A PROCURA DA CIÊNCIA POLÍTICA
1 - Nota introdutória.
Em Agosto de 1993, apresentámos, para efeitos do concurso para Professor Associado, um relatório incluindo o programa, os conteúdos e os métodos do ensino teórico e prático da disciplina de Ciência Política do 2º ano da Licenciatura em Relações Internacionais. Cerca de três anos depois, tendo em vista a obtenção do título de Professor Agregado, voltámos a insistir na mesma disciplina, não para nos repetirmos, mas para marcarmos a permanência de uma atitude face a uma profunda alteração das circunstâncias no ambiente que rodeia o ensino de uma ciência política em português e, muito em especial, numa licenciatura em Relações Internacionais [1]. É parte deste texto que agora publicamos.
Com efeito, se ainda há três anos, a ciência política em Portugal padecia de uma certa indiferença da comunidade académica e os respectivos cultores quase eram obrigados a proclamar a necessidade da sua autodeterminação [2], eis que, nestes finais de 1996, ela saiu dos seus borghettos e passou a sofrer do mal inverso, isto é, do cíclico assalto dos ventos da moda.
Basta abrirmos um dos semanários de fim de semana destes começos do Outono e passarmos os olhos pelas parangonas publicitárias dos cursos universitários para verificarmos que, neste momento, a matéria de ciência política aparece como título de uma recente licenciatura da Universidade Nova de Lisboa [3], bem como de um novo Mestrado da Universidade Católica [4], ao mesmo tempo que baptiza três licenciaturas de universidades privadas de Lisboa: no Instituto Superior de Matemáticas e Gestão, integrado naquilo que foi requerido como Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [5]; na Universidade Internacional [6] e na Universidade Lusíada [7]. A própria Faculdade de Direito de Lisboa anunciou um curso de pós-graduação em ciências político-administrativas, com uma vertente política [8].
Também mais recentemente foi republicado, sem alterações, um relatório elaborado em 1985 por Manuel Braga da Cruz e Manuel de Lucena sobre a Introdução e Desenvolvimento da Ciência Política nas Universidades Portuguesas [9]. Acresce que as matérias da ciência política e da teoria política passaram também a constituir tema obrigatório de algumas crónicas semanais publicadas na imprensa lisboeta, desde as colaborações do Professor João Carlos Espada no Público [10] aos artigos de alguns graduados da Universidade de Georgetown no Diário de Notícias.
Mesmo um antigo Presidente da República, o Dr. Mário Soares, quando desencadeou a constituição de uma Fundação com o seu próprio nome, logo indicou que a mesma se dedicaria à ciência política e uma das primeiras actividades programadas pela mesma instituição para o ano de 1997 - uma série de conferências em nome da invenção democrática - mobiliza um dos mais ricos painéis de politólogos norte-americanos [11]. Na mesma senda, um antigo candidato à Presidência da República, o Professor Diogo Freitas do Amaral, mal regressou das suas funções de Presidente da Assembleia Geral da ONU, em declarações públicas e escolares, logo anunciou ir dedicar-se a matérias de ciência política e de teoria das relações internacionais. E ambos parecem encantados pelo modelo da politologia norte-americana, principalmente pelo entendimento que nessas paragens se dá ao conceito de political theory e que, entre nós, tem sido cultivado pelos antigos membros do Clube da Esquerda Liberal, pela desaparecida revista Risco e pela extinta editora Fragmentos.
Infelizmente, a nível da produção científica, desde dissertações de doutoramento e de mestrado a outros trabalhos de investigação, não houve em Portugal uma alteração anormal das circunstâncias no sentido de uma global procura da excelência, dado que continuamos a pautar-nos, neste domínio, por uma baixa e empobrecida mediania. Apesar da existência de saudáveis sinais de concorrência teórica, essas boas intenções parecem não ser concretizadas por uma produção propriamente portuguesa, dado que se invocam, sobretudo, mestres estrangeiros e se elaboram muitas colectâneas de páginas que outros escreveram sobre alienígenas circunstâncias e de acordo com valores inadequados às nossas pertenças. Isto é, os sinais dos tempos deste portuguesíssimo aqui e agora ainda são pouco propícios àquilo que a nossa autonomia cultural exige, dado que tendem a predominar recepcionismos e vulgatas, ao mesmo tempo que a opinião, que devia ser crítica, parece preferir o mimetismo face às vagas da moda e se enreda no vedetismo mediático, embora disfarçado pelo pretenso intelectualismo do opinion maker. Esquecendo que só é moda aquilo que passa de moda, emerge assim um politically correct à portuguesa, onde os herdeiros do snob cultivam os sinais exteriores do texto ininteligível, prenhe de citações inantingíveis ou carregado de doutrinarismos em comprimido, em que o hermético das ideias, em vez de procurar o conhecimento modesto à cerca de coisas supremas, regressa ao ideológico e ao dopping da fuga para a utopia e da deriva do criticismo nihilista.
