65 - Do desencanto à reforma.

 

Infelizmente, a ciência política em Portugal padece ainda da nossa pequena dimensão universitária, onde, em vez de um harmónico small is beautiful, se acentuam os ancestrais vícios de uma certa guerra civil ideológica típica do Portugal Contemporâneo, do qual ainda não foi possível eliminar algumas heranças inquisitoriais, bem como os subsequentes traumatismos resultantes das rupturas revolucionárias e das ilusões construtivistas, com as suas procuras de um homem novo feitas a golpes de cacete ou de decreto, as inevitáveis doutrinas oficiais e o eventual saneamento dos que não se integram na nova ordem. Toda essa herança do burguesismo iluminista que supôs poder o homem ser dono e senhor da natureza, dono e senhor da sociedade e dono e senhor da história, essa ilusão de revolução, de homem novo, tão negativa como o seu irmão-inimigo contra-revolucionário, adepto de uma revolução ao contrário ou de um andar-para-trás reaccionário.

Ora uma das consequências habituais do estabelecimento de novas intelligentsias oficiais consiste na expulsão dos universitários que não jurem fidelidade ao novo estado de coisas e no estabelecimento, directo ou indirecto de livros únicos, conforme o modelo da reforma pombalina da Universidade e dos subsequentes saneamentos de lentes liberais pelos miguelistas, ou de lentes miguelistas pelos liberais, numa sementeira de intolerância que prosseguiu por ocasião da instauração da República, da institucionalização do Estado Novo ou do lançamento do processo revolucionário em curso dos anos de 1974-1975.

Todos estes traumatismos provocaram a falta de serena continuidade reflexiva e, consequentemente, a impossibilidade de evolução espontânea, gerando medo onde deveria estar sentido de escola e subserviência onde deveria frutificar a lealdade, ao mesmo tempo que se desenvolvia uma acrítica aceitação de construtivismos que cheirassem a moda ou revelassem sinais de força.

Mesmo na actividade intelectual dos que formalmente deveriam praticar a necessária liberdade de cátedra eis que, muitas vezes, surgem recônditos medos ou incompreensíveis cedências daquele andar meio mundo em bicos de pés e outro tanto de pé atrás, como costuma salientar o Professor Adriano Moreira.

Muitas vezes, alguns dos mais originais criadores portugueses, são esquecidos e silenciados no seu próprio tempo. Já neste século, um Cabral de Moncada ficou reduzido à torre de marfim do eruditismo universitário e um Moses Bensabat Amzalak continua perdido em pequenos folhetos editados pela Academia das Ciências, apesar de ser estudado em centros culturais norte-americanos ou de ser citado em obra recente de Peyrefitte sobre a teoria da confiança, enquanto se sucedem elogios fáceis a glosadores de modas efémeras sem qualquer espécie de enraízamento na realidade da nossa história. Do mesmo modo, as investidas da imaginação criadora, da filosofia simbólica e das parábolas de um Agostinho da Silva foram reduzidas ao fait-divers de uma qualquer manipulação mediática, como se os apelos que esse mestre fez se reduzissem à dimensão de flor na lapela para uso de certos políticos.

Os juristas da Restauração, de Francisco Velasco Gouveia a João Pinto Ribeiro, proibidos pelo pombalismo, foram efectivamente saneados das nossas anteriores culturas políticas, do absolutismo ao demoliberalismo, monárquico e republicano. Muita da filosofia política da escolástica peninsular dos séculos XVI e XVII nunca mais foi repensada por não se enquadrar nos moldes laicistas e anticlericalistas que mobilizaram iluministas, positivistas e marxistas. Obras contra-revolucionárias, como as de Gouveia Pinto e José da Gama e Castro [1795-1873), autor d’O Novo Princípe ou o Espírito dos Governos Monarchicos [1841], eram objecto de censura explícita ou implícita e, por isso, nem se reparou que o último autor citado foi o tradutor de The Federalist.

Os velhos liberais da era do constitucionalismo monárquico são quase todos banidos pelo posterior republicanismo. Os republicanos dissidentes do partido conformado por Afonso Costa e pelo anticlericalismo carbonário deixam de ser citados. Com o salazarismo, novo absolutismo trata de vingar-se de demoliberais da direita e da esquerda, e até o próprio pensamento social-cristão, quando desalinha do modelo oficioso, passa para a marginalidade.

Um país que, desprezando a continuidade das instituições históricas e o evolucionismo reformista, foi sucessivamente decepado, tanto das suas raízes como dos posteriores enxertos que se radicavam no húmus dos valores permanecentes. A atracção pelo Estado exíguo tornou-nos numa quase res nullius susceptível de ocupação por uma qualquer minoria militante capaz de controlar a intelligentzia dependente do subsídio estadual, com os próprios opinion makers desligados dos últimos redutos académicos e universitários onde se ousava pensar português. A inevitável colonização cultural e o consequente nihilismo não tardaram a chegar, matando a esperança e a vontade de manutenção de uma autonomia cultural, assim como a necessidade de um sustentado programa de formação de elites políticas, culturais e administrativas. Portugal, depois dos exageros de um pretenso Estado Ético e de uma política de espírito, ficava bem mais acanhado na sua dimensão intelectual do que no tocante às respectivas dimensões territoriais, populacionais e económicas. O vazio de política levava às tentativas concretizadas de ocupação desse espaço por jornalistas e por pequenos lobbies de pequenos patrões, pequenos sindicatos e muitos outros exíguos corporativismos de grupos de amigos e de grupos de interesses.

Ainda hoje podemos dizer, como Álvaro Ribeiro, que quem não escreve em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não está inscrito numa congregação de elogio-mútuo [1], quem está disposto a lutar contra a sindicalização do trabalho intelectual que ameaça o pensamento livre [2] pela recíproca defesa das mediocridades [3] e pela agressividade da inveja que se manifesta pela humilhação [4], corre o risco de nem sequer poder comunicar com outros que gostariam de fugir dos pretensos canalizadores da opinião crítica e da opinião pública, ou publicada.

Quando a opinião crítica quase se reduz às páginas culturais das revistas e semanários de fim-de-semana que traduzem as últimas novidades do vanguardismo, e quando a própria Universidade se eriça na sua concha sebenteira ou monografista, corremos o risco de mantermos um arquipélago de inúmeras torres de marfim, insusceptíveis de fecundarem a realidade e de influenciarem os movimentos sociais com um pouco de pensamento. Daí continuarmos refugiados no Vale de Lobos da ficção romanesca e no exercício lírico da poesia ou do ensaísmo, onde muitos literatos maiores e menores, apesar de tudo, conseguem transmitir uma corrente que se aproxima do sentimento geral da comunidade.

