35 - A consagração do krausismo.
A partir de 1843, as matérias da cadeira de direito público universal e português passam a ser regidas, de forma alternada, por Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886) e Francisco Maria Tavares de Carvalho, ambos doutores em cânones. Depois do falecimento deste último, em 1850, segue-se Vicente José de Seiça Almeida e Silva, também canonista, que continua a seguir Macarel, acrescentando-lhe, embora, um pouco do internacionalismo de Silvestre Pinheiro Ferreira e referências ao brasileiro Pimenta Bueno [1].
Em 1854, dá-se uma separação na leccionação das matérias, ficando o direito natural com Ferrer e o direito público universal e português com Seiça.
No tocante ao direito natural, importa referir que, com Vicente Ferrer Neto Paiva, principalmente em Elementos de Direito Natural ou Filosofia do Direito (1ª edição de 1844) e em Princípios Gerais de Filosofia do Direito [1850], se estrutura o krausismo, essa mistura típica peninsular entre o individualismo burguês e certa vulgata kantiana, introduzida pelas obras do professor da Universidade Livre de Bruxelas, Heinrich Ahrens (1807-1874), seguidor dos princípios de Karl Friedrich Krause (1781-1832) [2].
O livro marcante em todo esse período é o Cours de Droit Naturel [1837] de Ahrens, com um primeira edição de 1837. Vale a pena determo-nos no modelo de classificação das ciências aí adoptado, dado que o referido autor considera a existência de três ciências que se relacionam com a vida do homem: a filosofia, a história e a filosofia da história. Curiosamente, inclui, dentro da história, a estatística, uma disciplina que estudaria o estado actual da sociedade humana, tanto em sentido estrito - o estudo do Estado e das instituições políticas -, como em sentido lato, todas as esferas da actividade social [3]. Paralelamente, o mesmo autor divide a ciência do direito em três partes: a filosofia do direito, a história do direito e a ciência política, definindo esta como a ciência intermediária entre a filosofia e a história do direito que, por um lado, deve à filosofia do direito o conhecimento do fim e dos princípios gerais de organização da sociedade civil e consulta, por outro lado, na história e na estatística, os precedentes de um povo, o carácter e os costumes que ele manifestou nas suas instituições, o estado actual da sua cultura e as suas relações externas com outras nações; é segundo estes dados que a ciência política expõe as reformas para as quais o povo está preparado para o seu desenvolvimento anterior e que ele pode actualmente realizar [4].
Esta corrente krausista, desencadeada por Ferrer, será integrada por uma rica galeria de autores portugueses, como António Luís de Seabra (1798-1895), principalmente em A Propriedade. Filosofia do Direito [1850], José Dias Ferreira (1837-1907), Levy Maria Jordão, Visconde de Paiva Manso (1831-1875), Martens Ferrão (1824-1895), João de Pina Madeira Abranches (falecido em 1893) e António Sousa Silva Costa Lobo (1840-1913), principalmente em O Estado e a Liberdade de Associação [1864]. Toda uma geração que sustentará um dos períodos mais brilhantes do nosso demoliberalismo - a chamada Regeneração - que, entre outras proezas, permite a instauração de um armistício constitucional com o Acto Adicional de 1852 e a consequente estabilidade política, bem como importantes reformas institucionais que têm como marcos fundamentais a promulgação do Código Civil e a abolição da pena de morte em 1867. Se foram superados alguns traumatismos oriundos da guerra civil, assistiu-se também ao lançamento de um grandioso programa de melhoramentos materiais, pelo chamado fontismo, contribuindo-se para o revigoramento do Estado-Comunidade, nomeadamento pelo relançamento da chamada democracia da sociedade civil, no sentido liberdadeiro, conforme o programa delineado por Alexandre Herculano.
O krausismo ainda se mantém pujante em plena geração de 70, principalmente em Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1895) que, na sua Teoria do Socialismo [1872], subtitulada Evolução Política e Económica das Sociedades na Europa, utiliza na exposição da história das ideias políticas o esboço de Ahrens, aliás, abundantemente citado [5].
