43 - Marcello Caetano e o jusconceitualismo da teoria geral do Estado.

 

Marcello Caetano (1906-1980) que, em 1931, se doutorara em Ciências Político-Económicas, assumiu a regência da cadeira de Direito Constitucional no ano lectivo de 1951-1952, por doença do anterior titular, Domingos Fezas Vital, abandonando então a regência da cadeira de Administração e Direito Colonial, para a qual foi contratado Joaquim da Silva Cunha, já professor da Escola Superior Colonial, onde deixou uma vaga que será ocupada por Adriano Moreira [1].

Caetano que, como ideólogo do regime, já editara O Sistema Corporativo em 1938, e Problemas da Revolução Corporativa em 1941, publicará, a partir desta experiência docente, logo em 1952, as Lições de Direito Constitucional e Ciência Política, obra que, com a segunda edição de 1955, passa a intitular-se Ciência Política e Direito Constitucional, já enriquecida com a Introdução ao Estudo do Direito Político, publicada na revista O Direito em 1953, para, nas posteriores edições, se converter no Manual de Ciência Política e Direito Constitucional.

Vale a pena percorrer o conteúdo deste importante Manual: na parte I, o estudo descritivo de algumas experiências constitucionais estrangeiras; na parte II, teoria geral do Estado; na parte III, o direito constitucional português [2]. Isto é, a ciência política, na prática do ensino, era tão só comparativa quanto a experiências constitucionais e apenas teórica no tocante à teoria geral do Estado, na linha jellinekiana, mas através de formas inequivocamente francesistas.

Vejamos o essencial do respectivo esquema de exposição, no tocante a matérias políticas:

 

Introdução

O facto político

 

O homem e a sociedade.

Pluralidade de formas de sociedade.

Comunidades e associações.

Sociedade e disciplina.

Poder.

Sociedades primárias e poderes particularistas.

A formação da sociedade política.

Sociedade política e poder político.

A coacção.

Os factos políticos e o seu estudo.

Disciplinas que estudam o facto político

Ciência política.

Sociologia política.

Filosofia política.

História das instituições e das ideias políticas.

O Direito político

 

Parte I

Estudo descritivo de algumas experiências constitucionais estrangeiras

 

Parte II

Teoria Geral do Estado

Elementos, fins e funções do Estado.

Orgãos e poderes do Estado.

Os órgãos governativos e os governantes.

A limitação jurídica do poder político.

As formas políticas.

Parte III

Direito Constitucional Português

 

 

Marcello Caetano, se travestizava o título à maneira de Georges Burdeau e Maurice Duverger, não seguia, contudo, os modelos doutrinários do pós-guerra destes autores, mantendo a linha do formalismo duguitiano e não mostrando tendência para a especulação jusnaturalista, de acordo com o institucionalismo e o neotomismo. Aliás, o administrativista transportava para o constitucionalismo algo do cameralismo da ciência de polícia, confundindo conscientemente a ciência política com a science du gouvernement, em que os arcana imperii estavam, aliás, de acordo com um tempo de Estado de Segurança Nacional [3].

Refira-se que Georges Burdeau, em 1943, editara Le Pouvoir et l'État. Introduction à l'Étude du Droit Constitutionnel, obra que se transforma, em 1949, no primeiro dos sete volumes do monumental Traité de Science Politique, enquanto que Maurice Duverger, em 1945, publicava o Manuel de Droit Constitutionnel et Science Politique [4].

Curiosamente, Marcello Caetano, quando, na introdução do manual, aborda as matérias de ciência política, nunca invoca nem refere, directa ou indirectamente, qualquer nome da ciência política norte-americana, apesar de, logo a seguir, ter um excelente capítulo sobre a constituição dos Estados Unidos da América.

Marcello Caetano acreditava na adopção do método jurídico na construção científica, isto é numa exposição sistemática da matéria, pelo emprego do método dogmático, como ele confessa no tocante ao direito administrativo. Assim, tal como para o direito administrativo descobriu, como núcleo essencial da análise, o conceito de relação jurídico-administrativa, procurando, a partir dele, estabelecer o sistema fechado de uma hierarquia de conceitos abstractos, também procurou para a ciência política e o direito constitucional algo de equivalente, tentando descobrir o facto político.

Chegou mesmo a defini-lo como todo o acontecimento ligado à instituição, existência e exercício do poder político [5], visionando a ciência política como a sistematização dos ensinamentos resultantes dos diversos métodos da sociologia política, da história política e da filosofia política que visam o conhecimento do facto político [6]. O calcanhar de Aquiles estava, contudo, na noção de poder, por ele referido como a possibilidade de eficazmente impor aos outros o respeito da própria conduta ou traçar a conduta alheia [7], no qual fazia convergir tanto o poder de facto como o poder legítimo e para o qual impunha a função de subordinar os interesses particulares ao interesse geral [8].

