A INFLUÊNCIA DA MAÇONARIA NO PENSAMENTO JURÍDICO-POLÍTICO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

 

Quem acredita, na senda de Agostinho da Silva, que talvez haja um sonho português de fazer do mundo a cidade de todos e para todos, a polis global que, além de ecuménica, tem de ser cósmica, aquele amplo abraço de Aristóteles e Platão, desde tão longe adversos, esse englobar as "Leis" e a ''República" de Platão e as preocupações constitucionais de Aristóteles, para que faça as pazes o leão do céu com o da terra, tem de notar que apesar da dispersão e da descontinuidade do pensamento português, há, contudo, certos sinais de unidade, certas linhas de preferência no sentido do espiritualismo e do humanismo, principalmente através daquele sentimentalismo que Teixeira de Pascoaes cunhou como saudosismo, a tal forma lusitana da Criação, porque é dentro de nós que descobrimos o mundo exterior, pensado ou concluído: um complexo de lembranças e esperanças.

Há, com efeito,uma ambivalência na compreensão da realidade, bem expresso pelo movimento da ciência portuguesa dos séculos XV e XVI, de Duarte Pacheco Pereira, D.João de Castro e Garcia da Orta, dado que estes teóricos da aventura e pragmatismo, como refere o mesmo Agostinho da Silva, mantinham os direitos e as irradiações de uma ciência que se dissolve na comunidade e näo procura ir além de uma linha geral de entendimento e de saber.

Neste sentido, o português mantém-se fiel à grei, o que tantas vezes simboliza numa fidelidade ao soberano, e vê nas criações um motivo para louvar o Criador, isto é, descobre a grandeza universal na pluralidade do diverso, sem que a singularidade se elimine e, por outra parte, vê Deus como sendo essencialmente o artista supremo que inventou as faunas dos corais, ou a tromba marítima, ou as fantasiosas conhecenças ou o lento balanço das palmas nas tardes tropicais.

De facto, o centro solar do nosso universo de pensamento esteve profundamente imbuído de um pensamento humanista que, antes de ser católico foi estóico, e grande parte das ideias novas que o pretenderam abalar acabaram por ser pelo mesmo sincretismo filtradas e transfiguradas. A ruptura iluminista passou pelo oratoriano Verney e nunca assumiu os laivos anticlericais que a marcaram noutras paragens; mais recentemente, o próprio marxismo dos anos sessenta e setenta entrou, em grande parte, pelas portas que lhe foram abertas pelos chamados cristãos-progressistas.

Julgo que chegou a altura de notarmos que no Portugal Contemporâneo demoliberal, entre a monarquia constitucional e a I República, a centenária procura de substituição de um Portugal Velho por um Portugal Novo em nome da modernização tem sido marcada por uma constante dialéctica entre uma herança do humanismo cristão e estóico e a novidade iluminista do humanismo laico que, infelizmente, sempre feita através de revoluções vindas de cima para baixo que se foram qualificando com sucessivos ismos, conforme o grupo que dominava o aparelho de poder e que foi tentando aplicar um qualquer programa, mais ou menos ideológico.

Em todas elas, quase sempre o mesmo modelo processual. Conquista-se a elite urbana, assalta-se o poder do centro político pela conquista da capital, mesmo que se parta de uma cidade periférica e, depois, invocando-se a luta da cidade contra as serras, propaga-se o modelo à província, através do controlo dos aparelhos culturais da soberania e do uso do cacete despótico.

Com efeito, os principais momentos de viragem da nossa história colectiva desse período demoliberal são marcados por esses estados febris da sociedade a que demos o nome de revoluções. Foi assim o vintismo, principalmente depois da martinhada de 11 de Novembro de 1820. Voltou a ser assim nos dias posteriores ao regresso de D. Miguel em 1828, à vitória dos cartistas em 1833-1834, ao 5 de Outubro de 1910, ao 28 de Maio de 1926 ou ao 25 de Abril de 1974.

Momentos, às vezes, de contrários sinais ideológicos, onde se amalgamam descontentes. Com exaltados vintistas que hão-de ser ferozes miguelistas. Revolucionários republicanos de 1910 a instaurarem a ditadura nacional de 1926. Ou ex-salazaristas a usarem cravos vermelhos. E até as contra-revoluções acabam por ser revoluções ao contrário e não o contrário de uma revolução.

