37 - A epidemia positivista.

 

Voltando à fileira dos regentes da cadeira, eis que, depois de Mendonça Furtado, surgirá, entre 1881-1882 e 1890-1891, Manuel Emídio Garcia (1838-1904) que foi, algumas vezes, substituído por Lopes Praça. O modelo manter-se-á, aliás, até 1901, embora, em 1879, a matéria de história do direito constitucional português tivesse passado da 1ª para a 4ª cadeira, por troca com a doutrina do direito das gentes, mantendo-se contudo o título da cadeira.

Manuel Emídio Garcia, como pode detectar-se no Plano Desenvolvido do Curso de Sciencia Política e Direito Político [1885], no Programa da 4ª cadeira da Faculdade de Direito, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1893, nos Apontamentos de Algumas Prelecções do dr. Emygdio Garcia no curso de sciencia política e direito político coligidos pelo padre A. Camelo e Abel de Andrade, também publicados em 1893, bem como na carta introdutória de 1880 que escreveu para um Estudo Sociológico, editado pelos seus discípulos Henriques da Silva, António Pinto de Mesquita, Francisco Rego Feio, Luís de Magalhães e João Arroio, será o principal responsável pela introdução das ideias positivistas nos domínios do direito e das coisas políticas.

Segundo as palavras do mesmo Garcia, a Política seria a ciência que estuda as condições e fenómenos de formação, constituição e renovação do organismo social [1], constituindo um dos cinco ramos das ciências sociais, ao lado da Economia, da Administração, da Moral e do Direito, as quais deveriam obedecer à metodologia das ciências da natureza. Se a economia tinha a ver com a vitalidade do mesmo organismo social, a administração, com a conservação, e a moral, com o aperfeiçoamento humano, já o direito diria respeito à garantia.

Até porque, segundo a ideologia positivista, a sociedade teria de ser perspectivada como um organismo social, que o mesmo autor entendia de maneira biologista: um vasto e complexo organismo, composto de aparelhos e órgãos distintos, separados, mas homogéneos, como base da moderna sociologia, não é uma simples analogia, uma hipótese gratuita, uma figura de retórica. É uma realidade fenomenal, é um facto induzido da observação e da experiência, hoje cientificamente comprovado [2].

Acrescentava que se tornou um dever de consciência e uma obrigação de ofício iniciar as novas gerações no método da filosofia positiva e ministrar-lhe conhecimentos verdadeiramente científicos, aplicados às realidades do organismo social [3].

Transformou-se assim num desses propagandistas da verdade em nome da ciência, tentando difundir os princípios de Comte e de Littré, autor de Conservation, Révolution et Positivisme, obra que marcará o processo da III República Francesa, principalmente através de Léon Gambetta e Jules Ferry. Como reconheceu Ricardo Jorge, Garcia, em vez de ensinar ciência jurídica, passava o ano a glosar Comte na cátedra universitária, como fazem ao Alcorão os mestres muçulmanos [4].

Aliás, adoptava o positivismo com um fervor messiânico e revolucionário, a que não faltou a própria militância no Partido Republicano e a vulgarização das respectivas teses através de um jornal próprio, a Correspondência de Coimbra, donde zurzia contra os sistemas metafísicos.

No plano da metodologia, advogava o método indutivo e experimental para análise do organismo social, entendido como um organismo biológico superior, com aparelhos e órgãos distintos, separados, mas não homogéneos e sujeitos à lei da diferenciação progressiva dos órgãos, a especialização de funções, à separação entre o centro e a periferia e às leis fundamentais da evolução.

Segundo as respectivas concepções, a função da sociologia e, consequentemente, da ciência política, seria a de observar os fenómenos da vida social e, depois, extrair dessa observação, por indução e generalização, as leis causais que os regem.

A onda positivista que nos invadiu entre 1870 e 1880 depressa se torna naquilo que Antero de Quental qualificou como epidemia, logo traduzida numa corrente de opinião com laivos naturalistas e anticlericais. Nesse recepcionismo destacou-se também Teófilo Braga (1843-1924), autor de Traços Gerais da Filosofia Positiva [1877] e de Sistema de Sociologia [1884], e um dos animadores da revista O Positivismo (1878-1882), juntamente com Júlio de Matos.

O grande bastião das doutrinas era o Curso Superior de Letras, onde pontificava o mesmo Teófilo, mas por onde passaram outros próceres da perspectiva como Augusto Soromenho, Consiglieri Pedroso, Silva Cordeiro, Jaime Moniz e Adolfo Coelho. Do Curso Superior de Letras, a doutrina passou para os professores do ensino secundário que espalharam esse novo evangelho laico pelos vários cantos da província, não faltando sequer a sua difusão propagandística através do jornal O Século, então dirigido por outro ferrenho positivista, Sebastião Magalhães de Lima. Como reconhece F. Reis Santos, a lei dos Três Estados era aceita com muito mais fé do que o Mistério da Santíssima Trindade era aceito pelos católicos [5].