Podemos dizer que, na Faculdade de Direito de Lisboa, a partir do magistério de Marcello Caetano, a ciência política não passou de uma ciência do Estado colocada sob a tutela dos teóricos do direito público. Até porque, conforme sublinhava o mesmo Marcello, a ciência política é (...) complementar do Direito Constitucional na medida em que permite pesquisar aspectos da totalidade que a simples consideração das normas jurídicas não deixaria entrever. E é subsidiária desse direito porque ajuda o jurista a compreender as normas vigentes, através dos factos que as explicam, condicionam ou traduzem, dos interesses que visam compor, dos valores que tendem a consagrar ou a realizar [9].

Trata-se, com efeito, de uma visão algo redutora daquilo que consideramos uma adequada e justa perspectiva sobre a matéria. Como Adriano Moreira já ensinava em 1963-1964, são inconfundíveis a ciência política e o direito constitucional, se bem que os unifique o objecto de estudo [10], dado que a ciência política procura determinar como é que efectivamente, segundo que formas e tipos funcionam os órgãos do Estado, quais as regras efectivamente observadas na condução dos negócios públicos, qual a escala de valores a que realmente os detentores do poder prestam homenagem; por outro lado, ocupa-se do estudo dos programas que aspiram a tornar-se em regras práticas de condução dos negócios públicos, isto é, das correntes que não são dominantes, mas pretendem assumir as direcções das sociedades políticas [11]. O que levaria a ciência política a preocupar-se com a falta de autenticidade do Poder e com o problema da Revolução e do golpe de Estado, bem como a usar o método comparativo.

O Professor Diogo Freitas do Amaral, nas lições policopiadas de Ciência Política, proferidas na Universidade Católica [1990], quando proclama que em Portugal, até 1974, praticamente só se ocupou da ciência política o Professor Marcello Caetano, optando pela orientação das escolas alemãs e francesa, identificando a Ciência Política com a Teoria Geral do Estado [12], aceita aquela interpretação restritiva da ciência política que o leva, por exemplo, a considerar, repetindo o que aparece no Manual de Marcello Caetano [13], que foi um inglês, Frederick Pollock, que num livro escrito em finais do século XIX primeiro falou em ciência da política, e que a partir daqui, na primeira metade do século XX, o desenvolvimento da ciência política conheceu uma enorme expansão e bifurcou-se, com Jellinek e a Teoria geral do Estado, seguida pelos franceses e por outros povos latinos, e com ingleses e principalmente os norte-americanos inclinarem-se de preferência para a linha da Sociologia Política [14].

Partindo destes pressupostos, o Professor Diogo Freitas do Amaral tem, evidentemente, total razão. Com efeito, até 1974, só o Professor Marcello Caetano praticou excelência na Teoria Geral do Estado, entendida na senda de Georg Jellinek e de Léon Duguit, antes deste aderir ao solidarismo. Logo, quem, como o Professor Diogo Freitas do Amaral, considerar que a Política tem a ver essencialmente com o Estado, com a conquista e o exercício do poder no Estado e não entender como fenómenos políticos os fenómenos de poder fora do Estado: na sociedade internacional, nas comunidades municipais, nas igrejas, nos sindicatos, nas empresas, nas instituições administrativas, etc. [15], não pode, em nome da coerência, deixar de dizer outra coisa e até de incluir, quando enumera a bibliografia, a obra de Adriano Moreira, Ciência Política, não nos domínios da ciência política, mas sim nos da sociologia política... [16].

Aliás, segundo o mesmo Professor Diogo Freitas do Amaral, o mesmo manual do Professor Adriano Moreira segue principalmente a escola anglo-saxónica e baseia-se nos métodos da Sociologia Política, com frequentes incursões na área da política internacional [17].

Diremos até que o modelo de estudo jurídico da política de Marcello Caetano, reagindo tanto contra o sociologismo como contra os jusnaturalismos, gerou uma escola própria que nada tinha a ver com a inicial Faculdade de Direito e Estudos Sociais visionada por Afonso Costa [18]. De qualquer maneira, a Escola de Direito Público de Lisboa exercerá no Portugal das décadas de cinquenta a setenta, o papel que coube aos grandes professores de direito público franceses, como Léon Duguit e Maurice Hauriou, no primeiro quartel do século XX, fazendo convergir sobre o ensino do direito público aquilo que podia ter sido realizado por uma ciência política como disciplina intelectual independente, para utilizarmos um qualificativo de Harold Laski.