Outras mudanças ocorrem sem tumultos significativos, originadas pelo vazio de poder, como a revolução de 9 de Setembro de 1836, o golpe de restauração da Carta de Costa Cabral, em 1842, ou o movimento que instaurou a Regeneração, em 1851. Onde as mudanças assentam em golpes palacianos, adaptados à alteração das lideranças daquelas sociedades secretas que constituíam então o subsolo da política, e as movimentações de massas apenas actuaram como elementos de pressão face a movimentações de bastidores.

Sucede sempre uma luta entre uma lógica burguesa, estrangeirada, adaptada aos valores que nos chegavam empacotados no expresso de Vilar Formoso, e uma lógica rural, onde a primeira se reduz à mobilização da inteligência e a segunda se fica pela honra. Quando se impunha, e se impõe, o casamento entre a inteligência com honra e a honra com inteligência.

Sempre a procura de adequação de um país da realidade ao país nominal, segundo aquela terminologia de Alexandre Herculano que precedeu a distinção maurrasiana entre o país real e o país legal. De acordo com o nosso mestre do liberdadeirismo, o primeiro é o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias, bem diverso do país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que é, e do funcionalismo que quer e há-de ser.

É neste contexto que entra a incompreensão do processo da influência da maçonaria no pensamento jurídico-político português, dado que, se o maçonismo anti-congreganista gerou o congreganismo anti-maçónico, aconteceu a ilusória proibição estadual da maçonaria, como sucedeu em 1935, quando se entrou num regime neo-inquisitorial pelo modelo do segredo de Estado, com sigilo sobre banalidades, censura prévia ou análise prévia, polícias secretas e inconfidências, segundo as melhores tradições dos inquisidores, como dizia, na altura, Fernando Pessoa…

E foi este preconceito que gerou a estúpida confusão entre a política e a religião, destruidora da estabilidade psicológica do demoliberalismo, tanto na monarquia constitucional como na I República e no anti-liberalismo salazarista. Só depois de 1974 é que a Igreja e o Estado se pacificaram, com separação sem confusão, deixando de haver uma questão político-religiosa.

Acresce que as nossas mudanças míticas de 1820, 1936, 1910, 1926 e 1974, sempre as configuraram como uma espécie de restauração de uma Idade do Ouro que o imediato ancien régime teria usurpado. E a nação menos revolucionária do mundo, assim passou a viver numa revolução perpétua, como salientava D. António Ferreira Gomes.

Mas numa revolução entendida platonicamente como regresso a um mitificado antes da pureza primitiva. 1974 fez-se contra os quarenta e oito anos de fascismo. 1926-1933 contra o demoliberalismo dos partidos. 1910 contra as liberdades perdidas pela concentração monárquica. 1820 contra o despotismo ministerial. Isto é, todas as revoluções quiseram ser regenerações e restaurações de um tempo anterior, mais perto do tempo anterior ao pecado originário.

Julgo ter chegado a altura de inciar-se o inventário daquele liberdadeirismo azul e branco que lançou as bases da liberdade portuguesa, restaurada depois de 1974. Porque, depois da guerra civil de 1828-1834 e de dois anos de gestão do baronato devorista ou chamorro, dominado pelo partido dos amigos de D. Pedro, bem como dos efeitos da revolução de Setembro, começa a desenhar-se uma corrente portuguesa de liberalismo doutrinário, onde se incluem homens como Alexandre Herculano e Vicente Ferrer de Neto Paiva e que tiveram em Mouzinho da Silveira e no duque de Palmela (1781-1850) uma espécie de precursores. Aqueles que, segundo Luís Cabral de Moncada têm a crença ideológica de que o homem saiu das mãos do Criador já dotado de certos direitos originários, naturais e inalienáveis, e de que a sociedade e o Estado, de carácter mais ou menos pactício, apenas existiam e deviam configurar-se para salvaguardar e proteger esses direitos.

Com efeito, só no começo da década de quarenta do século XIX é que os portugueses puderam começar a repensar, até porque a actividade científica institucional, desde as invasões francesas, esteve praticamente suspensa. Ao terramoto das reformas pombalistas, principalmente a da universidade, de 1772, onde pretendeu instaurar-se uma espécie de regalismo jansenista, seguiu-se uma viradeira contra-reformista que, anulando as inovações, nos fez regressar ao statu quo ante, isto é, à dominante escolástico-jusracionalista, àquilo que Ferrer vai qualificar, como farragem velha, de Wolff e dos escolásticos.

