12 - Politologia norte-americana.

 

Apesar do esforço intelectual das universidades europeias, continua a preponderar a politologia norte-americana. Não apenas pela abundância quantitativa dos respectivos cultores, como também pela própria abundância de qualidade.

Aliás, o pioneirismo norte-americano nos domínios da ciência política, logo acompanhado pelo esforço britânico, levaram o mundo anglo-saxónico a assumir uma preponderância dificilmente destronável. Ainda hoje, cerca de 90 % da produção bibliográfica mundial em ciência política provém do universo norte-americano.

O atraso dos franceses quanto a uma consensualização sobre a ciência política impediu também que a própria cultura latina pudesse concorrer em termos quantitivos neste desafio da globalização. Um certo chauvinismo parisiense pode amargurar-se com a circunstância injusta de não ser citado nos manuais norte-americanos, e até verificar que outras politologias europeias não anglo-saxónicas, como a alemã e a italiana, são mais depressa acolhidas no seio da American Political Science. É a diferença que vai do minitel à internet e do logiciel ao software. Mas mais razões de queixa têm autores de língua castelhana, e nem sequer vale a pena medir a visibilidade do mundo da lusofonia nesse contexto, onde, infelizmente, abundam as próprias culpas intestinas.

Mas a influência da actual ciência política norte-americana não significa necessariamente um corpo estranho aos modelos europeus do pensar e estudar a política. Essa preponderância é quase equivalente à influência que as correntes europeias tiveram na génese e no desenvolvimento da politologia norte-americana. Basta recordar as marcas da teoria geral do Estado germânica, do darwinismo e do psicologismo entre os pais-fundadores da disciplina de ciência política ou assinalar a importância dos emigrantes germânicos dos anos trinta e quarenta, com destaque para Hannah Arendt (1906-1975), Eric Voegelin (1901-1985), Leo Strauss (1899-1973), Theodor Adorno (1903-1969), Max Horkheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979), Erich Fromm (1900-1980), Ludwig Von Mises (1881-1973), Joseph Schumpeter (1883-1950), Carl J. Friedrich, Hans J. Morgenthau e o próprio Hans Kelsen (1881-1973).

Kelsen, o professor e jusfilósofo austríaco, autor das teorias puras do direito e do Estado, responsável por fundamentais aprofundamentos do pensamento jurídico a partir dos anos trinta, é também um dos mais eminentes teóricos da democracia, principalmente durante o exílio norte-americano, destacando-se a obra Foundations of Democracy [1955-1956], onde recolheu esquecidos trabalhos publicados em 1920, 1925 e 1929.

Austríaco é também Ludwig Von Mises, um dos patriarcas do neoliberalismo que, depois da Segunda Guerra Mundial, publica algumas das suas principais obras no exílio anglo-saxónico, com destaque para Omnipotent Government. The Rise of Total State and the Total War [1944], e Liberalism in the Classic Tradition [1962].

Da Europa também vêm os checoslovacos Joseph Schumpeter, autor de Capitalism, Socialism and Democracy [1942], e Hans Kohn, um dos precursores do entendimento dos fenómenos nacionalistas como actualmente vão explodindo em etnonacionalismos e pan-nacionalismos.

Mesmo nos nossos dias, um italiano como Giovanni Sartori, que ensina e publica tanto em New York como em Florença, é o exemplo de alguns outros demonstradores da essencial unidade mental das formas políticas ocidentais. Aliás, a própria revolução norte-americana, como tão bem o demonstrou Hannah Arendt, enraíza-se nas profundidades de um pensamento e de uma prática consensualistas da Europa: não foi por acaso que Montesquieu serviu de guia para os constituintes norte-americanos.

A tradicional perspectiva de certo dogmatismo francês que isola os anglo-saxons da restante Europa, só porque estes não aderiram aos modelos de Estado Moderno provenientes do absolutismo e da Revolução Francesa, ditados pelos compêndios únicos das universidades estadualizadas dependentes do aparelho de poder central, muitas surpresas terá quando verificar que as concepções do político que acabaram por conformar o Reino Unido e os Estados Unidos da América também poderiam ter vencido no restante mundo ocidental se este não tivesse adoptado o jusconceitualismo da soberania una, indivisível, inalienável e imprescritível, iniciado pelo absolutismo da monarquia de direito divino e não desabsolutizado pelo não menos absoluto democratismo jacobino.

O que impressiona na politologia norte-americana é um lastro de fidelidade face a uma concepção pluralista da democracia, bem diversa da perspectiva estadualista e jacobina que acabou por ser dominante no restante mundo ocidental. Daquela democracia concreta e existencial que atravessa o quotidiano do seu povo e o funcionamento das suas instituições [1], dessa filosofia democrática de vida que gerou um corpo político que é o único que nasceu plena e explicitamente da liberdade, da livre determinação dos homens em viver em conjunto e como tal trabalharem para um fim comum para utilizarmos palavras de Jacques Maritain [2].

Contudo, é da ciência política norte-americana que também nos tem chegado a tragédia da ciência política, para utilizarmos uma expressão de David M. Ricci, isto é, o conflito entre a aceitação das técnicas científicas, herdadas do darwinismo social, do funcionalismo e do behaviorismo, e alguns dos pressupostos fundamentais dos ideais democráticos, nomeadamente o princípio da racionalidade dos cidadãos comuns. Um conflito que atingiu os níveis do paradoxal em plena guerra fria, quando os teóricos do neo-empirismo e do behaviorismo anglo-saxónicos que, no plano científico, clamavam pela neutralidade axiológica, acabaram por ser mobilizados por uma cruzada anti-sovietista, em nome da democracia, do pluralismo, da sociedade aberta e da ideologia dos direitos do homem.

Vejam-se algumas das mais recentes contribuições para a recuperação do pensamento democrático, segundo a perspectiva pluralista, provindas das fileiras da politologia. Robert Dahl, por exemplo, o autor que cunhou o termo poliarquia, produziu nos anos oitenta três profundas obras de reflexão sobre a matéria: Dilemmas of Pluralist Democracy [1982], A Preface to Economic Democracy [1985] e o monumental Democracy and Its Critics [1989] [3]. Samuel Huntington, consagrado especialista na mudança política e nas relações entre políticos e militares, elaborou, em 1993, uma curiosa tese sobre The Third Wave da democracia, que começa precisamente pelo nosso 25 de Abril e coloca a luta dos anticomunistas portugueses do Verão Quente de 1975 como ponto de partida para a eliminação dos regimes autoritários na Europa e para as posteriores revoluções de veludo que conduzirão ao colapso do sovietismo. Giovanni Sartori, em 1977, edita a sua Theory of Democracy Revisited, em dois volumes, onde tanto refere o debate contemporâneo como os problemas clássicos, retomando uma senda, iniciada em 1957, com Democrazia e Definizione. Mais recentemente [1993], estuda a democracia depois do comunismo e faz uma revisão crítica do conceito de totalitarismo.

 


 

[1] Jacques Maritain, Refléxions sur l'Amérique, Paris, Fayard, 1958, p. 171.

[2] Idem, pp. 178-179.

[3] Segundo o Hall of  Fame da American Political Science Review, Robert Dahl aparece como um dos mais citados politólogos norte-americanos, entre 1954 e 1994, ao lado de W. H. Riker, P. E. Converse, A. Wildavsky, R. Axelrod e Karl Deutsch. In  PS. Political Science and Politics, XXIX, nº 2, Junho de 1996, p. 192.