Contudo, foi também neste ano de 1996 que o Professor Adriano Moreira editou a sua Teoria das Relações Internacionais, o primeiro manual universitário português sobre a matéria que, apesar de aberto aos sinais dos tempos, radica numa linha de coerência que vem das lições de Política Ultramarina [1956] e passa por Ideologias Políticas [1964] e por Ciência Política [1979]. Com efeito, quem quer reflectir sobre a polis dos portugueses a partir das nossas próprias circunstâncias não pode abstrair das concretas realidades do Estado-Aparelho de poder e do Estado-Comunidade que, nestas últimas quatro décadas, passou de uma dimensão planetária e imperial a simples parcela de uma União Europeia. Porque a reflexão sobre o poder político, em português, entre o auge da guerra fria e as actuais indefinições que rodeiam tanto o projecto europeu da era pós-maastrichtiana como a procura de uma nova ordem internacional, não pode deixar de se pautar pela dimensão internacional do fenómeno político. O recente manual do Professor Adriano Moreira constitui assim um dos principais repositórios sobre a teoria do poder político, entendido como relação e como estratégia, superando-se algumas das perspectivas mais radicalmente realistas que eram dominantes antes das consequências do ano 1989. Talvez seja este o principal desafio da obra: a abertura ao entendimento do poder dos sem-poder, a procura daquele sentido profético que marca o caminho trilhado por João Paulo II e a redescoberta da permanência dessa diferença nacional que parece bem mais permanecente que a dimensão soberana da estadualidade.
Mas, neste mesmo ano de 1996, o Professor Adriano Moreira reuniu em Notas do Tempo Perdido várias crónicas de intervenção cívica que pretendeu ligar a um ciclo iniciado com O Tempo dos Outros [1968] e continuado com Tempo de Vésperas [1971] e Comentários [1989], onde recolhe uma série de reflexões sobre o fim do ciclo do Império, a mudança do regime e os reflexos internos da opção europeia, do fim da guerra fria e da procura de uma nova ordem mundial, em nome da paz pelo direito [12].
Por mim, tento não ceder a este processo difuso que trata de cortar, uma a uma, as raízes da identidade de uma determinada situação cultural e da consequente identidade política. Não nos move um qualquer nacionalismo estreito, mas antes um quase sentido de missão em prol do reforço daquela âncora de valores múltiplos que permite dar, a cada indivíduo, coerência, permanência e estabilidade, facilitando a socialização e superando as diferenciações ou desigualdades de natureza, classe, estatuto ou educação, permitindo a afirmação do vínculo comum existente entre os membros de uma dada comunidade, o tal quid que permite a vivência constante da cidadania.
Quando uma comunidade se desintegra culturalmente, desenraizando-se do húmus onde se aconchegam e vivificam os respectivos valores e, sobre um vazio de pertenças, apenas actuam os holismos de um Machtstaat - por exemplo, a exigência do imposto - , pode criar-se um aparelho de poder desligado da comunidade, ou um estado de violência, susceptível de justificar eventuais actos de violência e, quiçá, a própria legítima defesa daquele individualismo que, perante um vazio de solidariedade, já não é capaz de invocar o aqui d’el rei.
Contudo, a desesperada invocação de um sincrético nacionalismo, mais ou menos confundido com um mitificado soberanismo, isto é, o apelo que se faça a um superinvestimento identitário num só tipo de pertença política, pode fazer-nos esquecer que a república dos portugueses é uma daquelas comunidades ou nações que já existiam antes do Estado, da soberania e do próprio nacionalismo e que tinham hábitos de relação saudável com as comunidades infranacionais e supranacionais. Hoje, só uma comunidade nacional que possa reforçar a pluralidade de pertenças é capaz de garantir os sentimentos positivos de fidelidade face a uma herança e, consequentemente, os laços de solidariedade. Só o respeito pelas experiências comunitárias de valores, o reforço da memória e dos projectos comuns pode dar estabilidade a uma vida quotidiana onde o sentido do bem comum exige o reforço das pertenças partidárias, religiosas, familiares.