Quando nos Estados Unidos da América a ciência política vivia a euforia da revolução behaviorista, quando na França, com Burdeau e Duverger, a mesma disciplina, mesmo no universo das faculdades de direito, começava a autonomizar-se do normativismo, no Portugal do crepúsculo do Estado Novo, falar em ciência política era dizer quase o mesmo que direito constitucional, numa posição idêntica àquilo que fora o germanismo dos finais do século XIX. Não por culpa dos constitucionalistas, mas por falta de condições sociais e mentais para o desenvolvimento de uma disciplina que só pode desenvolver-se em ambiente de pluralismo, sociedade aberta e democracia política.

Mesmo a tensão académica e política que se estabeleceu entre a Faculdade de Direito de Lisboa e a entidade herdeira da Escola Colonial, quando esta pretendia assumir a plena integração universitária, revelam quanto o pensamento estratégico de Marcello Caetano ainda estava preso às perspectivas clássicas daqueles professores de direito que impediram o estabelecimento em Portugal de uma faculdade de ciências políticas e administrativas e que, ainda em 1901, haviam criado, no âmbito da Faculdade de Direito, um curso colonial de três anos e doze cadeiras.

O modelo de Marcello Caetano manteve-se, aliás, no estilo de ensino do Professor Armando Marques Guedes, tanto no ISCSPU-ISCSP como na Faculdade de Direito de Lisboa, aonde regressou depois de 1977, estando bem documentado em obras de carácter escolar que editou: Ideologias e Sistemas Políticos, Lisboa, Instituto de Altos Estudos Militares, 1978, e Teoria Geral do Estado, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1979, que constituem mero desenvolvimento da anterior Introdução ao Estudo do Direito Político, Lisboa, 1969.

Este professor foi, aliás, o inspirador da reforma da Licenciatura em Ciências Político-Sociais do ISCSP, implementada a partir do ano lectivo de 1977-1978, pela qual foi eliminada a disciplina de ciência política, que fora criada em 1974, entretanto substituída por uma vaga Introdução às Ciências Políticas, e se tratou de instituir o dualismo de uma cadeira de Direito Político Comparado e outra de Teoria do Estado. O mesmo discípulo de Marcello Caetano que, na pós-revolução, atingirá as culminâncias da Presidência do Tribunal Constitucional, introduzirá também o modelo curricular ensaiado no ISCSP na própria Faculdade de Direito de Lisboa, mantendo o referido dualismo nos cursos semestrais de Ciência Política I (1ºano) e Ciência Política II (4º ano, na opção de Ciências Jurídico-Políticas) [19].

 


 

[1] Silva Cunha, em Maio de 1953, doutora-se na mesma Faculdade de Direito, com uma dissertação intitulada O Sistema Português de Política Indígena. Subsídios para o seu Estudo.

[2] Este modelo ultrapassava em muito os bancos da Faculdade de Direito, dado que era vulgarizado numa disciplina comum do 6º e 7º anos do ensino secundário, designada Organização Política e Administrativa da Nação, de que foi livro único um compêndio de A. Martins Afonso, Princípios Fundamentais de Organização Política e Administrativa da Nação.

[3] A ciência Kammeralistik esteve para a política como o mercantilismo esteve para a economia, transformando a arte política do movimento da Razão de Estado numa ciência de polícia ou de Staatswissenschaft. Teve o seu principal teórico em Christian Wolff (1679-1754) e o seu modelo de Príncipe em Frederico o Grande da Prússia (1712-1786). O modelo de Estado de Segurança Nacional do salazarismo e do marcelismo tem alguns paralelos com o Polizeistaat, mais preocupado com a segurança (Sicherheitspolizei) e o bem-estar (Wohfahrtspolizei), do que com a justiça e a liberdade. Cfr. Pierangelo Schiera, Del'Arte di Governo alle Scienze dello Stato, Milão, 1968, apud António Manuel Hespanha, Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Colectânea de Textos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984 , pp. 307 segs..

[4] Refira-se que, em 27 de Março de 1954, surgia nas Faculdades de Direito francesas o curso semestral de Méthodes de Science Politique, no 3º ano. Nesta sequência, em 1959, tanto Burdeau como Duverger editavam os seus Méthodes de Science Politique, o primeiro na Dalloz, o segundo na PUF. Entretanto, já em 1955, Duverger iniciava as mudanças de títulos no manual da disciplina: Institutions Politiques et Droit Constitutionnel. Em 1973, este mesmo professor modificava radicalmente o inicial normativismo, editando um manual de Sociologie de la Politique (Paris, PUF, 1973, com tradução portuguesa, dez anos depois, intitulada Sociologia da Política, Coimbra, Almedina 1983). Enquanto isto, Burdeau mantinha o título de 1949, com duas reedições (a 2ª em 1966-1967, com dez volumes, e a 3ª em 1980-1987, com seis volumes).