Aliás, não é por acaso que algumas das mais profundas reflexões sobre a política em Portugal nascem da pena de escritores como Vergílio Ferreira, principalmente em Espaço do Invisível [1965, 1976 e 1977] e nos diários da Conta Corrente [1980, 1981, 1983, 1986, 1987 e 1993], ou de críticos literários e professores de literatura, como Eduardo Lourenço [1976, 1978 e 1988].

Alguns brilhantes teorizadores portugueses persistem em dividir o mundo segundo as dimensões da direita e da esquerda, mas padecem daquela visão paroquial e demonizante de certos fantasmas da década de sessenta, de acordo com a qual até personalidades que se autoqualificam da esquerda liberal são denominados como membros da direita democrática para que, a partir de tal posição, não exista mais mundo polido e civilizado, mas tão só as trevas da reacção.

Continuamos, com efeito, a sofrer os efeitos daquele gnosticismo típico do século XIX que irmanou cientismo, materialismo e positivismo, de tal maneira que qualquer governante dos dias que passam, ou dos imediatamente antecedentes, não deixa de invocar a Luz contra as Trevas, o Progresso contra o Atraso, e a Modernização contra o Bloqueio.

Pode ter razão Gabriel Almond quando fala nas chamadas seitas existentes entre os que estudam a política, mas a respectiva qualificação de direita e esquerda vive no mundo onde a esquerda tem a humildade de conhecer a direita, e não reduz a esquerda àquele conjunto dos que nem sequer tratam de ler o que a chamada direita escreve [5]. Assim, refere uma Hard Right que, no plano metodológico, é essencialmente descritiva, estatística e experimentalista, apontando os exemplos de V. O. Key, James Buchanan, Gordon Tullock e William Riker, contrapondo-a a uma Soft Right, marcada por uma miscelânea conservadorista que ataca o iluminismo e o cientismo e coloca Leo Strauss como seu chefe-de-fila. Na banda da direita, enumera uma Hard Left, em que se destaca a escola dependencista representada pelo actual Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, e uma Soft Left, herdeira da Escola Crítica de Frankfurt.

Contudo, se utilizássemos os critérios de Almond, em que a esquerda e a direita tanto se medem pela dimensão ideológica como pela dimensão metodológica, verificaríamos que, em Portugal, não há campo possível para tal análise. Se achamos salutar que a própria dialéctica empobrecedora de um confronto entre a direita e a esquerda seja superado, sempre preferiríamos que o mesmo se mantivesse, porque o que lhe sucedeu foi, ou o domínio de um dos hemisférios pelo esmagamento do outro, ou, pior ainda, um vazio nihilista.

Diremos até que podemos perspectivar a direita e a esquerda, em sentido psicológico, como disposições de temperamento. Se há quem considere que a direita prefere a injustiça à desordem, optando pelo primado da moral de responsabilidade, enquanto a esquerda tende a ser marcada pela moral de convicção, acontece que, na prática, os planos podem confundir-se: governos de direita conduzidos por temperamentos de esquerda e revoluções de esquerda feitas por temperamentos de direita, para utilizarmos palavras de Jacques Maritain.

É mais importante o modelo dos conformismos estruturais, em que os situacionismos, sejam eles de esquerda ou de direita, se irmanam, enfrentando aqueles que apelam para os valores, sejam de esquerda contra um situacionismo de direita, sejam de direita contra um situacionismo de esquerda. Acresce que a internacionalização das sociedades civis, das relações intergovernamentais e dos próprios modelos económicos, principalmente os resultantes da unificação europeia, podem levar a que governos de contraditórios sinais ideológicos se confundam em idênticas misérias e grandezas, pelo que invocações de tribalismos internos podem assumir a dimensão do paradoxo.

Poderíamos anunciar alguns exemplos preocupantes: com efeito, até o ancestral confronto universitário português entre o humanismo católico e o humanismo laico - um, tendencialmente marcado pelo nihil obstat e o outro, mais ou menos maçónico - , depois de se perder nos meandros das teorias da conspiração, deixou de ter sentido [6].

Aliás, os tradicionais estrangeirados portugueses da Idade Contemporânea, em que era esmagadora a hegemonia do pensamento político francês, foram recentemente substituídos pelas ways of thinking anglo-saxónicas. Curiosamente, alguns dos principais vultos do pensée 68 francês, pouco dados à New Left, substituíram Sartre, Althusser e os vultos da filosofia do desejo pelos membros da Escola Crítica de Frankfurt mais citados nos Estados Unidos da América.

Se ainda há alguns anos o vanguardismo português considerava como capital cultural do país o nível de discussões travadas entre bolseiros, refugiados e escrevedores que circulavam pelos Champs Elysées, eis que, nos dias que correm, parecemos deslizar para um novo foco colonizador, agora posto no além-Atlântico, entre Madison e Stanford, com viagens por New York, Providence e Chicago. O resto do país, que é o país, situa-se fora dessa nova capital mental, porque não quer ir além da dimensão deste país, nem transformar-se em mera província onde apenas se cultiva a paisagem, num sítio que, enrodilhado na vergonha pelo que fomos, quer abster-se de história, apesar de muitos o quererem erigir em reserva ecológica ou em campo de concentração para escavações arqueológicas.

Com algum atraso, pensadores neomarxistas como Immanuel Wallerstein transformaram-se num dos luzeiros mais atractivos nesta pequena casa lusitana e a própria Fundação Calouste Gulbenkian editou, com pompa e circunstância, um relatório Para Abrir as Ciências Sociais, em que, apesar da qualidade intelectual, se descobre muito do que já estava descoberto e se inventa muito do que já estava inventado, nomeadamente pela UNESCO, logo no pós-guerra. Outros, quando procuram pensar sobre a invenção democrática, parecem continuar a tratar tal ideal como coisa importada do desenvolvimento alheio, como se entre nós não houvesse tradições plurisseculares de consensualismo, resistência libertadora e vontade de autonomia. Especialmente numa época em que o Ocidente precisa de reaprender os génios invisíveis que agitam espaços culturais de quem estamos tão próximos, como o islâmico, o africano, o sul-americano e os da China e do Japão; esses mundos que necessitam daquele diálogo que aceita a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações, a dimensão da cidadania do género humano e a vontade de acedermos ao universal pela diferença. Porque, de outro modo, as reacções fundamentalistas contra formas etnocêntricas poderão multiplicar-se, decepando a esperança de uma terra dos homens.