Do mesmo modo, a educação para a cidadania tem também de reforçar as grandes causas das solidariedades supra-nacionais ou civilizacionais, desde as identidades europeias e ocidentais ao bem maior da pertença a uma cidadania do género humano, a uma república universal, inevitável consequência de qualquer Estado de Direito, onde a paz pelo direito constitui o projecto maior dos que pretendem que a força da razão seja mais forte que a razão da força.
Aliás, se fosse possível viajarmos numa qualquer máquina do tempo, aterrando no passado português de há cem anos, por exemplo, numa aula de princípios de direito político do Professor José Frederico Laranjo, na única escola de ciências sociais então existente em Portugal, a Faculdade de Direito de Coimbra, encontraríamos preocupantes semelhanças com a actualidade, tanto a nível do objecto dos estudos políticos como do processo de estudo desse mesmo objecto. Cem anos depois, as grandezas e as misérias do Portugal Contemporâneo permanecem nos planos da organização política e da mentalidade universitária, com idêntica sociedade relativamente aberta e paralela democracia política, ambas marcadas por uma obsidiante oligarquização e pela consequente corrupção, enquanto, no tocante aos subsolos filosóficos, o fundo positivista e o subsequente cepticismo permanecem os mesmos.
Tal como há cem anos, a democracia portuguesa volta a enredar-se na secura processualista das chicanas sobre as regras do jogo, predominando a legitimação pelo procedimento sobre as raízes morais e o sentido cívico, ao mesmo tempo que um inevitável regime de porta aberta e de internacionalização, sem as fundações de uma assumida autonomia cultural, propicia formas miméticas de colonização doutrinária.
Esta continuidade psicológica de um povo e esta permanência dos processos de formação das elites, com as inevitáveis degenerescências classistas dos smart set e jet set, talvez impusesse que os amadores e profissionais da política à portuguesa fossem sujeitos à leitura obrigatória do Portugal Contemporâneo de Joaquim Pedro Oliveira Martins, do Vale de Josafat de Raúl Brandão e dos vários volumes da Conta Corrente de Vergílio Ferreira. Pelo menos, poder-se-ia contribuir para a não-repetição daquelas atitudes que conduzem ao ridículo…
[1] Os autores indicados por maiúsculas, seguidas por uma data dentro de parênteses rectos [ ], constam da bibliografia geral da segunda parte.
[2] Foi esse o tom do nosso Relatório do Concurso para Professor Associado, contendo o programa, conteúdo e métodos da disciplina de Ciência Política, apresentado em Agosto de 1993 numa edição policopiada. As partes menos conjunturais do mesmo texto, depois de revistas e desenvolvidas, foram incluídas numa edição impressa, Sobre a Ciência Política, Lisboa, ISCSP, 1994.
[3] Na nova licenciatura de Ciência Política/Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, com uma estrutura curricular bastante próxima do modelo anterior da licenciatura em Ciência Política da Universidade Internacional, fundada pelo Professor Adriano Moreira, a comissão científica é dominada pelos professores de história e teoria das ideias, com destaque para A. H. Oliveira Marques, Esteves Pereira e Zília Osório de Castro, para além do internacionalista José Medeiros Ferreira e do filósofo Mário Sottomayor Cardia, reassumindo-se uma profunda tradição do humanismo laico português e invocando-se a circunstância de muitos dos docentes da Universidade Nova de Lisboa terem ocupado altos cargos governativos. Entre as disciplinas politológicas do tronco comum, surgem as de Teoria Política, Teoria do Estado, Antropologia Política, História do Estado Moderno, História das Ideias Políticas, Sistemas Políticos e Sociologia Política. Na variante de ciência política dos 3º e 4º anos, Análise Política, Sistemas Eleitorais, Teorias da Justiça, Partidos e Grupos de Pressão, Administração Pública, Regimes Parlamentares, Políticas Sociais, História das Tensões Políticas, Pensamento Político Português, Espaço Público e Opinião, Instituições Comunitárias, Comunicação Política, Dinâmica da Democracia, Elites Políticas.