Estávamos, então, no tempo das euforias organicistas, onde esquerdas e direitas se irmanavam, muito comteana e darwinianamente. Um terreno onde, aliás, buscará alento tanto o nosso republicanismo como a vertente organicista e positivista do salazarismo, num movimento paralelo ao próprio maurrasianismo, também ele adepto do chamado empirismo organizador. Como reconhecia Eça de Queirós, enganados pela ciência, embrulhados nas subtilezas balofas da economia política, maravilhados como crianças pelas habilidades da mecânica, durante setenta anos construimos freneticamente vapores, caminhos-de-ferro, máquinas, telégrafos, uma imensa ferramentagem, imaginando que por ela realizaríamos a felicidade definitiva dos homens... [6].

Assim se compreende um Alfredo Pimenta (1882-1950) quando, em 1913, propagandeava os princípios do Partido Republicano Evolucionista, invocando a Sciencia Política que teria um caracter verdadeiramente útil por permitir um certo poder de previsão e uma Democracia, scientificamente considerada [7]. O mesmo Pimenta, depois convertido ao monarquismo, chegou mesmo a advogar que se fizesse o casamento entre as teorias de Comte e o catolicismo. Em Estudos Filosóficos e Críticos, Coimbra, 1930, já propunha que se fizesse, para Auguste Comte, o que São Tomás fizera a Aristóteles. Num artigo de 1943, publicado na revista de Guimarães, Gil Vicente, sobre Teófilo Braga, declarava expressamente que o Filósofo que tente a conciliação do Positivismo com os dogmas católicos fará no mundo do Espírito uma Revolução maior do que a de S. Tomás, ao conciliar o Estagirita pagão com o Catolicismo [8].

É na sequência dessa reforma dos estudos jurídicos de 1865 que se destaca o labor de José Joaquim Lopes Praça (1844-1920), tanto antes de ser professor da Faculdade de Direito, com Direito Constitucional Portuguez. Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826 e Acto Addicional de 1852, em duas partes, Coimbra, Imprensa Litteraria, 1878 e 1879, como depois, com a monumental Colecção de Leis e Subsídios para o Estudo do Direito Constitucional Português, em dois volumes, I - Leis e Subsídios Referentes ao Nosso Velho Regimen Político, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1893; II - Constituições Políticas de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1894 [9].

Refira-se que, nessa época, também algumas obras invocavam o título de ciência política, como o opúsculo intitulado Estudos da Sciencia Política. Teoria do Estado, da autoria de João Jacinto Tavares de Medeiros (1844-1903), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892 [10].

Contudo, o professor mais influente de tal período é José Ferreira Marnoco e Sousa (1869-1916), autor de Lições de Direito Político feitas na Universidade de Coimbra, ao curso do 2º anno jurídico de 1899-1900, Coimbra, França Amado, 1900, que são aperfeiçoadas em 1910, em Direito Político. Poderes do Estado. Sua Organização, segundo a Sciencia Política e o Direito Constitucional Portuguez, Coimbra, França Amado, 1910, pontos de partida para o trabalho intitulado Constituição Política da República Portuguesa [1913].

Marnoco e Sousa constitui um caso raro de multifacetada actividade cívica e docente, deixando-nos uma vasta bibliografia nos domínios do direito eclesiástico, direito político, processo penal, direito comercial, sociologia, administração colonial, finanças e história do direito [11]. Foi também um dos principais introdutores das teorias da Escola de P.-G. Le Play em Portugal, principalmente no ensino da economia [12]. Assim, em 1908, editou Sciencia Social. Lições sobre o Methodo e Doutrinas desta Escola Feitas na Universidade de Coimbra ao Curso de Sciencia Economica e Direito Economico de 1907-1908, Coimbra, França Amado, 1908. Na mesma linha, surge o Tratado de Economia Política, Volume I, Coimbra, França Amado, 1917, com prefácio de António de Oliveira Salazar [13].

Marnoco e Sousa é um elemento-charneira que reflecte o psicologismo de autores como De Greef, Von Ihering, Gabriel Tarde, Gustave Le Bon, René Worms, tudo o que nos chegava no comboio de Vilar Formoso e que se empacotava na Livraria França Amado. Com ele vem a sociologia da luta pela vida, de Darwin a Ihering, o organicismo, o sociologismo e o naturalismo.

