo. Daí que nunca se tenha apostado  no interdisciplinar e no global do conceito de estudos portugueses que, antes de mais, deveria ter sido o estudo do contacto de culturas e das relações internacionais, numa perspectiva alargada  às variantes da política e da economia, com o reforço da linguística e a ousadia da introdução de uma variante chinesa no próprio conceito de estudos portugueses. Um instituto de estudos portugueses que, desde logo, deveria lançar-se num mestrado sobre o Pacífico que insistisse na história do presente e na própria prospectiva, de maneira a constituir-se uma antena portuguesa no futuro Mediterrâneo da história.