Mesmo aqueles que, seguindo o pombalismo, comentavam Martini, escondiam, sob o manto de fórmulas iluministas, o velho caldo, como é timbre da obra de António Soares Barbosa (1734-1801), autor de um Tratado Elementar de Filosofia Moral, de 1782, onde o racionalismo tenta casar-se com o sensualismo e o metafísico-religioso.

É inequívoca a influência do humanismo laico, de matriz maçónica, que ainda se inspira nos Diálogos de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), tendo como palavras fundamentais a humanidade, a filantropia, a benificência e o cosmopolitismo. E os por ele conformados mantêm o clássico objectivo maçónico: superar em si mesmos e por sua acção a divisão que suscita necessariamente entre os homens a existência do Estado e dos Estados … sem prejudicar o Estado nem os Estados.

Nesta minha breve intervenção de convidado perante um universo a não estou ligado inciaticamente, apenas quero chamar a atenção para os dois séculos de uma herança que, a partir das escolas de direito, marcaram decisivamente toda a tradição portuguesa.

Com efeito, a partir de 1843, principalmente pela acção de Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886), autor de Elementos de Direito das Gentes, 1839; Elementos de Direito Natural ou Filosofia do Direito (1ª ed. de 1844) e Princípios Gerais de Filosofia do Direito [1850], começa a estruturar-se o chamado krausismo, essa mistura tipicamente peninsular entre o individualismo burguês e certa vulgata kantiana, introduzida pelas obras do professor da Université Libre de Bruxelas, Heinrich Ahrens (1807-1874), seguidor dos princípios de Karl Friedrich Krause (1781-1832).

Ferrer, grande amigo de Alexandre Herculano, foi o principal responsável pela formação de toda uma geração de juristas e homens de Estado da segunda metade do século XIX. Diz-nos Cabral de Moncada que a respectiva filosofia foi a filosofia jurídica do liberalismo burguês, enxertada na cepa do velho jusnaturalismo racionalista e que tudo quanto de individualismo liberal se encontra na mentalidade e cultura jurídica portuguesas da segunda metade do século XIX, no seu culto apaixonado pela liberdade e pela propriedade, se não tem em Ferrer a sua primeira origem, tem pelo menos nele, seguramente, embora sem grande originalidade, o seu definidor dogmático e o seu filósofo mais autorizado.

Trata-se de uma forma de filosofia intermediária para um povo que não seria um povo de filósofos, mas que adopta a filosofia do bom senso, um pouco talvez com fraco voo nos domínios da especulação abstracta, mas em contrapartida, com tanto mais forte sentido das realidades e com profundas raízes emocionais, sobretudo de ordem religiosa e ideológica.

Aluno de Soares Barbosa no Colégio das Artes em Coimbra, bebeu a sua inspiração no jusracionalismo josefista austríaco, sobretudo através de Martini. E, invocando este humanitarismo do despotismo inteligente ou iluminado, conforme as sínteses de Luís António Verney e de Pombal, cabe-lhe ancorar as nossas ideias liberais nesse húmus contraditório. Apesar de em 1837 ter feito com que a Faculdade substituísse provisoriamente o manual de Martini pelos Élements de Droit Naturel de Burlamaqui, vai ensaiando o seu futuro manual, chamado Filosofia do Direito, a partir de 1850, através da publicação de Elementos de Direito das Gentes, de 1839, do Curso de Direito Natural e dos Elementos de Direito Natural.

As ideias em causa foram especialmente vulgarizadas entre nós pelo Cours de Droit Naturel de Ahrens, com um primeira edição de 1837, onde a ciência do direito aparece dividida em três partes: a filosofia do direito, a história do direito e a ciência política, definindo esta como a ciência intermediária entre a filosofia e a história do direito que, por um lado, deve à filosofia do direito o conhecimento do fim e dos princípios gerais de organização da sociedade civil e consulta, por outro lado, na história e na estatística, os precedentes de um povo, o carácter e os costumes que ele manifestou nas suas instituições, o estado actual da sua cultura e as suas relações externas com outras nações; é segundo estes dados que a ciência política expõe as reformas para as quais o povo está preparado para o seu desenvolvimento anterior e que ele pode actualmente realizar.