Entre nós, no plano universitário, porque cada professor é sempre uma espécie de avô de si mesmo, é nestes finais da década de noventa que o recepcionismo marxista dos anos sessenta assoma pela liberdade de cátedra. Mas também Karl Popper chegou com muita décadas de atraso, tal como traduzimos de forma retardada Uma Teoria da Justiça de John Rawls, e ainda não glosámos suficientemente em torno de Hayek e Nozick. Pelo contrário, nos tempos áureos do pensée 68, quando muitos consideravam a filosofia como uma espécie de luta de classes na teoria, publicámos quase imediatamente as teses de Nicos Poulantzas (algumas vezes traduzido por José Saramago) e de Louis Althusser e, em muitas zonas do ensino universitário, mesmo antes de 1974, a bíblia do marxismo ortodoxo era matéria obrigatória [7].

Se o exagero de um certo positivismo organicista, já serôdio, não permitiu que, nas décadas de quarenta e cinquenta, tivéssemos importado o behaviorismo; se as teorias elitistas de Pareto, Mosca, Ostrogorski e Michels chegam à Universidade com quase um século de atraso; eis que as teorias pluralistas quase não são citadas, apesar da crítica do neocorporatism a essas mesmas teses estar hoje na moda.

Temos uma democracia plurissecular, apesar de ainda ser qualificada como uma jovem democracia, com necessidade de consolidação e aprofundamento, mas falta-nos uma nova teoria da democracia, susceptível de dar pedagogia aos activistas políticos e aos políticos profissionais e de servir para uma efectiva formação para a cidadania.

As teorias sobre a democracia pensadas em português são quase todas de alguma excelente, mas serôdia, literatura antifascista, desde as páginas políticas dos seareiros Raúl Proença e António Sérgio, aos trabalhos de Domingos Monteiro ou de alguns monárquicos personalistas.

Falta, sobretudo, um reconhecimento dos efectivos factores democráticos da formação de Portugal. Não apenas das raízes comunitárias medievais, tão profundamente tratadas por Jaime Cortesão, Paulo Merêa e Agostinho da Silva, ou do poder político no Renascimento português, como tão magistralmente teorizou Martim de Albuquerque, mas também dos elementos de soberania comunitária que deram corpo à Restauração de 1640.

Falta também ultrapassar uma certa historiografia de guerra civil ideológica: por exemplo, perspectivar-se 1820 como uma reacção contra o despotismo ministerial do absolutismo e que, neste sentido, se configurou como uma efectiva restauração do consensualismo.

As relações dos intelectuais com a reflexão política em Portugal vivem entre o reviralhismo e o modismo, categorias com que procuramos aportuguesar o againstism e o movimentism de Giovanni Sartori [1991]. Com efeito, em Portugal, mesmo às minorias falta a chamada coragem de estar em minoria, como costuma dizer o Professor Adriano Moreira; e daí que o nosso intelectual com intervenção na política não cesse de viver em rebanho para, numa curva da estrada, cair na tentação de ser conselheiro de um qualquer césar de multidões como ameaçam os neopopulismos de esquerda e de direita.

A power elite à portuguesa já não circula apenas nos passos perdidos, dado que os principais factores de poder deixaram de ser manifestação interna da soberania e, mesmo os que dela estão dependentes, foram readquiridos por uma nova actualização da classe bancoburocrática que não se reduz apenas ao comunismo burocrático dos funcionários, gestores públicos e dirigentes partidários, entre a Linha de Cascais, a Foz do Douro e os banhos nas praias algarvias, com bisbilhotices nos semanários políticos, lidos pela snobbery dos radical chic e dos young urban profissionals.

Os antigos analistas e comentadores políticos foram substituídos pelos fazedores de uma opinião attrape tout, os quais, mesmo quando têm responsabilidades universitárias, se deixam transformar em canalizadores da opinião política ou em simples fabricantes de má língua, uns tentando vender a democracia segundo métodos herdados da agit-prop social-fascista ou anti-social-fascista, outros levando ao rubro o decadentismo de alguns salões de certa burguesia queirosiana.

O divórcio entre a razão e a emoção, ou, dito por outras palavras, entre o exagero de uma racionalidade racionalista e um global entendimento do simbólico, aberto à racionalidade axiológica, leva os cultores da frieza analítica à demagogia e à cedência face às legitimidades carismática e tradicional.

Aliás, o nosso sistema político-partidário constitui um sistema de canalização da representação política que corre o risco de desenraizar-se da cultura portuguesa e da sociologia dos portugueses que temos. Está e estará em crise porque, pura e simplesmente, lhe faltam ideias e lhe falta povo, isto é, não tem sustentáculo na vida nem horizonte de sonho. O que leva ao crescente indiferentismo das massas face aos profissionais da política que nele circulam e acirra a tendência do mesmo servir como agente colonizador de ideias estrangeiras, no sentido de estranhas à nossa própria índole. Isto é, continuamos a dar razão a meia dúzia de autores bem lusitanos, desde Joaquim Pedro de Oliveira Martins a Raúl Brandão, desde Ramalho Ortigão ao próprio Fernando Pessoa, desses que, sem catastrofismos, perceberam Portugal nas suas próprias entranhas e que continuarão perenes enquanto os portugueses forem os inveterados portugueses que somos.

Aliás, politologicamente falando, é um erro reduzir o sistema político ao sistema político-partidário. O sistema político é um todo em que o sistema politico-partidário constitui um simples subsistema, ao lado de outros subsistemas como o social e o económico, integrado num determinado ambiente internacional. O poder político, aquele poder que produz decisões políticas, também não é uma coisa que possa conquistar-se, como uma espécie de terra de ninguém. O poder político é uma relação entre vários poderes e micropoderes...

Portanto, falar em qualquer reforma do sistema político-partidário pensando exclusivamente a partir das suas quezílias intestinas e julgar que, de cima para baixo ou de dentro para fora, é possível alterá-lo, constitui mero exercício de ilusionismo que não consegue intervir nas circunstâncias do ambiente que, não só o condicionam, como também o conformam. O sistema politico partidário não passa de uma peça de um mais vasto sistema político. Não passa de um mero subsistema dentro de um sistema mais vasto que o diluiu.

Os factores de poder que o dito subsistema politico-partidário pode gerir são ínfimos, dado que grande parte da nossa soberania não passa de simples capacidade para gerirmos dependências e interdependências. Da mesma forma, o poder internacional do Estado português não é uma coisa: é uma relação que se mede menos pela física do poder e mais pela estratégia, pelo que as grandes potencialidades podem transformar-se nas grandes vulnerabilidades.

Por tudo isto, importa ganharmos consciência da nossa dimensão e percebermos que, mesmo integrados na União Europeia, temos de viver com aquilo que temos e que não deveríamos viver acima daquilo que produzimos, dado que esse excedente de sociedade de abundância que por aí pulula é artificial, resultando de subsídios dos outros que, longe de significarem solidariedade, apenas constituem contrapartida indemnizatória face aos factores internos de poder que cedemos ao conjunto.