[5] Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5ª ed., 1967, p. 9.

[6] Idem, p. 10.

[7] Idem, p. 5.

[8] Idem, p. 8.

[9] Idem, p. 41.

[10] Adriano Moreira,  Ideologias Políticas, p. 32.

[11] Idem, p. 32.

[12] Diogo Freitas do Amaral, Cência Política, Lisboa, 1990, p. 36.

[13] Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5ª ed., p. 13.

[14] Op. cit., p. 35. A perspectiva adoptada pelo Professor Diogo Freitas do Amaral não nos parece correcta. Primeiro, o conceito de Pollock, se formos além do rótulo, faz parte de uma opinião comum que coincide com o modelo do próprio krausismo. Segundo, porque a teoria geral do Estado, oriunda da cameralística, já circulava antes de Jellinek. Terceiro, porque os próprios anglo-saxons não ficaram imunes ao normativismo germânico.

[15] Op. cit., p. 16.

[16] Idem, p. 5.

[17] Idem, p. 36.

[18] Para um balanço do estilo da Escola de Direito Público de Lisboa, filiada no modelo de Marcello Caetano, vejam-se os Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, Lisboa, Edições Ática, 1973, comemorando o quadragésimo aniversário do exercício de funções docentes do então Presidente do Conselho de Ministros. O volume conta com colaborações dos antigos assistentes daquele mestre: Diogo Freitas do Amaral, José Robin de Andrade, Augusto de Athayde, José Manuel Sérvulo Correia, Armando Marques Guedes, Rui Machete, Jorge Miranda, André Gonçalves Pereira, Nuno Espinosa Gomes da Silva e Miguel Galvão Telles. Destes, assumem a dimensão de estudo jurídico do político os trabalhos de: Armando Marques Guedes, A Unidade Política Nacional e a Autonomia das Províncias Ultramarinas, pp. 139-164; Jorge Miranda, Sobre a Noção de Povo em Direito Constitucional, pp. 201-240; Miguel Galvão Teles, O Regime Jurídico das Campanhas Eleitorais no Direito Comparado, pp. 295-340. No trabalho de Jorge Miranda atingem-se culminâncias quase kelsenianas quando se admite o princípio segundo o qual Estado, povo e poder são noções que reciprocamente se implicam, todas três realidades formadas no mesmo instante por virtude do facto constitutivo do Estado (p. 206), e que comunidade política é apenas o povo, não esse grupo mesmo que se trate duma nação. Direito é apenas o do Estado; poder é apenas o que se exerce no Estado (o poder de a colectividade se constituir em estado logicamente é estranho ao Estado, mas o poder de fazer e modificar a Constituição e de governar só se compreende à luz do Direito de Estado) (p. 212). Graças a este regresso ao jellinekismo, eis que a Faculdade de Direito de Lisboa abandonava as pretensões de volver o estudo jurídico do político numa ciência arquitectónica de todos os estudos políticos.

[19] Veja-se Programa das Disciplinas. Ano Lectivo 1980-1981, Lisboa, Faculdade de Direito, 1981. Na Ciência Política I, o programa consta de uma introdução e duas partes. Na Parte I, Origens e Evolução do Constitucionalismo Contemporâneo. Na parte II, Teoria Geral do Estado, com três capítulos: a Colectividade, o Poder Político e o Território. No capítulo sobre o poder político, incluem-se as seguintes secções: Formas de Estado, Formas de Governo e Legitimidade Política. Os textos de base indicados na bibliografia são os já citados trabalhos Ideologias e Sistemas Políticos e Teoria Geral do Estado. Na bibliografia estrangeira, inclui-se Georg Jellinek, Hermann Heller e Reinhold Zipellius para a Teoria Geral do Estado, bem como Georges Burdeau, Marcello Caetano, Maurice Duverger, André Hauriou e Marcel Prélot.

Nesse ano lectivo, a Ciência Política II era regida pelo Professor Jorge Miranda. O programa consta de duas partes: Sistema de Governo em Geral e Sistema de Governo em Portugal.

No ano lectivo de 1982-1983, conforme consta do Anuário e Programas das Disciplinas, esse dualismo é mais nítido com a regência simultânea dos dois semestres pelo Professor Armando Marques Guedes, dado que a antiga Parte II - Teoria Geral do Estado é pura e simplesmente remetida para o semestre do 4º ano.