Refira-se que logo em 1844 surgiu em Coimbra uma tradução de uma parte do curso de Ahrens, levada a acabo por um aluno do primeiro ano, Francisco Cândido de Mendonça e Melo.

Esta corrente krausista, desencadeada por Ferrer, mesmo que ele apenas tenha sido um krausista de fachada, como assinala Moncada, vai ser integrada por uma rica galeria de autores portugueses, como António Luís de Seabra (1798-1895), principalmente em A Propriedade. Filosofia do Direito [1850], José Dias Ferreira (1837-1907), Levy Maria Jordão, o Visconde de Paiva Manso (1831-1875), Martens Ferrão (1824-1895), João de Pina Madeira Abranches (m. 1893) e António Sousa Silva Costa Lobo (1840-1913), principalmente em O Estado e a Liberdade de Associação [1864].

Toda uma geração que vai sustentar um dos períodos mais brilhantes do nosso demoliberalismo, a chamada Regeneração, que, entre outras proezas, permite a instauração de um armistício constitucional, com o Acto Adicional de 1852, e um quadro de estabilidade política, bem como importantes reformas institucionais que têm como marcos fundamentais, a promulgação do Código Civil e a abolição da pena de morte em 1867.

Se foram superados alguns traumatismos oriundos da guerra civil, assistiu-se também ao lançamento de um grandioso programa de melhoramentos materiais, pelo chamado fontismo, contribuindo-se para o revigoramento do Estado-Comunidade, nomeadamento pelo relançamento da chamada democracia da sociedade civil, no sentido liberdadeiro, conforme o programa delineado por Alexandre Herculano e que teve efectivas consequências sociais, como bem expressam os romances de Júlio Dinis (1839-1871).

O krausismo ainda se mantém pujante em plena geração de 70, principalmente em Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1895) que, na sua Teoria do Socialismo [1872], subtitulada Evolução Política e Económica das Sociedades na Europa, utiliza na exposição da história das ideias políticas o esboço de Ahrens, aliás, abundantemente citado.

Este modelo do liberdadeirismo azul e branco constitui uma das mais importantes vitórias da maçonaria na conformação do modo de ser português, gerando um subsolo filosófico que ainda hoje permanece, mesmo que não seja possível estabelecer-lhe a genealogia. Basta recordar essas duas conquistas da nossa história que foram as reformas de 1867 que tanto levaram ao Código Civil do Visconde de Seabra como à abolição da pena de morte.

Aliás, António Luís de Seabra reconhecia expressamente, em A Propriedade. Filosofia do Direito [1850], a coincidência dos respectivos princípios com os de Ahrens, adoptando um individualismo absoluto: a natureza não reconhece senão indivíduos; os géneros, as espécies, são puras abstracções do nosso espírito, ideias de número e semelhança e nada mais. Quando dizemos o homem ou designamos o indivíduo, ou não designamos coisa alguma. Nestes termos, considera que da mesma forma pois que do sentimento de liberdade ou personalidade emanou a ideia de propriedade – a posse segura e tranquila dos objectos úteis e necessários à vida – ou da sua necessidade, nasceu a ideia duma associação em que as forças individuais se contrabalançassem, fundindo-se numa só força em defesa e proveito da liberdade e propriedade individuais. Paralelamente a esta visão da sociedade, Seabra considera que o Estado só tem deveres: do outro lado está o governo com os seus deveres. Estes resolvem-se na manutenção dos direitos individuais e de sua recíproca individualidade. Assim, o interesse geral importa nas democracias o mesmo que a razão de estado nos governos absolutos.

Outro dos elementos marcantes desse caldo de cultura é José Dias Ferreira, autor de Noções Fundamentais de Filosofia do Direito, de 1864, e de Código Civil Portuguez Annotado, de 1870, onde já se nota a influência directa de Hegel e uma certa reacção contra a vertente individualista do krausismo ferrerista, quando se considera que há uma certa porção de bem cuja realização, como responsável à realização da vida humana, não pode ficar dependente dos caprichos ou da vontade individual de cada homem. A conservação da vida social está de tal modo dependente da realização objectiva desta porção de bem que não pode satisfazer-se nesta parte só com a garantia das boas intenções, tão impreterível é a realização desta porção de bem.

Segundo Cabral de Moncada, o autor em causa é um dos pioneiros na introdução em Portugal de uma concepção social de direito, nomeadamente pela teorização do conceito de abuso do direito: sendo o justo a expressão de um princípio natural, não pode conceber-se, sem contradição dos próprios decretos da Providência, como uma lei do Criador possa autorizar acções diametralmente opostas ao fim para que a mesma Providência as destinou.