Quem não tiver consciência desta realidade perde aquela fibra multissecular que nos deu o essencial do que somos. Aquilo que Herculano muito simplesmente qualificava como a vontade de sermos independentes. Esse qualquer coisa que nos levou a ser Portugal livre, quatro séculos antes de Maquiavel inventar o Estado. Quatro séculos e meio antes de Bodin inventar a soberania. Seis séculos antes de se balbuciar a teoria do princípio das nacionalidades. Essa fibra portuguesa que suscitou 1640, 1820 ou aquela geração que tratou de cantar os heróis do mar por ocasião do Ultimatum.

O último representante desses velhos fazedores e defensores da conservação da Pátria morreu há poucos anos. Chamava-se Agostinho da Silva e reinventava todos os dias as conspirações do manuelinho de Évora e dos frades alcobacences que nos deram as Actas das Cortes de Lamego, recuperando aquela seita dos velhos crentes na qual militaram Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Raúl Brandão, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e o maior de todos os profetas dessa geração: Fernando Pessoa.

Nenhum desses resistentes da liberdade portuguesa alguma vez escreveu Grandes Opções do Plano, contratos de legislatura, programas de governo ou relatórios do Banco de Portugal. Esses velhos crentes preferiram continuar, através da pena, sem espada nem livro de cheques, a guerrilha inventada pelos falsos D. Sebastião, essa guerrilha intelectual dos homens livres que cultiva o quinto império do poder dos sem poder

Sempre acrescentarei que o actual sistema político dito República Portuguesa, nasceu das circunstâncias prequianas e pós-revolucionárias. É o somatório do 25 de Abril, do 28 de Setembro, do 11 de Março, do 25 de Novembro, mais Mário Soares, mais Sá Carneiro, mais Ramalho Eanes, mais Cavaco Silva. Um híbrido ou uma mistura que teve nas margens Álvaro Cunhal, de um lado, e o saudosismo salazarista, do outro. Um sistema que provindo do último Império Colonial Europeu, não quis ser a Cuba da Europa nem o líder do terceiro-mundismo, tornando-se ao invés no bom aluno do Presidente Jacques Delors.

Para nos organizarmos politicamente, tivemos diligentes constitucionalistas e esforçados constituintes, e montámos, quase laboratorialmente, um sistema político-partidário. Que teve o defeito de ter nascido de cima para baixo. Do Estado-Aparelho de poder para o Estado-Comunidade. Que foi decretado a partir da classe político-cultural que tomou as rédeas do cavalo do poder lisboeta. Que desceu da capital para a província, da elite para o povo, não a partir do telégrafo, mas do telejornal, da cunha e da distribuição de empregos.

O que temos é uma mistura entre um sentido ideal e uma realidade prática. No plano ideal, no plano normativo, somos uma democracia e ainda bem. No plano prático, somos uma poliarquia, e também diremos, ainda bem. Isto quer dizer que a democracia constitui algo que é, mas que não existe. Não é uma utopia, mas um ideal histórico concreto, uma espécie de imperativo moral que nos conforma, uma espécie de medida que apenas serve para quotidianamente podermos detectar a falta de autenticidade do poder.

Mas, tal como no plano ideal a democracia tende a ser expropriada pela não democracia, também no plano prático a poliarquia tende a ser confiscada pelo corporativismo. Por outras palavras, o subsistema político-partidário tende a ser dominado ou condicionado pelo subsistema económico e pelo ambiente internacional, de tal maneira que a decisão política pode tornar-se mera presa de grupos de pressão e de grupos de interesse que, na prática, podem fazer depender o poder político do poder económico, e os factores de poder nacionais das forças anónimas que circulam pelos vazios de poder internacionais.

Com efeito, a lei do Portugal Contemporâneo demoliberal sempre foi a do crescendo da degenerescência do sistema representativo pela falta de autenticidade do subsistema partidário, no qual a necessária estabilidade provoca a inconveniente corrupção que, por sua vez, gera a decadência que leva os regimes a cairem de podres como árvores sem seiva que se esvaem pelo mero corroer do tempo. Tal como na época de Raúl Brandão, a mocidade vive nas antecâmaras do governo como os antigos poetas do século passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são agiotas ou servidores do Estado. Os moços são bacharéis e querem bacharelar acerca da coisa pública e à custa da mesma coisa acerca da qual bacharelam [8]. Porque, utilizando palavras de Júlio Dinis, a vida política tem isso consigo. Quanto mais estreito, mais apertado é o círculo social onde se manifesta, quanto mais vizinhos e conhecidos são os que vivem dela, tanto mais acanhada, mexeriqueira e antipática se torna. Se a política do nosso país é já pequena como ele, se degenera em desavença de senhoras vizinhas, que fará nas terras pequenas deste país, em que muito acima dos princípios e dos partidos estão os mexericos e as vaidadezinhas que brotam como tortulhos à sombra das árvores do campanário? [9]. Porque, seguindo agora Camilo Castelo Branco, continuamos a viver uma época essencialmente analisadora; e o nosso público é zelosamente empenhado em julgar os grandes e pequenos acontecimentos, desde a revoltosa queda de uma dinastia de quinze séculos até à demissão imprevista de um cabo de polícia, também julga os grandes e pequenos homens, desde os heróis de cem batalhas até bagageiros inofensivos: desde César a João Fernandes [10].

Tal como sempre, o nosso actual demoliberalismo padece dos males da falta de influência dos intelectuais sobre a actividade política; das manias das falsas elites em confronto com a tentação populista e vanguardista; da falta de tradição partidária em comparação com a enraízada democracia da sociedade civil; da permanente tentação do confronto entre um pretenso Portugal Novo e um real Portugal Velho.

Por tudo isto, a ciência política tem também direito ao desencanto (à Entzaubrung de Weber), a consequência inevitável do desenvolvimento de uma perspectiva racional-normativa, marcada por uma exagerada moral de responsabilidade, num universo ainda carregado de legitimidades tradicionais e carismáticas e que só pode racionalizar-se pelo recurso ao esforço de uma moral de convicção, geradora de uma perspectiva racional-axiológica.

Utilizando uma linguagem típica dos sistémicos, recordarei que um sistema político, enquanto processo de interacção que visa uma atribuição autoritária de valores, tem de ser visto como uma unidade inserida num ambiente, donde, por um lado, recebe entradas (inputs) - os apoios às exigências que se articulam, agregam e manifestam pela acção de grupos de interesse, grupos de pressão, movimentos e partidos políticos - e, para onde, por outro, deve emitir saídas (outputs). Para que entre o ambiente e o sistema se gere um fluxo contínuo que permita ao sistema ser um sistema aberto e evolutivo, mantendo embora a respectiva autonomia.

