Uma
invenção portuguesa
Macau, uma cidade-península com imprecisos cinco quilómetros
quadrados, quatro quilómetros no seu comprimento máximo, 1690 metros na sua
maior largura, sobre um chão em
movimento expansivo, dito política de
terras, onde os aterros vão secando as águas, as pontes atravessando o mar
e os istmos destruindo as ilhas. Terra onde os
extremos se reconciliam (Benjamim Videira Pires), onde os nossos
(amicus, Freund) sempre se
misturaram com os bárbaros (Feind),
desfazendo as teses de Carl Schmitt sobre a essência do político. Sítio de
sonhos, onde nós e os outros nos
descobrimos pela amizade (poema chinês do século XVIII).
Foi por nós chamada, em primeiro lugar, Amagao,
recebendo depois as sucessivas designações de Porto
do Nome de Deus, de Povoação do Nome
de Deus de Amacao na China, até atingir o qualificativo de Cidade
do Santo Nome de Deus (1585), a que se acrescentou, em 1642, o título de Não
Há Outra Mais Leal. Um conjunto territorial a que, depois da Guerra
do Ópio e de Ferreira do Amaral, acresceram mais 10 quilómetros quadrados
das ilhas da Taipa e de Coloane, e que foi sendo objecto de várias adjectivações
político-jurídicas, conforme as modas reinantes em Lisboa, em termos de concepção
do político e da linguagem do chamado direito internacional, quando este era
fundamentalmente um direito colonial comparado. De assentamento
a cidade, de estabelecimento
a domínio, de província a colónia,
para voltar a ser província, até
que, em 1976, de forma neutral e provisória, mas ainda sem data marcada para a
saída, ficou apenas território.
Melhor dizendo: território chinês, sob
administração portuguesa.
Diremos que, hoje e desde o primeiro quartel do
século XIX, é uma cidade de matéria
esmagadoramente chinesa que os portugueses, depois de inventarem, deram forma.
Porque, antes de chegarem os homens de
longas barbas e grandes olhos, apenas existia uma pequena aldeia de
pescadores, dita Ho-Keang (baía do espelho em forma de concha) ou Ou-Mun
(porta da baía do espelho de mar), onde habitavam permanentemente duas famílias,
com os apelidos de Hó e Sam. Uma pequena cidade, quase um pucarinho de barro
que ousou aconchegar-se no seio da gigantesca panela de ferro que é a China e
que, de 1841 a 1997, viveu acompanhada, no outro lado da foz do rio das Pérolas,
pelo couraçado e dourado pote da colónia britânica de Hong Kong.
Macau, cidade que alguns, conjugando de forma
colonial o verbo ter, sem perceberem o
ser, julgaram nossa, mas onde, apesar de tudo, ainda hoje vão tremulando, ao
sabor das brisas, dos tufões, das cíclicas monções e dos inesperados sismos,
tanto a bandeira das quinas como a formal soberania da República Portuguesa,
embora se encontre pouca a gente a usar o nosso linguajar que aqui parece uma
pequena casca de nós navegando no gigantesco oceano de chinês. Aliás, para um
português comunicar com um chinês, precisa, muitas vezes, de utilizar o inglês,
do táxi ao hotel, do restaurante ao próprio comércio mais recente.
Aqui, onde Camões e Bocage estacionaram, onde
Camilo Pessanha escreveu, esta cidade de Macau, que, no dia 20 de Dezembro de
1999, se integrará, pela primeira vez na sua história de mais de quatro séculos,
na soberania do Estado chinês, quebrando-se assim aquele ciclo imperial português,
iniciado em 1415, com a conquista de Ceuta, onde, sob administração espanhola,
as bandeira das quinas continuará, aliás, a flutuar.
Macau, onde, manda a humildade, que reconheçamos
a nossa pequenez actual em termos de influência política e de capacidade económica,
mas onde também não podemos esquecer a grandeza quase mítica de uma singularíssima
história de relações com o Oriente, que ainda permanece tanto nalguma cultura
portuguesa de feição universalista como em certa capacidade de relacionamento
humano. Esse abraço armilar, segundo a qualificação do saudoso Almerindo
Lessa, que, tendo sido passado, tem que continuar a mobilizar a nossa saudade
de futuro.
Macau, a beleza de Macau, esse encanto que nos vem das memórias e das sensações
de cumplicidade pátria, numa terra onde a esmagadora maioria da população é
chinesa.
Macau, terra que não é possível conhecer
numa simples visita que apenas dure uma semana. Terra que nem sequer pode chegar
a conhecer-se com anos de permanência, se não ousar compreender-se o seu mistério.
Terra a que, aliás, só pode aceder-se através de uma espécie de osmose,
passo a passo, descobrindo, todos os dias, novos recantos, novas ruelas, novos pátios
e, sobretudo, novas gentes e novas contemplações. Terra que não se entende se
a tentarmos detectar pela lufa-lufa do stress
turístico, nesse percorrer de lugares que todos temos que ver, para aí
registarmos a nossa presença física, através de uma fotografia. Macau tem que
se apreender pela vivência do quotidiano, deixando escorrer o tempo, sorvendo,
pouco a pouco o seu mistério.