Surgem também algumas obras esparsas sobre a matéria, como as de António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922), Princípios e Questões de Philosofia Política, em 2 volumes, I - Condições Scientíficas do Direito de Sufrágio, Coimbra, 1878; II - Lista Multipla e Voto Uninominal, Coimbra, 1881, António de Serpa Pimentel, Questões de Política Positiva. Da Nacionalidade e do Governo Representativo [1881] e Abel de Andrade, Princípio das Nacionalidades. Nesta linha se insere o Manual Político do Cidadão Portuguez, de José Francisco Trindade Coelho (1861-1908), publicado em 1906, bem como o trabalho de Henrique Baptista, Eleições e Parlamentos na Europa, de 1909.

António Cândido, o célebre Águia do Marão, que às tarefas universitárias preferiu o cursus honorum de uma brilhante carreira política, parlamentar e governamental, talvez tenha produzido um dos primeiros trabalhos portugueses retintamente politológicos, infelizmente perdido na poeira das bibliotecas e sem qualquer efeito criador de uma escola ou de uma corrente de pensamento, de tal maneira que a obra em causa continua silenciada pelos que não passam além do título principal (Filosofia Política), ou desconhecida pelos vindouros, pouco dados à ideia de uma democracia portuguesa pluricentenária e apaixonadamente concretizada pelo demoliberalismo monárquico e republicano. Mas como os republicanos, posteriormente vencedores, olharam as cores azuis-e-brancas como o símbolo da monarquia e não do liberalismo de que eram continuadores, também nós, os contemporâneos instituidores da actual democracia representativa, posterior ao 25 de Abril de 1975 e à Constituição de 1976, caímos na falsa ideia-feita de uma jovem democracia, esquecendo que mesmo um pigmeu pode ver longe se se colocar na cabeça de um gigante, como gostava de recordar Fernando Amado, o fundador do Centro Nacional de Cultura.

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[1] Apud Luís Cabral de Moncada, Subsídios para a História da Filosofia em Portugal,
p. 409.

[2] Idem, ibidem.

[3] In «Carta-Introdução» à obra colectiva dos respectivos discípulos, intitulada Estudo Sociológico, Coimbra, 1880.

[4] Apud Álvaro Ribeiro, Os Positivistas. Subsídios para a História da Filosofia em Portugal, Lisboa, Livraria Popular Francisco Franco, 1951, p. 49.

[5] Idem,  p. 33.

[6] Carta de 23 de Abril de 1895, in Jaime Cortesão, Eça de Queiroz e a Questão Social, Lisboa, Seara Nova, 1949, pp. 205 segs.. Já em Julho de 1893, Eça De Queirós publicara, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, um dos primeiros manifestos antipositivistas: Positivismo e Idealismo.

[7] Alfredo Pimenta, Politica Portuguesa. Elementos para a Solução da Crise Nacional, Coimbra, Moura Marques, 1913. Saliente-se que o livro tem na capa a célebre invocação de Auguste Comte: O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim. Pimenta que, depois, se tornará num dos expoentes da direita organicista e monarquista, não anda longe da mais recente nova direita, nova cultura, na linha galicista de Alain de Bénoîst, que proclama distinguir-se da também nova direita, neoliberal, pelo facto de professar o organicismo. Sobre a questão, parece-nos esclarecedora a consulta d’As Três Funções do Político, da autoria do Clube de l'Horloge e publicadas em Portugal  na revista Futuro Presente, nº 4, pp. 11-30, Lisboa, 1981.

[8] Apud Álvaro Ribeiro, op. cit., p. 100.

[9] Lopes Praça, quando ainda estudante, em 1869, publicou a pioneira História da Filosofia em Portugal nas suas Relações com o Movimento Geral da Filosofia. Refira-se que este autor começou a sua vida profissional como professor do ensino liceal, e só ascendeu à Faculdade de Direito em 1881.

[10] Tavares de Medeiros formara-se em direito em 1876, chegando a membro da Academia das Ciências. Em 1893, editou A Anthropologia e o Direito.

[11] Para uma descrição do ambiente da escola de direito da época, Gonçalo Sampaio e Melo, Apontamentos para a História do Ensino do Direito Romano em Portugal, Volume I (1895-1910), 1ª Parte, Lisboa, 1991.

[12] Marnoco e Sousa teve uma importante actividade cívica, sendo Presidente da municipalidade de Coimbra e Ministro da Marinha e do Ultramar no último governo da monarquia.

[13] Sobre a matéria, Fernando Emygdio Da Silva, «Doutor Marnoco e Sousa», in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLII, Coimbra, 1966, pp. 1 segs., bem como Fezas Vital, «O Professor Marnoco e Sousa e os Estudos de Direito Político na Universidade de Coimbra», no mesmo boletim, pp. 381-394.