[4] O Curso de Mestrado em Teoria e Ciência Política, coordenado pelo Professor João Carlos Espada, tem o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e considera-se um projecto pioneiro. Inclui as disciplinas de Teorias da Constituição, Teoria e Ciência Política Contemporânea I e II, História do Pensamento Político, Construção Europeia, Introdução à Economia Política, Sistemas Políticos e Eleitorais, Teoria das Relações Internacionais, Filosofia Moral e Teorias da Justiça. Para os seminários intensivos foram convidados os professores norte-americanos Richard H. Cox, Gordon S. Wood, Larry Diamond e William Galston, respectivamente professores em Bufallo (SUNY), Brown, Stanford e Maryland. Curiosamente, o teste de admissão consiste no comentário em português de um texto clássico de Teoria e Ciência Política em língua inglesa, o que bem demonstra a filiação em certo modelo norte-americano de teoria e ciência política, em que a teoria política não é considerada como campo da ciência política, mas como certa visão arquitectónica de ciência. O novo modelo parece não se enraizar na experiência do grupo de filosofia política da mesma Universidade ou da anterior Pontifícia Faculdade de Filosofia de Braga.
[5] A licenciatura em causa é dirigida pelo Professor Santos Neves, seguindo alguns dos modelos de certo filosofismo estruturalista das ciências sociais francesas.
[6] A licenciatura em Ciência Política da Universidade Internacional, dirigida pelo Professor Adriano Moreira, começou a funcionar no ano lectivo de 1993-1994. Depois de dois anos de tronco comum, surgem as variantes de Relações Internacionais e de Ciências do Estado. Entre as disciplinas politológicas do tronco comum, surgem as de Introdução à Ciência Política, Teoria das Relações Internacionais, História das Doutrinas Políticas, História Política Portuguesa, Sociologia Política, Teoria dos Conflitos, Filosofia Política. Na especialização de Ciências do Estado, destacam-se as de Regime Político Português, Economia Pública, Política Comparada, Governo e Administração, Teoria dos Partidos Políticos, Teoria da Sociedade Civil, Campanhas e Sistemas Eleitorais, Técnicas da Luta pelo Poder e Teorias da Democracia.
[7] A nova licenciatura é dirigida pela Professora Maria José Stock.
[8] Neste curso colaboram docentes do Instituto de Ciências Sociais: em Sociologia Política, Manuel Villaverde Cabral, em Teorias Políticas Contemporâneas, João Carlos Espada e em Sociologia Eleitoral, Manuel Braga da Cruz.
[9] O texto, inicialmente publicado na Revista de Ciência Política, nº 2, pp. 5-41, foi agora reeditado por Manuel Braga da Cruz, Instituições Políticas e Processos Sociais, Venda Nova, Amadora, 1995, pp. 19 segs..
[10] De João Carlos Espada, refira-se a colectânea Dez Anos que Mudaram o Mundo. Crónicas sobre o Renascimento da Ideia Liberal [1992], bem como Social Citizenship Rights. A Critique of F. A. Hayek and Raymond Plant [1996].
[11] Entre os politólogos estrangeiros convidados, contam-se Samuel Huntington, Philippe Schmitter, Larry Diamond, Robert Pastor, Ralf Dahrendorf, Alfred Stepan e Gertrude Himmelfarb. Os contributos portugueses estão a cargo do Professor Diogo Freitas do Amaral e do próprio Dr. Mário Soares, agora professor da nova Licenciatura em Relações Internacionais da Universidade de Coimbra, marcada pelo estilo do Professor Boaventura Sousa Santos, e que apareceu como historiador convidado para abrilhantar a série O Século do Povo da principal estação televisiva privada do país. O ciclo de conferências em causa é apoiado pelo National Endowment for Democracy e pelo International Forum for Democratic Studies de Washington. Curiosamente, depois do sucesso mediático da primeira conferência, um dos doutorandos de Georgetown, Vasco Rato, colaborador do Diário de Notícias e professor da Universidade Lusíada, publicou n’O Independente de 25 de Outubro uma demolidora crítica das teses de Huntington, intitulada Vagas Teorias. Por outras palavras, reproduziu-se em Portugal uma polémica norte-americana, dando-lhe certa coloração de soarismo contra cavaquismo, como se as várias seitas da politologia norte-americana, com todo o seu etnocentrismo, pudessem elevar-se à categoria da divindade e de motorizadas da última candidatura presidencial desta pequena casa lusitana…
[12] Adriano Moreira, Notas do Tempo Perdido, Matosinhos, Contemporânea, 1996.