Acontece que os produtos do sistema político, as decisões políticas, não se reduzem às clássicas funções estaduais (o fazer regras do poder legilativo ou rule making, o executar programas do governar ou rule application, e o aplicar regras em situações contenciosas do rule adjudication ou poder judicial), dado que há um outro campo de produção de tal sistema, a comunicação política, a troca de informação entre governantes e governados, bem como a própria troca de informação horizontal entre os governados. Por outras palavras, a função de comunicação política é, ela própria, tanto um produto nitidamente político, como o sangue irrigador dos canais nevrálgicos do próprio interior do sistema político. Com efeito, a troca de informação constitui o fluído através do qual se procede à irrigação do sistema de nervos estadual, sendo, por isso, o elemento fundamental do sistema político.

A questão da informação, da circulação da informação e do controlo da informação constitui a questão fundamental do sistema político. Aliás, governar é proceder à retroacção da informação. É converter os inputs em outputs, converter os apoios e as exigências em decisões políticas. É pela informação, pelos sensores dos centros de recepção de dados, que o sistema político contacta com o respectivo ambiente, com os outros subsistemas sociais e com os outros sistemas políticos. É pela operação de processamento de dados, confrontando mensagens do presente com informações arquivadas no centro da memória e dos valores, que o sistema político pode, ou não, adquirir autonomia e identidade. É depois, no estado maior da consciência, que se selecciona a informação presente e passada e se confronta este conjunto com as metas programáticas, isto é, que o sistema político prepara a pilotagem do futuro em que se traduz a governação.

Os meios de comunicação social, dos mass media aos próprios meios de reflexão científica, não são pois sociedade sem política, não são comunidade sem poder. Todos os meios de comunicação social são meios de comunicação política. Eles estão, aliás, no centro da política. São uma das principais bases da política, mesmo que a respectiva titularidade seja privada.

Com efeito, o processo político, o processo de conquista do poder, se adoptarmos uma perspectiva da poliarquia pluralista, consiste num processo de conquista da adesão do governado. O processo político não se reduz à luta pelo poder supremo ou à conquista do poder de sufrágio. O processo político é global e desenrola-se em todo o espaço societário. Mais uma vez reafirmamos: o poder político não é uma coisa, é uma relação. Uma relação entre a república e o principado, entre a comunidade e o aparelho de poder, e destes com um determinado sistema de valores.

Tal como o Estado, enquanto quadro estrutural de exercício do poder, enquanto estrutura de rede (network structure), enquanto espaço de regras do jogo e de enquadramento institucional do processo de ajustamento e de confronto entre os grupos, não é também uma coisa, mas antes um processo. O poder político é, conforme a clássica definição de Weber, uma estrutura complexa de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso. Isto é, um poder político, ao contrário das restantes formas de poder social, implica a existência de uma relação entre governantes e governados, em que o governante exerce um poder-dever e o que obedece obedece porque reconhece o governante pela legitimidade deste. Em suma, o poder político vive, sobretudo, da obediência pelo consentimento.

Assim, o espaço normal do processo político é o da persuasão. O da utilização da palavra para a obtenção da adesão e do consentimento. Só quando falha este processo normal de adesão comunicativa, o governante utiliza a persuasão com autoridade, com o falar como autor para auditores, em que o autor se situa num nível superior e o auditor num nível inferior da audiência. Num terceiro passo vem a astúcia. Isto é, quando falha a comunicação pela palavra, mesmo que reforçada pela autoridade, vem o engodo, a utilização da ideologia, da propaganda ou do controlo da informação. Só como ultima ratio se utiliza a força - física ou psicológica, o uso efectivo da mesma ou a ameaça da respectiva utilização - para obter o consentimento, ou seja, para forçar à obediência independentemente do consentimento.

Podemos dizer pois que o normal da chamada conquista do poder é conquistar a palavra. Que o chefe é aquele que discursa. Aquele que, pela palavra, tenta transformar o conceito em preceito. Que tem a natural tentação de controlar o programa de debates. De dizer que deixa dar todas as respostas, mas que tende a ser o único que pode fazer as perguntas. Chefe é aquele que utiliza os recursos da fase invisível do poder. Que convence os auditores, ao fingir, nomeadamente, que actua de acordo com os respectivos interesses e que, para tanto, até cria interesses de modo artificial.

A comunicação é, assim, o cerne do combate político. Porque em política o que parece, é. Melhor dizendo, em política o que aparece, na comunicação, é aquilo que é. Torna-se pois inevitável o nível de compenetração entre a classe política, a classe mediática e a classe fabricadora dos modelos do discurso. Compenetração que tanto gera coincidências como conflitos, com as inevitáveis relações de amor-ódio.

Um povo é cada vez mais uma comunidade de significações partilhadas. Quem controla a produção de símbolos, quem controla a palavra e os signos, quem controla a comunicação, controla o poder.

No Portugal Velho, quase tudo se resumia à família, à igreja, ao quartel e à escola, sobretudo à escola primária. Um Portugal Velho que não deixou de o ser com o próprio salazarismo, onde ainda havia nobreza (o militar) e clero (do sacerdote da Igreja tradicional ao próprio mestre-escola). Mas hoje o Portugal Velho já era. A sociedade já não é o que foi nem pode voltar a ser o que era. O que vai ser só Deus sabe, como reflectia Almeida Garrett. Neste tempo de aldeia global, a escola é cada vez mais o professor do ensino preparatório e secundário, e o telepoder concentra o essencial da produção de signos. Os novos clérigos são cada vez mais os opinion makers do videopoder e os anónimos fazedores dos dicionários de opinião comum, o thesaurus donde aqueles retiram os argumentos, os lugares comuns, os conceitos, as interpretações dos factos e das palavras. O púlpito cedeu lugar à caixa televisiva. O comentador substituiu o retórico, o histriónico domina os picaretas falantes, e uma salada russa ideológica do politicamente correcto impôs-se, assim, à moral do esforço interior de libertação, como manancial das regras de conduta justa.

Os velhos armazéns da memória de um povo, como eram a família, a universidade, o adro da igreja ou do pelourinho das comunidades locais, tendem a ser substituídos pelos arquivos de fast food dos chamados opinion makers que traduzem em calão as ideias vindas de centrais de condensação neo-enciclopédicas com as suas lendas negras. O papel de controleiro e repetidor passou a caber aos canalizadores oficiosos da opinião, previamente demarcados por quem organiza o programa dos debates e que, assim, limita o âmbito das escolhas. Eles impõem-se-nos como prontos a vestir tendencialmente bipolarizados, mesmo que lhes coloquemos ao lado o elemento decorativo do pária, do marginal ou do extra-sistémico. E não deixam de obedecer a um manual básico de programação, recorrendo a um manancial metodológico em que se pode ler que temos de viver em regime de conspiração permanente para a conquista da hegemonia no seio dessa coisa primitiva e gelatinosa a que se dá o nome de sociedade civil. Que antes de conquistar o poder supremo, há que conquistar os aparelhos culturais da formação da opinião.

