47 - O regresso ao constitucionalismo científico.

 

A partir da normalização pedagógica das Faculdades de Direito - e consolidada a autonomia da disciplina de Ciência Política -, surgiram, entretanto, alguns esboços de lições dignos de registo, com destaque para os de J. M. Cardoso da Costa, Elementos de Ciência Política [1978-1979], J. J. Gomes Canotilho, Tópicos de Ciência Política, Coimbra, 1984-1985 (apontamentos policopiados coligidos por Eugénio Pinto, Ana Nunes Monteiro e Carlos Soares), Marcelo Rebelo de Sousa, Ciência Política, Lisboa, 1985, e Jorge Miranda, Ciência Política, Lisboa, 1985-1986.

Cabe, no entanto, a Rui Machete uma das mais consolidadas tentativas, embora parcelar, de autonomização do ensino da ciência política, de acordo com os modelos anglo-saxónicos, publicada em As Perspectivas Científicas Modernas sobre o Poder Político, in Prospectivas, números 4-5, Outubro-Março de 1981 [1].

Mas é só com Marcelo Rebelo de Sousa, no relatório Ciência Política. Conteúdo e Métodos [1989], que, das Faculdades de Direito, vem um esboço de clara distinção de fronteiras com o direito constitucional [2].

Com efeito, os mais justamente afamados professores de direito público que regeram a disciplina de Ciência Política nas Faculdades de Direito, como Gomes Canotilho e Jorge Miranda, enveredaram em pleno pelo constitucionalismo científico, reconhecendo desta forma que as escolas jurídicas portuguesas abandonavam o projecto de construção de uma ciência arquitectónica do político.

Pelo menos, nenhum deles chegou a produzir qualquer obra global sobre ciência política minimamente comparável aos manuais de direito constitucional que foram editando e reeditando. Assim, se Jorge Miranda continuou o constitucionalismo puro, em nome da autonomia do jurídico e procurando trilhar as grandes sendas do jusconceitualismo [3] à maneira de Marcello Caetano, mas sem pretensões de o transformar em ciência arquitectónica do político, eis que Gomes Canotilho se abriu ao recepcionismo de certas correntes da filosofia germânica do direito público, muito em especial das que continuam a praticar a filosofia civil do neomarxismo, à maneira de algumas secções da Escola Crítica de Frankfurt. As sucessivas edições do seu Direito Constitucional assumem uma densidade conceitual de grande fulgor e originalidade. Enquanto isto, Marcello Rebelo de Sousa enveredou por um ecletismo metodológico de que se esperam obras gerais, tanto no campo do direito constitucional como no da ciência política; seria enriquecedor vermos concretizado em texto corrido o programa apresentado no concurso para a obtenção do grau de Professor Agregado.

Uma nova geração, entretanto, despontou. Em Coimbra, José Carlos Vieira de Andrade é autor de A Imparcialidade da Administração como Princípio Constitucional, Coimbra [1974], Grupos de Interesse, Pluralismo e Unidade Política [1977] e Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 [1983], destacando-se também a dissertação de mestrado de Jorge Reis Novais, Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e Democrático [1987].

Na Faculdade de Direito de Lisboa, salientam-se Maria Lúcia Amaral [4], João Caupers [5], António Vitorino, Assunção Esteves, Vitalino Canas [6], Paulo Otero [7] e Carlos Blanco de Morais [8].

Mais recentemente, importa referir os trabalhos de Paulo Ferreira da Cunha, com destaque para a dissertação de doutoramento em Coimbra, Constituição, Direito e Utopia [1996], completada com Amor Iuris. Filosofia Contemporânea do Direito e da Política [1995], a que deve juntar-se o texto do seu doctorat de l’Université de Paris, Mythe et Constitutionnalisme au Portugal (1778-1826). Originalité ou Influence Française [1992].

