3 - Da salvação do mundo.
Neste final do milénio, nós, os ocidentais, que fomos capazes, em nome da ciência, de construir uma civilização, ainda não somos capazes de a ordenar. Num tempo de velocidade, vertigem e impaciência, neste império do vazio e do efémero, continua a faltar-nos uma concepção do mundo e do homem, uma concepção da vida, que entenda o homem e o mundo como um cosmos, dotado de uma ordem que nos faça olhar para cima e para dentro. Continuam a dominar concepções do homem e imaginários típicos do iluminismo e do romantismo, bem como ideologias e ideias-feitas para séculos pretéritos, e não temos a alternativa de uma nova fundamentação para o dobrar do milénio, dado que persistimos em não querer misturar o lume da profecia com a serenidade da razão.
Como salientava André Malraux numa das suas últimas obras, L'Homme Précaire et la Littérature [1977], o mundo separa-se do homem para tornar-se espectáculo [1], porque as imagens transmitem, mas não constroem [2]. E tudo isto acontece porque o cientismo, o materialismo e o positivismo do século XIX geraram esta nossa sociedade que nos trouxe um determinado número de conhecimentos rigorosos que não se ordenam necessariamente [3].
Com efeito, o cristianismo formava cristãos; a ciência, que não formava cristãos, também não formava ateus. Capaz de elaborar, sozinha, a força nuclear, de descobrir a anestesia, ela era incapaz de educar um único adolescente [4].
Acresce que o cientismo e o materialismo, caldos onde se gerou tanto o positivismo como o marxismo, assumiram-se como uma espécie de antireligião, proclamando, do mesmo modo, que eram o caminho e a verdade, ao mesmo tempo que pretendiam descobrir um homem novo e recusavam os poderes que não repousam sobre conhecimentos, mas sobre crenças [5].
Eis o pano de fundo das angústias do nosso tempo, em que se insere o problema da política; talvez seja melhor reconhecermos aquele homem de sempre que levou Platão, há vinte e cinco séculos, a formular problemas que permanecem sem resposta.
Ainda hoje continuamos a procurar a salvação do mundo, para utilizarmos o título de uma tragicomédia de José Régio, de 1954. Ainda hoje nos dividimos entre o partido democrático, para quem só os princípios da liberdade são a garantia do progresso, o aristocrático, defensor da qualidade dos governantes contra a inconsciência e a mediocridade das maiorias, e o extremista, crente em regimes de autoridade baseados nas conquistas da Ciência e da Técnica. E todos apenas concordam naquela metodologia que os leva a estar em desacordo, como Lenine a invocar Ford e Taylor, o futurismo fascista a repetir as imprecações do surrealismo anarcocomunista, ou Georges Sorel a servir de inspirador para todos os totalitarismos dos anos vinte. Resta-nos a esperança de um Rei Pedro da Traslândia que proclame: venho nu, cheio de boa fé e de boa vontade. Perdi toda a ciência que tinha..., que julgava ter, e que nem era ciência nem era sabedoria. Agora não sei quase nada. Vou tentar aprender a cada instante com as realidades interiores e exteriores [6]. Um Rei Pedro, aprendendo com aquele Profeta que volta a falar num novo Evangelho sem palavras, ideias e doutrinas: Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas [7].
[1] André Malraux, O Homem Precário e a Literatura [1977], trad. port., Lisboa, Edições António Ramos, 1978, p. 165.
[2] Idem, p. 159.
[3] Idem, p. 231.
[4] Idem, p. 227.
[5] Idem, p. 227.
[6] José Régio, A Salvação do Mundo, Lisboa, edição do Teatro Municipal de São Luiz, Novembro de 1971, pp. 189-190.
[7] Idem, p. 190.