E eis que o processo de luta entre os grupos se transforma de luta aberta em luta oculta, no qual, na nebulosa e nas brumas, conspiram sociedades secretas, sociedades discretas, grupos de amigos e muitas outras minorias militantes e feudalizantes ao serviço de programas gnósticos, por onde circulam inúmeros idiotas úteis que executam sem saberem de programação.

Os apoios e as reivindicações, assim instrumentalizados, tendem a favorecer um crescente indiferentismo, o qual é o principal input dos actuais sistemas políticos que não sabem manter relações de troca com os outros subsistemas sociais. Tudo se joga no tabuleiro de um esotérico, onde comunistas, ex-comunistas, maçónicos, antimaçónicos, anticomunistas e anti-ex-comunistas brincam ao jogo dos iniciados, sem estabelecerem comunicação com quem é cada vez mais abstencionista, mesmo que se procure inverter a disfunção com o recurso aos populismos e às vozes tribunícias.

É por tudo isto que Portugal se dessangra em autonomia, em identidade e em consciência. Colonizado por forças exteriores e empobrecido por forças internas, tendemos para uma mediocracia. A classe política caminha para um rebaixamento de fins porque o nível dos apoios e das reivindicações tende a expressar-se, de modo dominante, por minorias militantes, essas que circulam no conúbio entre a classe política e a classe mediocrática. Surge, assim, um crescente volume de indiferença abstencionista como principal forma de entrada no sistema político, o qual tende apenas a produzir decisões para quem o provoca, correndo o risco de se desenraizar do ambiente, de entrar em disfunção, mesmo que internamente funcione de forma correcta.

Temos resultados eleitorais adequados aos meios de comunicação política disponíveis. Temos os políticos que a classe mediática merece. Temos a classe mediática que os mesmos políticos também merecem. Depois de uma crise do discurso sem sujeito (o tempo das ideologias dos anos do Maio de 68), vivemos o espectáculo do sujeito sem discurso (o tempo do artista mediático, para quem vale mais o continente do que o conteúdo). A solução é só uma: devolver o discurso ao sujeito, devolver a palavra ao discurso, devolver ao homem a palavra. Só assim podemos regressar à política como comunicação e retomar a política como coisa do homem, desse animal comunicacional que, além dos grunhidos animais reflexos da dor e da alegria, também é capaz de exprimir o útil e o inútil, mas que não se fica pela racionalidade técnica, dado que teve de construir a política para expressar o justo e o injusto da racionalidade ética, a qual, afinal, constitui o cerne daquilo que no homem tende a subir e a convergir, para cima e para dentro, para uma evolução que é cada vez mais humana e, portanto, mais centrada nas leis que estão inscritas no coração dos homens.

Com efeito, sobre a relação Estado/Sociedade, eis que a palavra crise se tornou obsidiante. E com justeza. Vivemos, na verdade, no centro da vagalhota de uma daquelas crises estruturais que, se não conduzem à ruptura do finis patriae ou de um mais apocalíptico fim da história, pode contribuir para a chamada decadência e pôr em causa os factores democráticos da formação de Portugal, isto é, da mais antiga comunidade política autodeterminada da Europa.

Daquele Portugal que já era independente quatro séculos antes de se inventarem o nome de Estado e o conceito de soberania. Que teve a primeira mudança política pós-feudal em 1385. E que aplicou as teorias da autodeterminação popular em 1640, quando quase todos se diluíam em absolutismos de potências sem pátria e de monarquias sem povo.

Uma crise que não se debela com panaceias programáticas ou ideológicas de curto prazo, nem com as utopias da revolução, mas antes através de um trabalho de militância cívica, de médio e longo prazos, em que os objectivos têm de ser marcados por um ideal histórico concreto, as metodologias têm de assumir-se como reformistas, e os valores, por sua vez, como permanecentes.

Julgamos, aliás, que o debate dos anos setenta e oitenta em torno da dialéctica colectivismo/liberalismo que muitos, subliminarmente, confundem com o dualismo Estado/Sociedade, perdeu o sentido nesta fase pós-socialista e de desconstrução daquele Estado-Providência que foi um Estado de Bem-Estar e que agora é um Estado de Mal-Estar.

De um Welfare State, aliás, muito à portuguesa que, sendo fundado pelo salazarismo como Estado Novo - com algum atraso comparativamente a Napoleão III e a Bismarck, diga-se de passagem - , nem por isso deixou de ser o respectivo herdeiro quando gerido pelo marcelismo, pelo gonçalvismo e pela pós-revolução, donde, em muitos subsistemas, ainda não saimos.

As linhas de força que apontavam para o mais sociedade, menos Estado e para a libertação da sociedade civil, mesmo quando remodeladas pelo aggiornamento do menos Estado, melhor Estado, ou de menos Estado, mais sociedade, têm agora sabor algo retroactivo, muito principalmente face ao actual processo de revolução globalista a que, entre nós, acresce a aventura de participação no projecto europeu.

Porque, perante um Estado que é, ao mesmo tempo, grande demais (no centralismo, na burocratite, no gestionarismo e no regulamentarismo) e pequeno demais (face aos desafios da internacionalização da segurança, da economia e das ameaças globais do risco maior, seja armamentismo, ambiente, doença ou fome), isto é, um Estado com muita adiposidade, pouco músculo e terrível défice de nervos, persistirmos em serôdios soberanismos de pacotilha acaciana é minguarmos, senão suicidarmos, o essencial daquela realizável vontade de sermos independentes que nos fundou, manteve e restaurou em anteriores crises de viabilidade.

O Estado e a Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente organizada, de uma comunidade política que tem de se manter viável face ao exterior e fiável face ao interior. O Estado e a Sociedade correm o risco de se perderem nas teias dissolventes de uma mundialização que tanto tem novas formas de público, os grandes espaços, como novas formas de privado, a Internacional das sociedades civis.

O Estado e a Sociedade não são coisas, são antes processos que se exigem mutuamente; não podem entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário que, enfraquecendo-os, inviabiliza a comunidade política que devem servir.

A questão fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder, mas na assunção da plenitude da democracia. Em democracia, o Estado não é um c'est moi do soberano exterior à sociedade. Em democracia, o Estado é um c'est nous, um c'est tout le monde. Em democracia, o Estado somos nós, os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na decisão e de escolher os seus representantes.

Nós, cada um de nós, os homens comuns, somos as únicas realidades substanciais da política. Os grupos, as instituições e a própria instituição das instituições que abstractizámos como Estado, não passam de meras realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens que as vivificam.