O célebre Visconde de Seabra, autor espiritual do nosso primeiro Código Civil de 1866, reconhecia expressamente, em A Propriedade. Filosofia do Direito [1850], a coincidência dos respectivos princípios com os de Ahrens, adoptando um individualismo absoluto: a natureza não reconhece senão indivíduos; os géneros, as espécies, são puras abstracções do nosso espírito, ideias de número e semelhança e nada mais. Quando dizemos o homem ou designamos o indivíduo, ou não designamos coisa alguma. Nestes termos, considera que da mesma forma pois que do sentimento de liberdade ou personalidade emanou a ideia de propriedade - a posse segura e tranquila dos objectos úteis e necessários à vida - ou da sua necessidade, nasceu a ideia duma associação em que as forças individuais se contrabalançassem, fundindo‑se numa só força em defesa e proveito da liberdade e propriedade individuais. Paralelamente a esta visão da sociedade, Seabra considera que o Estado só tem deveres: do outro lado está o governo com os seus deveres. Estes resolvem‑se na manutenção dos direitos individuais e de sua recíproca individualidade. Assim, o interesse geral importa nas democracias o mesmo que a razão de estado nos governos absolutos [6].
Em José Dias Ferreira já se nota a influência directa de Hegel e uma certa reacção contra a vertente individualista do krausismo ferrerista, quando considera que há uma certa porção de bem cuja realização, como responsável à realização da vida humana, não pode ficar dependente dos caprichos ou da vontade individual de cada homem. A conservação da vida social está de tal modo dependente da realização objectiva desta porção de bem que não pode satisfazer‑se nesta parte só com a garantia das boas intenções, tão impreterível é a realização desta porção de bem [7].
Levy Maria Jordão, Visconde de Paiva Manso, aplicará, por seu lado, o sistema krausista ao direito penal, sendo também autor da única história da filosofia do direito publicada em Portugal durante o século XIX [8].
Já Martens Ferrão, em 1854, concebe o Estado como estruturado por esferas sociais autónomas e marcado pela convergência de actividades livres. Nele a coordenação das diversas individualidades autónomas do Estado, constituídas tanto pelo indivíduo como por outros grupos e esferas sociais, deve fazer‑se como nos organismos biológicos, através de um elemento superior. O Estado tem, assim, uma estrutura pluricelular, integrando a família, a comuna, a província e a nação. Deve respeitar cada uma dessas células do organismo social e abster‑se de intervir na sua organização interior, fornecendo‑lhes os meios e as condições exteriores do seu desenvolvimento. Se a família deve ficar intacta dentro da comuna e esta dentro da nação, também devia aspirar‑se à construção duma união federativa e livre entre todos os povos [9].
João de Pina Madeira Abranches, por seu lado, em 1864, considera que o Estado deve organizar‑se sobre o modelo do eu humano, constituindo‑se como uma espécie de eu social, entendido como a coagulação da vontade livre e reflectida do povo. O eu social harmoniza‑se com as actividades sociais através da ideia de contrato político que o mesmo autor identifica com a Constituição. O Estado, em suma, não passa de um organismo especial do organismo total que é a Sociedade, cabendo‑lhe, em nome do princípio da justiça, garantir o equilíbrio e o vínculo entrelaçante das várias esferas e instituições sociais. O Estado tem, assim, um duplo fim: administrar a justiça e condicionar todas as instituições sociais, mas sem uma intervenção tirânica e totalizante: o direito, subministrando os meios de desenvolvimento às diferentes esferas da actividade humana, une‑as por laços orgânicos e chega até a firmar uma legítima solidariedade bem semelhante ao sistema nervoso que, ligando todas as partes do corpo, torna cada uma delas condição para a conservação das outras [10].