As actuais perspectivas dos continuadores da Escola de Direito Público de Lisboa, no tocante às fronteiras entre o direito constitucional e a ciência política, parecem, aliás, pacíficas tanto para politólogos como para constitucionalistas. Com efeito, o Professor Jorge Miranda salienta que, enquanto a ciência do Direito Constitucional configura o Estado na veste de instituição jurídica, a Ciência Política toma-o como sistema de relações, forças e comportamentos, tendo como fundo o poder ou a interferência no poder. Se a primeira se ocupa, antes de mais, da regularidade ou da validade da acção do poder [9], já a segunda, a Ciência Política, ocupa-se (ou ocupa-se principalmente) da sua efectividade, estudando o fenómeno político em si, as estruturas governativas e as estruturas de participação política, estuda e tenta reconstituir os sistemas de poder [10].

Contudo, se, conceitualmente, foi assinado uma espécie de tratado de não-proliferação de disputas entre os cultores dos dois ramos do saber, continua infra-estruturalmente presente, no domínio de algumas pretensas elites da classe política, uma certa ideologia do jurídico como ciência arquitectónica do político, não faltando sequer a tentação de mandarinato intelectual por parte de cultores não-universitários do direito constitucional, talvez devido ao papel estruturante que foi assumido pelos constitucionalistas portugueses, tanto na definição da imagem do nosso regime político como na prática das chamadas análises políticas, durante a fase pós-revolucionária da democracia [11].

Aliás, os chamados analistas políticos portugueses da primitiva época pós-revolucionária deixaram de o ser, invocando muitas justificações e algumas opções de vocação ou de profissão. A razão da mudança deveu-se, sobretudo, ao facto de lhes faltar objecto para a análise. Eles, que tentavam uma pretensa objectividade mais ou menos cientificista sobre as andanças dos principais actores políticos, foram obrigados a reconhecer que, na pós-revolução, entre o soarismo governamental e o cavaquismo (1976-1985), o grande teatro de operações dos políticos profissionais e amadores (dos dirigentes políticos, político-militares e político-sindicais aos jornalistas e opinion makers que com eles viviam em conúbio) passou a ser um simples subsistema de um mais vasto processo de factos reais de poder.

É justo que se destaque o papel fundamental que os professores e assistentes de direito público de Lisboa e de Coimbra desempenharam, tanto na feitura da Constituição de 1976 como nas posteriores revisões constitucionais, cabendo um lugar especial ao Professor Jorge Miranda que, misturando a paixão cívica pela liberdade e pelo Estado de Direito com a investigação científica, nos legou a estruturante dissertação de doutoramento A Constituição de 1976. Formação, Estrutura, Princípios Fundamentais, Lisboa, Livraria Petrony, 1978, bem como as sucessivas edições dos quatro tomos do respectivo Manual de Direito Constitucional, iniciado em 1981 [12].

Contudo, em Jorge Miranda, a secura kelseniana do conceitualismo foi sempre compensada pelo militantismo de uma liberdade entendida à maneira do personalismo católico, numa síntese a que chegou a dar o nome de social-democracia e que praticou no teatro de operações da Assembleia Constituinte, em notáveis duelos verbais com o marxismo-leninismo althusseriano de Vital Moreira.

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[1] De Rui Machete, ver também «A “Teoria Geral do Estado” em Portugal nos últimos vinte anos», in O Direito, XCVII, ano 97, 1965,  pp. 93-105 e 185-205, bem como Sumários Desenvolvidos de Direito Constitucional, Lisboa, 1971 (com Jorge Miranda). O trabalho citado constitui uma das peças de Ciência Política. Textos de Apoio, I, Lisboa, 1978-1979.

[2] De Marcelo Rebelo de Sousa, destacam-se outros seguintes trabalhos com incidência politológica: Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português, Braga, Livraria Cruz, 1983 (dissertação de doutoramento); O Sistema de Governo Português. Antes e Depois da Revisão Constitucional, Lisboa, Cognitio, 1984 (3ª ed.). Ciência Política, Lisboa, 1985; Direito Constitucional. Introdução à Teoria da Constituição, Braga, 1979.