O fundamental está no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de duas fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização em que 1+1 seja mais do que o resultado aritmético. Em que a união comunitária da política faça a força do pluribus unum, gerando uma mais-valia de sonho, de imaginação, de energia.

Em suma, precisamos de política-Política, pela reinvenção dos laços comunitários de uma pilotagem do futuro, capaz de refazer o software das pilotagens automáticas que os tecnocratas e pequenos e médios intelectuais costumam importar através da tradução em calão de muitas fotocópias pirateadas a partir de manuais de programação estranhos à nossa índole, à nossa maneira de estar no mundo, à nossa realidade vivencial.

Para tanto, importa distinguir o Estado-Aparelho de poder, o principado, do Estado-Comunidade, a res publica, a fim de se declarar que não pode haver democracia se aquele não resultar deste. O Estado-Aparelho de poder em democracia tem de ser o representante do Estado-Comunidade, pois o soberano não pode ser algo que paire sobre uma unidimensionalidade de súbditos. Em democracia, a soberania resulta da cidadania, o Estado-Aparelho de poder tem de potenciar-se no Estado-Comunidade.

Logo, tanto tem de haver integração da sociedade no Estado como uma resposta (output) do Estado às exigências e aos apoios (input) da sociedade. Porque se o principado não for mero instrumento da res publica, a comunidade tem de revoltar-se contra o poder estabelecido e expulsar o usurpador, se possível, através dos meios legais disponíveis.

Sucede que a democracia constitui apenas um ideal, um sentido regulativo, da mesma natureza que a exigência do Estado de Direito democrático, aquele que proclama que o fundamento e os limites do poder passam pelo direito e por aquela forma que é irmã gémea da liberdade e inimiga do arbítrio. Já não é lei aquilo que o príncipe diz e o príncipe está submetido à própria lei que edita.

Na prática, porém, a teoria é outra, porque qualquer democracia, marcada que está pela plenitude da procura da perfeição, tem de ser instrumento dos homens imperfeitos que somos, e das inevitáveis instituições imperfeitas que constituímos.

Qualquer democracia assume-se, no plano das realidades, como uma poliarquia, como um sistema de competição pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e para a cidade dos deuses e dos super-homens. Poliarquia para o país das realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do caminho pisado que, afinal, nós nos fazemos.

Tentando, agora, pensar em português para o Portugal de hoje, diremos que pode estar em causa a viabilidade do modelo português de Estado. Com efeito, o Estado que os portugueses instituíram e refundaram sofre de alguns desafios existenciais que constituem o cerne da presente crise.

Começa por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o Estado-Segurança, dado que se põe em causa o monopólio da força física legítima, tanto no plano da segurança interna como no plano da própria segurança externa. A força legítima ameaça desintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança privada, nomeadamente através do apelo que muitos fazem a agências privadas de segurança que, assim, negam a essência do aqui d'el rei, tal como aparecia na célebre Lei Mental de D. Duarte que lançou as bases do predomínio do direito sobre o arbítrio do Machtstaat, mesmo que vestido das peles de cordeiro de uma higiénica companhia de seguros funcionando a cunhas.

Segue-se a crise do Estado-Administração da Justiça ou do Estado Justiceiro, a crise da confiança dos povos nos seus juízes e nos seus procuradores, com a ameaça concomitante de esporádicas emanações da Lei de Lynch e, por vezes, pelo desvario de certos mini-pogroms contra os pigmentarmente diferentes com que se deleita o falso nacionalismo zoológico de importação. O que leva alguns, marcados pelas sombras de tal horizonte de medo, a propor que eliminemos a plurissecularidade consequente do nosso humanitarismo penal, quando o caminho é apenas darmos meios fácticos ao humanitarismo e não invertermos os valores de que nos orgulhamos. Mas também não nos devemos esquecer dos muitos erros que cometemos com o legalismo, a chicana processual e a falta de sentido de missão de alguns servidores da Justiça, tentados pelo sentido de casta dos corpos especiais e pelo vedetismo de certa espectacularidade. Ai de nós se enveredarmos pelo appeal mediático de uma qualquer telejustiça! Ai de nós se o terceiro poder se conubiar com o chamado quarto poder! Porque então só daí sairemos com juízes eleitos ou com juízes sorteados...

Vem, depois, a crise do Estado-Imposto. Parece que nos esquecemos que a história da democracia é a história do imposto, dessa longa resistência dos povos no sentido da necessidade do consentimento para a tributação, coisa que constituiu sempre o cerne das Magna Charta e que praticamos desde que instituimos o Parlamento em 1253. O que está em causa é simplesmente a evasão fiscal, um problema mais moral do que fiscalista, dado que, neste momento, continua a pagar o justo pelo pecador, o que menos tem em benefício da petulância do prevaricador, porque, não havendo moralidade, deixa de haver consciência comunitária de punição e sentido contratual de contribuinte. Quando é impossível o aumento da nossa carga fiscal e não parece curial deixarmos de honrar os compromissos assumidos com os crescentes milhões de pensionistas.

Finalmente, é a crise do Estado-Burocracia, esse instrumento vital do Estado racional-normativo, dado que, de tanta reforma administrativa e de tanta modernização administrativa, se perdeu o próprio sentido dos gestos e se desprestigiou o funcionário, aquele que é um servus ministerialis, o escravo de uma função marcada pelo direito à carreira e paga pelo vencimento, contra o clientelismo e o emolumento. Uma crise que determinados erros de falta de pensamento agravaram, dado que falta uma Escola de Quadros e uma coordenação de policies que nos liberte de certo orçamentalismo casuístico, para não falarmos de alguma tentação dos anos oitenta pela privatização dos métodos de gestão pública, na mesma altura em que as grandes holdings privadas copiam modelos da estratégia dos governments.

Todas estas crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, no qual o poder político, tanto o do poder governante como o do poder representativo, deve preponderar sobre os grupos e sobre as facções. De novo, o poder político não é uma coisa, é uma relação, um processo de condução da network structure, de comando da rede de micropoderes, um sistema de sistemas e subsistemas, em que até aquilo que habitualmente se designa como classe política não passa hoje de um mero subsistema de um processo global.

É evidente que a governação, isto é, a pilotagem do futuro, numa sociedade aberta e pluralista não passa de um modo dinâmico de gestão de crises, dado que o governo pelo consentimento impõe a emergência de forças vivas, em que a articulação de interesses e a emergência de pressões constitui o normal anormal da competição.

Mas reconhecer o pluralismo não pode significar cedência ao neocorporatism. Do mesmo modo, aceitar as facções, os partidos e a competição para a conquista eleitoral do poder não implica necessariamente a partidocracia.