Já em Costa Lobo, também em 1864, paralelamente à aceitação da hegeliana concepção dialéctica da história, se antecipam muitas das teses do que será a vertente pluralista do Estado Corporativo. Considera que a evolução histórica dos organismos sociais passa por três fases: a primeira é a fase da unidade amorfa, em que predomina a homogeneidade indistinta; a segunda é a da variedade das formas, em que é marcante a heterogeneidade; a terceira fase é a da harmonia, a verdadeira síntese orgânica, em que o indivíduo e o Estado atingem o equilíbrio num organismo superior. Se na primeira fase o indivíduo era estatizado e na segunda se emancipava por completo do Estado, na terceira, na fase da harmonia, já se reconstruía o império da razão e se criavam verdadeiros laços de solidariedade orgânica,através da ideia de associação. Contudo, o Estado não se identifica com a sociedade. É um simples órgão dentro do grande organismo social, o princípio unificador do sistema nervoso. O Estado conservando na sociedade a unidade exterior, enleiando em solidariedade todos os seus membros, desempenha no corpo social as mesmas funções que no corpo físico o sistema nervoso [11].
[1] Referimo-nos a José António Pimenta Bueno, autor de Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, 2 vols., Rio de Janeiro, 1857. Ver Laranjo, op. cit., p. 88.
[2] A principal obra de Karl Friedrich Krause, Grundlage des Naturrechts oder philosophischer Grundriss des Ideals des Rechts, editada em 1803.
[3] Heinrich Ahrens, Cours de Droit Naturel ou de Philosophie du Droit Fait d’Après L’État Actuel de Cette Science en Allemagne [1837], Bruxelas, 1855, 4ª ed., p. 6.
[4] Idem, p. 8.
[5] Entre as obras de Oliveira Martins com interesse politológico, destacam-se: Do Princípio Federativo e sua Applicação à Península Hispânica, 1869, uma série de crónicas publicadas no Jornal do Commercio; A Teoria do Socialismo. Evolução Política e Económica das Sociedades da Europa, Lisboa, Sousa e Filho, 1872; Portugal e o Socialismo. Exame Constitucional da Sociedade Portuguesa e a sua Reorganização pelo Socialismo, Lisboa, Sousa Neves, 1873; As Eleições, Porto, A. F. Vasconcellos, 1878; Portugal Contemporâneo, Lisboa, 1881; Elementos de Anthropologia. História Natural do Homem, Lisboa, Bertrand, Biblioteca de Sciencias Sociaes, 1881 (2ª ed.); e Systema dos Mythos Religiosos, Lisboa, Bertrand, Biblioteca de Sciencias Sociaes, 1882.
[6] Apud, o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, p. 138, e Luís Cabral De Moncada, Subsídios para uma História da Filosofia do Direito em Portugal (1772-1911), Coimbra, 1938, 2ª ed..
[7] Apud, o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, p. 138, e Luís Cabral De Moncada, O Idealismo Alemão e a Filosofia do Direito em Portugal [1938], in Estudos Filosóficos e Históricos, 1958, I, pp. 23 segs..
[8] Apud, o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, p. 139.
[9] Apud, o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, p. 139, e Luís Cabral De Moncada, Subsídios para uma História da Filosofia do Direito em Portugal (1772-1911), Coimbra, 1938, 2ª ed., p. 65.
[10] Apud, o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, p. 139, e Luís Cabral De Moncada, Subsídios para uma História da Filosofia do Direito em Portugal (1772-1911), Coimbra, 1938, 2ª ed..
[11] Apud, o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, p. 139-140, e Luís Cabral De Moncada, Subsídios para uma História da Filosofia do Direito em Portugal (1772-1911), Coimbra, 1938, 2ª ed.. Costa Lobo, que chegou a Par do Reino e foi Ministro dos Negócios Estrangeiros em 1892, também se notabilizou como historiador e deixou-nos uma importante História da Sociedade em Portugal no Século XV [1903], um estudo sobre as Origens do Sebastianismo. História e Perfiguração Dramática [1909], bem como um trabalho monográfico sobre O Rei, publicado em 1915-1916, nos Anais das Bibliotecas e Arquivos de Portugal.