24 - A tragédia da ciência política.
Contudo, depois de receber os contributos do funcionalismo e do sistemismo, a mesma ciência política enveredou pelo modelo cibernético, atingindo a fase da revolução pós-behaviorista, onde o poder político, o political power, passou a assumir-se como algo de qualitativamente diferente do mero poder social, ou do poder em geral, e onde o sistema político (political system) emergiu como uma especificidade dentro do sistema social, sendo encarado como um processo de tomada de decisões (process of making a decision).
É, aliás, em 1969, que David Easton fala na necessidade de uma postbehavioral revolution nos domínios da ciência política, visando conciliar os métodos quantitativos da revolução comportamentalista com os dados qualitativos da teoria política pelo regresso à síntese entre o factualismo e a axiologia [1].
Esta anunciada viragem de rumo respondia a um desafio: os ataques que os cientistas políticos da New Left e da contra-cultura norte-americanas, com Herbert Marcuse, Paul Goodman, Erich Frommm, C. Wright Mills, Noam Chomsky e Charles Reich, faziam ao positivismo e ao cientismo dos novos mandarins, num tempo em que o próprio sentido comunitário norte-americano se estiolava face à revolta dos estudantes e à contestação da intervenção na Guerra do Vietname.
Contudo, Easton partia de outra base contestatária, da ala reformista que, dentro da APSA, defendia uma New Political Science, e era constituída por autores como Daniel Moynihan, Leo Strauss, Henry Kariel, Theodor Lowi, Michael Walzer, Morris Janowitz e Charles McCoy. Um movimento que, em 1967, organizou um Caucus para o efeito [2].
Foi este grupo que, a partir de dentro e com um sentido reformador, assumiu a tensão dos pós-behavioristas contra os tradicionalistas, expressão com que passaram a ser qualificados os behavioristas. Com eles, a ciência política voltou a assumir uma responsabilidade moral.
Invocaram para o efeito muitas das teses explanadas por Thomas Kuhn, em The Structure of Scientific Revolutions [1962], especialmente o endeusamento do método, considerando que uma actividade, mesmo após alcançar o nível de cientificidade, depois de ter vencido as barreiras do empirismo, da falsificação e da tentativa, nem por isso pode ser objecto de uma ilimitada confiança.
Aliás, uma das críticas mais mordazes ao empirismo veio do próprio Easton que, no artigo citado, referiu a circunstância de, entre 1958 e 1968, a revista da APSA ter apenas publicado três artigos sobre a questão urbana, quatro sobre conflitos raciais, dois sobre a desobediência civil, dois sobre a violência e um sobre a pobreza. Por outras palavras, reconhecia que as boas intenções empírico-analíticas e os votos de piedade no sentido do realismo acabavam por desviar-se das realidades inconvenientes.
O messianismo positivista que marcara as ciências sociais dos anos quarenta e cinquenta amargurava-se no desencanto e na revolta.
Como em 1985 confessava Seymour Martin Lipset, os académicos da ciência política behaviorista viam-se como parte de um movimento social que ergueria as ciências sociais aos níveis anteriormente atingidos pelas ciências naturais e estavam convencidos que as mesmas tinham, finalmente, rompido as barreiras metodológicas e teóricas que as tinham mantido num estádio pré-científico. O próprio poder político estabelecido quase lhes dava o estatuto de engenheiros sociais, atribuindo-lhes a missão de indicarem aos decisores políticos os meios que estes deviam seguir para atingirem determinados objectivos [3].
Por outras palavras, os campeões da objectividade e da fuga aos valores, acabavam por ser instrumentos dos valores dos príncipes e mandarins do establishment. Paradoxalmente, a potência liderante das democracias ocidentais, aceitava os mesmos postulados cientificistas do marxismo-leninismo que marcava o ritmo do seu adversário soviético. Valeu aos norte-americanos não ter sido possível transformar a corrente dominante numa doutrina oficial; acresce que a concorrencialidade teórica e o pluralismo acabaram por gerar aquela ebulição de ideias onde se encontrou uma alternativa.