[3] Para o Professor Jorge Miranda, o método próprio da Ciência jurídica é o método dogmático… interpretação e construção, análise e síntese, induzir para deduzir mais tarde, andar do particular (da norma ou do preceito) para o geral (a unidade do sistema) e deste, outra vez, para o particular (a subsunção das situações e relações da vida); em suma, uma elucidação racionalizante e totalizante. In Manual de Direito Constitucional, tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 32.

[4] «Do Pluralismo ao Neo-Corporativismo. A Função Política dos Grupos de Interesse», Lisboa, Faculdade de Direito, 1985 (in O Direito, anos 106-109).

[5] A Administração Periférica do Estado. Estudo de Ciência Política, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, 1994.

[6] Ver, de Vitalino Canas, «A Forma de Governo Semi-Presidencial e suas Características. Alguns Aspectos», in Revista Jurídica, nº 1, Outubro-Dezembro de 1982, pp. 89 segs.; e Preliminares do Estudo da Ciência Política, Macau, Publicações “O Direito”, 1992.

[7] Ver, de Paulo Otero, «O Brasil nas Cortes Constituintes de 1821-1822», in O Direito, 1988, pp. 399 segs.; «A Descentralização Territorial na Assembleia Constituinte de 1837-1838 e no Acto Adicional de 1852», in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 291 segs.; e O Poder de Substituição em Direito Administrativo, Lisboa, 1995.

[8] De Carlos Blanco de Morais, A Autonomia Legislativa Regional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.

[9] Manual de Direito Constitucional, tomo I, 5ª ed., 1996, p. 29.  Na anterior edição, reservava-se para a ciência política o sistema de poder, de obediência ou de participação no poder (tomo I, p. 32).

[10] Idem, pp. 29-30. Na anterior edição dizia-se que a ciência política estuda os aspectos internos das instituições políticas, o fenómeno político em si, as estruturas governativas, estuda e tenta reconstituir os sistemas políticos (p. 33). Este mesmo autor ensaia uma distinção entre ciência política e sociologia política, considerando que esta última estuda o fenómeno político situado no domínio mais vasto dos fenómenos sociais e pretende conhecer as acções recíprocas  entre o Estado e outras manifestações da vida social, pretende conhecer a acção e reacção que existe entre o fenómeno político e os demais fenómenos sociais. Assim, se a ciência política descreve e analisa os sistemas políticos, já a sociologia política procura explicá-los através de métodos sociológicos adequados (ed. de 1996, p. 30). Na anterior edição, dizia-se que a sociologia política  pretende, de certo modo, explicar os sistemas políticos (por que é que em certa sociedade há este e não aquele sistema político), enquanto que a descrição de tais sistemas pertence à Ciência Política (p. 33).

[11] Nesta função, destacou-se o Professor Marcelo Rebelo de Sousa tanto no semanário Expresso como, depois de ser Ministro no último governo da Aliança Democrática, n’O Semanário. Na primeira fase, coube-lhe a imagem de criador de factos políticos através da efabulação que semanariamente incluía nas suas crónicas. Na década de noventa, na fase crepuscular da governação de Cavaco Silva, o mesmo professor voltou ao culto da análise política num programa semanal de rádio, o Exame, no qual a respectiva imaginação criadora voltou a marcar o ritmo do discurso dos nossos políticos, amadores e profissionais. Seis meses depois da formação do novo governo socialista, presidido por António Guterres, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se presidente do PSD e líder da oposição.

[12] De Jorge Miranda, para além dos primeiros trabalhos, como Sumários Desenvolvidos de Direito Constitucional [1971, em colaboração com Rui Machete] e Sobre a Noção de Povo em Direito Constitucional [1973], refiram-se as obras de luta pela constituição, A Revolução de 25 de Abril e o Direito Constitucional [1975], Um Projecto de Constituição [1975], Constituição e Democracia [1976], Revisão Constitucional e Democracia [1983], Ideias para uma Revisão Constitucional em 1996 [1996]. No Manual de Direito Constitucional, destaca-se o tomo I, Preliminares. O Estado e os Sistemas Constitucionais, com uma 5ª edição em 1996, e o tomo III, Estrutura Constitucional do Estado. Refira-se também o volume de apontamentos Ciência Política. Formas de Governo [1992].