Também Levy Maria Jordão, o Visconde de Paiva Manso, vai, por seu lado, aplicar o sistema krausista ao direito penal, sendo também autor da única história da filosofia do direito publicada em Portugal durante o século XIX. Aceitando o essencial das teses de Krause, nomeadamente o panteísmo, a consideração do homem e da sociedade como microcosmos, como tentativas de imitação da ordem universal, perspectivada como um organismo dotado de vida, assume uma espécie de metafísica suave, onde se proclama o fim humano da perfeição e um desenvolvimento progressivo, integral e harmónico.

Com efeito balanço liberdadeiro da primeira metade do nosso século XIX tinha sido francamente negativo. Entre ocupações e protecções estrangeiras (de 1806 e 1820) vamos ter variadas experiências constitucionais – o texto de 1822 vai vigorar cerca de meio ano, até à Vilafrancada e depois, entre 1836 e 1838; a constituição histórica entre 1823 e 1826 e entre 1828 e 1834; a Carta Constitucional entre 1826-1828, 1834-1836 e, de novo, a partir de 1842; a Constituição do setembrismo, entre 1838 e 1842. Não faltam sequer as horrorosas guerras civis de 1828-1834 e de 1846-1847. E não deixámos de ter experiências ditatoriais dos mais diversos signos, da ditadura plebeia e do terrorismo de Estado do miguelismo à ditadura do guerreiro e reformador D. Pedro, passando pelas ditaduras do setembrismo, regeneradora, e do cabralismo, restauradora. Acrescentem-se as humilhações sofridas pela nossa pequenez face a uma balança da Europa onde vigorava a hierarquia das potências. E, last but not the least a traumática separação do Brasil, essa reprodução do reino em terras de além-mar, levada a cabo pelos portugueses do outro lado do Atlântico com a liderança do próprio sucessor ao trono de Portugal.

As sucessivas experiências de modelos eleitorais, do vintismo ao cartismo, para regressarmos ao vintismo, experimentarmos o modelo da Constituição de 1838 e voltarmos finalmente ao cartismo, levaram a que as eleições fossem sempre marcadas por climas de violência, com deputados a emergir de listas que nada tinham a ver com a opinião pública e até com os mínimos de representatividade política. Aliás, ainda nem existiam partidos propriamente ditos, mas facções flutuantes e quase sempre apoiadas pela força armada.

Quem vencia, vencia sempre no interior das disputas ocorridas na camada dos vencedores, pressupondo que a metade do país vencida tinha de continuar sujeita ao silêncio, quando não ao confisco e ao saneamento, pelo que os governos foram sempre minoritários face à comunidade donde deveriam emergir, segundo os conceitos vigentes de representação política. Por outras palavras, tanto não funcionava a representação quantitativa como não podia vislumbrar-se a própria representação qualitativa, dado que os detentores do mandato de deputado nem sequer eram os melhores, a valentior pars.

A má relação estabelecida entre os portugueses e a representação política, antes do movimento da regeneração, contribui para que muitos dos nossos melhores intelectuais desconfiassem do demoliberalismo. Aliás, os ideais da liberté, egalité et fraternité haviam-nos chegado através de uma invasão militar estrangeira, levando ao paradoxo do liberal ter começado por conformar-se como colaboracionista, ao mesmo tempo que o reaccionário se assumia como o libertacionista. Confusões que só um longo parto teórico e uma efectiva prática de tolerância irão superar.

Mas, a partir de1851, com a Regeneração, terminado que foi o período de sangrentas lutas caseiras, entrou em cena um liberalismo centrista e nacionalizado, herdeiro conservador de um romantismo que fora revolucionário.

Mas não é apenas no plano das reformas políticas internas que se nota a influência desse humanismo laico de inspiração maçónica. Também no plano da política internacional, importa inventariar o elenco dos nossos principais europeístas.

