31 - A ideia de sociedade global.

 

A teoria sistémica, no âmbito da sociologia e da politologia francesas, concilia-se com a ideia de sociedade global, entendida como aquele fenómeno social total que, no dizer de Georges Gurvitch (1894-1965), ultrapassaria os agrupamentos funcionais e as classes sociais. Uma sociedade global que, segundo o mesmo autor, seria um macrocosmos de macrocosmos sociais, assumindo, na maior parte dos casos, grande envergadura, sendo dotada de uma quádrupla soberania: social, económica, jurídica e política, porque uma sociedade global afirma a sua especificidade e a sua diferença relativamente a uma outra sociedade global a todos os níveis (...) Ao nível político, exerce de facto e de direito o poder de administrar os grupos e os indivíduos que a compõem; ao nível jurídico, apresenta-se como a fonte do direito, que fixa o que é permitido e o que é proibido, e organiza os diversos tipos de relações e de contratos (sistemas de parentesco, contratos de propriedade, etc.); ao nível económico, organiza a produção, a circulação e o consumo de bens; ao nível cultural, é o foco criador dos modelos de comportamento dominantes e a organizadora dos seus modos de transmissão ao regular os processos de educação.

A ideia de sociedade global remonta a Marcel Mauss (1872-1950), a quem cabe a descoberta do facto ou fenómeno social total, considerado como uma totalidade concreta, simultaneamente jurídica, económica, religiosa e estética, em que a mesma pessoa pode desempenhar vários papéis sociais [1]. Esta ideia será, depois, adoptada por uma série de autores que tentaram conciliar a herança darwinista com o mais recente desenvolvimentismo.

Gurvitch, neste sentido, elenca a sucessão histórica das várias sociedades globais: teocracias carismáticas, sociedades ditas patriarcais, sociedades feudais, sociedades globais onde predominam as cidades-estados tornando-se impérios, sociedades globais onde se manifestaram os alvores do capitalismo e o absolutismo dito esclarecido, e a sociedade global democrático-liberal corres­pondente ao capitalismo concorrencial desenvolvido [2].

Para Jean-William Lapierre, uma sociedade global pode ser considerada como um vasto fenómeno social total. Entende por tal um conjunto concreto e singular de pessoas e de grupos no qual todas as categorias de actividade são exercidas e mais ou menos integradas. Trata-se do mesmo conceito que, no século XVII, se exprimia por sociedade civil e corpo político e que significa o mesmo que o inglês polity ou com aquilo que os marxistas entendem por formação social. Segundo o mesmo autor, haveria cinco sistemas principais de sociedade global: sistema bio-social ou sócio-genético, equivalente à comunicação de mulheres do sistema de parentesco, segundo Claude Lévi-Strauss; sistema ecológico ou sociogeográfico; sistema económico ou de comunicação de bens e serviços; sistema cultural ou de comunicação de mensagens; sistema político [3].

Esta visão da sociedade global abriu as portas a uma crescente complexidade conceitual, que desaguou na perspectiva de Maurice Duverger, para quem a sociedade global implica uma cultura e um carácter nacional, exigindo três elementos: articulação dos diversos grupos humanos; forte integração dos mesmos, de modo a gerar uma solidariedade profunda; uma intensidade superior à da solidariedade grupal e à da unidade nas relações com o exterior. É evidente que Duverger tomava como ponto de chegada o actual Estado-Nação e como paradigma a nation par excelence, que por acaso também é a sua. Mas não deixava de estabelecer o quadro evolutivo das diversas sociedades globais: a tribo, a cidade antiga, o domínio senhorial feudal, a monarquia absoluta e, finalmente, o Estado-nação, com os diversos modelos do século: Estado liberal-capitalista, Estado fascista, Estado socialista e Estado em vias de desenvolvimento [4].

Neste sentido, Lapierre considerava o Estado como um aparelho ou organização dotado de uma legitimação através de leis, com uma determinada função (política) e que se apoiaria sobre um conjunto (a nação). Concordava, aliás, com Nicos Poulantzas (1936-1979) quando este atribuía ao Estado uma função global de coesão e considerava que o mesmo possui esta função particular de constituir o factor de coesão dos níveis de uma formação social, acentuando, no entanto, que numa perspectiva antropológica esta função não é específica da forma histórica particular do poder político que é o Estado. Ela define todo o poder político, incluindo o das sociedades cujo modo de organização política não comporta qualquer aparelho de Estado especializado nesta função [5].

 



[1] Marcel Mauss, «Essai sur le Don», in Sociologie et Anthropologie, Paris, PUF, 1950, p. 274.

[2] Georges Gurvitch, A Vocação Actual da Sociologia [1968], Lisboa, Cosmos, 1979, trad. port. de Orlando Daniel, I, p. 511.

[3] Jean-William Lapierre, Análise dos Sistemas Políticos [1973], trad. port., Lisboa, Rolim, s.d., p. 37.

[4] Maurice Duverger, Sociologia da Política. Elementos de Ciência Política, trad. port., Coimbra, Livraria Almedina, 1983, pp. 30 segs..

[5] Jean-William Lapierre, Vivre sans État, Paris, Seuil, pp. 287-288, e Nicos Poulantzas, Pouvoir Politique et Classes Sociales, Paris, Maspero, 1968, p. 52.