As denúncias face ao paradigma científico dominante nas ciências sociais dos anos cinquenta já tinham sido eloquentemente sistematizadas por Peter Winch em 1958, em The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy, onde se criticava a possibilidade da construção de generalizações a partir de seres humanos e das suas posições sociais, acentuando-se a necessidade do estudo das significações e da ideias que cada homem utiliza nas suas relações. Para Winch, aliás, as relações entre os homens, isto é, a marca definidora do fenómeno social e a sua verdadeira natureza, não passariam de ideias incarnadas na acção. O mesmo autor, em Understanding a Primitive Society [1964] [4], faz uma crítica cerrada a Evans-Pritchard e a todos os outros cientistas sociais que tentaram aplicar os conceitos ocidentais de ciência e de lógica para a análise dos chamados primitivos actuais, daí extraindo categorias para posterior aplicação aos próprios ocidentais.
Idêntica posição virá, aliás, a ser assumida, no universo norte-americano, por Alasdair MacIntyre, nomeadamente em Against the Self-Images of the Age [1978], e por Dorothy Ross, em The Origins of American Social Science [1991]. MacIntyre, embora reconhecendo que na vida existem regularidades estatísticas e comportamentais, insiste na circunstância das ciências sociais não poderem descobrir qualquer tipo de lei comparável ao das ciências naturais. Da mesma forma, critica acerbamente a crença positivista na possibilidade da ciência poder controlar o comportamento social: a noção de controlo social que está subjacente à noção de perito é, na verdade, uma mascarada.
Mesmo no próprio campo da ciência política surgiam importantes focos de criticismo. Os adeptos de Eric Voegelin, a partir das linhas programáticas fixadas em The New Science of Politics [1952], bem como os seguidores de Leo Strauss, insistiam nas suas críticas à dominante behaviorista.
Mas, para além de voegelinianos e straussianos, eis que, em 1984, David Ricci, em The Tragedy of Political Science, faz um inventário das falhas do empirismo descritivista embrulhado num vocabulário tecnicista com a ilusão de se atingirem leis, a partir das quais poderiam fazer-se previsões. Nesta sequência, Raymond Seidelman, em Disenchanted Realists [1985], continua o ataque, falando nos cientistas políticos como uma terceira tradição norte-americana, depois dos institucionalistas, defensores do situacionismo, e dos democratas radicais, proponentes de uma sociedade alternativa.
Em idênticas posições surgiam autores como Theodore J. Lowi, em The End of Liberalism, apostando no pós-behaviorismo.
Não tarda também que um dos patriarcas da ciência política saia a terreiro e trate de integrar as críticas no próprio sistema. É o que vem fazer Gabriel Almond em 1988, com Separate Tables. Schools and Sects in Political Science [5].
Nesta sequência, Kristen Monroe tomou a iniciativa de, na mesma revista, organizar um painel com seis influentes cientistas políticos cujos contributos foram publicados com o título The Nature of Contemporary Political Science. A Roundtable Discussion [6]. Benjamin Barber, o autor de Strong Democracy [1984], e de The Conquest of Politics [1988], chegou então a declarar que o cientismo está morto nas ciências sociais. Idênticas posições foram assumidas por John Gunnel, autor de uma Political Theory [1979], Joseph Cropsey, Kenneth Shepsle e Ian Shapiro.
Estava consagrada a chamada Post-Behavioral Era na ciência política norte-americana [7]. Por exemplo, para o professor de Yale Ian Shapiro, a única maneira de superar esta fragmentação seria colocar a political theory no centro da ciência política, desde que se estudasse a dynamic of powers com um pouco menos de terminologia esotérica, abandonando-se polémicas absurdas e enfrentando os problemas reais que afectam as pessoas. Isto é, desde que se mantivessem as preocupações realistas dos pais-fundadores da disciplina e não se passasse para o campo do especulativismo filosófico.
[1] David Easton, «The New Revolution in Political Science», in American Political Science Review, LXIII, Dezembro de 1969, pp. 1051-1061.
[2] Ver Phillip Green e Sanford Levinson (eds.), Power and Community. Dissenting Essays in Political Science, 1969, e Marvin Surkin e Alan Wolfe (eds.), An End to Political Science. The Caucus Papers, 1970.
[3] Seymour Martin Lipset, «Predizendo o Futuro: os Limites das Ciências Sociais», in Consenso e Conflito, trad. port., Lisboa, Gradiva, p. 451.
[4] In American Philosophical Quarterly, nº 1.
[5] In PS. Political Science and Politics, 21, pp. 828-842.
[6] Idem, nº 23, de 1990, pp. 34-43.
[7] Ver George J. Graham Jr. e G. Carey, The Post-Behavioral Era. Perspectives on Political Science, New York, David McKay, 1972.