Saliente-se a célebre obra de Almeida Garrett, Portugal na Balança da Europa, editada em Londres, no ano de 1830, onde, em nome da esperança, se procurava pensar enraizadamente do que tem sido Portugal e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado, desejando-se: Oxalá as honradas cãs do antigo Portugal, se já não é possível remoçá-lo, vivam ao menos em honesta e respeitada velhice; nem por impiedade de seus filhos o escarneçam desalmados estrangeiros na segunda infância da decrepitude, desonrado dos seus, insultado de estranhos, desamparado de todos! Praza a deus que todos, de um impulso, de um acordo de simultâneo e unido esforço, todos os portugueses, sacrificadas opiniões, esquecidos ódios, perdoadas injúrias, ponhamos peito e metamos obra à difícil mas não impossível tarefa de salvar, de reconstituir, a nossa perdida e desconjuntada pátria, - de reequilibrar enfim Portugal na balança da Europa!.

Mas outros portugueses da mesma cepa foram também pensando a Europa. Solano Constâncio, em 1815, fala-nos do equilíbrio sonhado da Europa, de uma espécie de código comum, o qual, apesar de muitas infracções parciais, formava o direito das gentes em toda a Europa até à época da repartição da Polónia e da revolução da França, acrescentando que se alguma potência recusa a reconhecer os princípios salutíferos e protectores da felicidade e da independência das outra nações, seja essa declarada e tratada como inimigo comum, e se não pudermos combater com um género de armas, lancemos mão de todos os outros meios de defender os nossos direitos e interesses contra as suas pretensões.

Da mesma forma José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, que, entre Maio de 1823 e Junho de 1824, foi Ministro da Guerra, editou, logo em 1821, um sugestivo Projecto de Guerra Contra as Guerras, ou da Paz Permanente Offerecido aos Chefes das Nações Europeias, onde propunha que as principais potências europeias, reunidas em Congresso, celebrassem um Pacto Imperial, onde não só renunciariam à guerra como também se comprometeriam na resolução pacífica dos conflitos, ao mesmo tempo em que se instituía um Conselho Supremo ou Supremo Tribunal de Justiça, onde cada potência confederada, estaria representada por dois deputados. As potências confederadas poderiam fazer a guerra defensiva ou ofensiva contra potências estranhas. Previa-se a existência de uma força militar permanente.

E, duas décadas depois de Garrett, o já referido Vicente Ferrer de Neto Paiva, na sua Philosophia do Direito, de 1857, apelava à federação de nações, herdeira dos Amphictyões da antiga Grécia e dos adeptos da Dieta germânica, proclamando que seria para desejar, que se organizasse não digo já a grande associação da humanidade mas uma associação europeia, procurando tornar uma realidade o que se tem chamado um bello sonho de alguns Philosophos como o Abbade de St. Pierre, Kant, Rousseau, etc. - a 'paz perpetua': o Direito das Gentes teria um tribunal, que administrasse justiça entre as nações da Europa decidindo pacificamente as questões que se originassem à cêrca dos seus direitos. As nações da Grecia, nos tempos antigos, com a junta dos Amphictyões, as da Alemanha nos modernos, com a Dieta germanica, e em geral todas as federações de nações, subministram typos para a organização da grande sociedade da Europa. Os congressos e conferências, que por vezes se têm reunido, provam, que as nações da Europa tendem para esta instituição, e que sentem a sua conveniência política.

Continuando esse belo sonho, eis que, poucos anos depois, nos aparece um Bernardino Pinheiro, com o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de 1859-1860, a defender expressamente uns Estados Unidos da Europa.

Década e meia volvida, chega a vez de António Ennes (1848-1901) que em A Guerra e Democracia, de 1870, apelava, de novo a uns Estados-Unidos da Europa.

Vejamos, agora, alguns dos reflexos do movimento do federalismo em Portugal, destacando tanto as teses de Antero Quental (1842-1891) que, em 1872, chega a propor para a península ibérica uma federação republicano-democrática, como as ideias sobre a reconstrução federativa, de Oliveira Martins (1845-1894).

Desta geração, merece também a tradução que Sebastião Magalhães Lima faz em 1874 da obra de Charles Lemonnier Les États Unis de l'Europe, publicada dois anos antes.

Julgo que há toda uma concepção do mundo e da vida que está à espera de inventário, a fim de se demonstrar a influência que o humanismo laico, de matriz maçónica, no pensamento jurídico-político português anterior à emergência do organicismo positivista e do republicanismo, dado que a semente lançada por essa primeira geração demoliberal, ao lançar-se, difusa e globalmente, pela infra-estrutura formativa do português contemporâneo, lançou raízes que nunca mais seriam decepadas.