As democracias e as sociedades abertas estão cercadas pela corrupção em sentido amplo, isto é, pelos inúmeros processos de compra do poder. Tal como as burocracias estão minadas pelo clientelismo, pelo nepotismo, pela pantouflage e pelo negocismo.

Por isso é que as democracias têm de defender-se, em primeiro lugar, contra as degenerescências típicas dos próprios fenómenos democráticos, garantindo-se a democracia com ainda mais democracia, isto é, sem cedências ao despotismo dos césares, das multidões e dos próprios césares de multidões, em que a demagogia, aliada a poderes pessoais tende inevitavelmente para a usurpação e a tirania doces, ou, o que é o mesmo, para a negação do governo pelo consentimento.

Do mesmo modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta senão com mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da internacionalização da economia e do reconhecimento da actual internacionalização da própria sociedade civil. Qualquer regresso ao Estado gestor, ao Estado confiscador ou ao Estado planeador seria desgastarmos o político em funções para as quais não está vocacionado; seria persistirmos no latrocínio.

O que não deve significar cedência à teologia do mercado de certos missionários ultraliberais, mas antes o humilde reconhecimento de que os problemas económicos só se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque o mercado não é o Estado, porque a oikos não é a polis.

O nível da política é o que está acima do doméstico, o decisor acima das partes, no qual não há um dono mas um todo de cidadãos que não são os escravos, os dependentes, os clientes ou os súbditos; são antes aqueles que dão o consentimento na decisão, participando na mesma, ainda que federativamente, ou escolhendo os representantes que a proferem em nosso nome para zelar pelos nossos interesses.

Mais política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade. Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais pensamento de Estado, de mais política internacional, de mais segurança, de mais justiça, de que todos paguem o imposto, de mais imparcialidade da administração, para que haja mais mercado, mais produção, mais solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a intimidade da família e da pessoa; em suma, para a realização do direito dos direitos, que é o direito à felicidade.

Só que mais Estado nunca poderá ser o menos Estado de um Estado empresário, de um Estado interventor nos preços e na gestão, de um Estado quase merceeiro, policiesco, vigilante ou caceteiro.

Apesar de tudo, a democracia e o Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos regimes políticos... mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, na qual preponderam sempre os sargentos e os censores, mesmo que com a proverbial brandura de costumes. Bem menos péssimos do que aqueles regimes que, em nome da ideologia, decretam a verdade, esquecendo que o bem tem sempre um bocado de mal e o mal, um pedaço de bem.

Sempre é melhor dialogar com o adversário, pôr o poder a travar o poder e evitar que ele se torne ab-solto, absoluto, porque se o poder enlouquece ou corrompe, o poder em soltura corrompe absolutamente ou enlouquece absolutamente, mesmo que se manifeste apenas pela arrogância.

Acontece somente que a principal das forças vivas da actualidade é o povo português, isto é, a mistura de povo com uma certa ideia de Portugal, em que o valor Portugal, a primeira palavra da nossa Constituição, dá sentido ao povo, mas no qual o adjectivo português só existe em função do substantivo homem concreto; em que a essência só se realiza através da existência que, afinal, constitui a única realidade substancial

É em nome da fidelidade a Portugal e à solidariedade entre todos os portugueses que devemos assumir a resistência do nosso libertacionismo, compatibilizando-o com o grande jogo do europeísmo e do globalismo.

É um novo modelo de Estado e de Sociedade que temos de reinventar, restabelecendo a Segurança do direito contra a força, impulsionando a Justiça contra o arbítrio, dando força à Justiça e impondo justiça à Força. Um novo modelo que restaure a legitimidade do Imposto, para que a justiça distributiva e a justiça social não percam o sentido unitário e compensem as falhas da justiça comutativa. Um modelo no qual seja possível realizar o de cada um segundo as suas possibilidades, para que possa praticar-se o a cada um segundo as suas necessidades, através do alterum non laedere, do suum cuique tribuere e do honeste vivere, os fundamentos perenes da nossa civilização que permitiram a separação de poderes, a instituição da representação e a universalização dos direitos do homem.

Um novo modelo que faça renascer a confiança do cidadão na sua Administração, que deve ser colocada ao serviço do todo, sem fenómenos de compra do poder, e em que o mais competente da legitimidade racional vença os atavismos do fidelismo patrimonialista ou do lealismo carismático. Um modelo no qual o saber possa, pela igualdade de oportunidades, constituir a principal forma de acesso ao poder, contornando-se os desvios do mandarinato. Um Estado de liberdades, de grupos e de partidos, em que se vença a demagogia do star system, o neopatrimonialismo corporativo e os tentáculos da partidocracia.

Só uma grande estratégia pode garantir a continuidade de um Estado feito à imagem e semelhança dos portugueses que somos. Um Estado sem vãs glórias de mandar que assuma o realismo de apenas ter o tamanho da Sociedade que somos, daquilo que economicamente produzimos ou da ciência que intelectualmente geramos ou aplicamos. Um Estado que retome as boas máximas do viver com aquilo que temos, para nós não passarmos pela vergonha do pedinchão, e para que recuperemos a fibra do antes quebrar que torcer. Um Estado coeso situado na classe média-baixa da Sociedade das Nações, mesmo quando os novos predadores da geofinança ameaçam tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, proletarizando as classes médias dos Estados e das sociedades em nome de uma globalista sociedade de casino que denega a solidariedade e a justiça. Um Estado que não transforme as potencialidades em vulnerabilidades mas, antes pelo contrário, assuma o respectivo poder funcional e volva as vulnerabilidades em potencialidades, principalmente no ritmo da balança da Europa.

É sobretudo no palco da política internacional que se jogará a viabilidade portuguesa. Do Estado e da Sociedade dos portugueses. Só com a Sociedade no Estado e o Estado com a Sociedade poderemos enfrentar o desafio da Europa e da globalização. Só uma estratégia que estabeleça a network da grande política conseguirá levar-nos a submeter-nos para sobreviver, mas sempre com o norte de lutarmos para continuar a viver.

Por outras palavras, só gerindo dependências, potenciando inderdependências e assumindo o patriotismo de querermos continuar independentes valerão a pena os vínculos libertadores de cumprir Portugal. Esperanças de Portugal, futuro do mundo. Que faltas ou fracas ideias não tornem fraca a forte gente...

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[1] Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, p. 36.

[2] Idem, p. 33.

[3] Idem, p. 23.

[4] Idem, p. 23.

[5] Gabriel A. Almond, A Discipline Divided, pp. 13 segs..

[6] Alguns exemplos são significativos. Na Universidade Católica Portuguesa, sob o manto da metodologia, insinuaram-se de forma evidente escolas pouco enraízadas no humanismo cristão, desde o positivismo jurídico ao neoliberalismo económico, para não falarmos da mais recente importação do pensamento de Karl Popper nos domínios da ciência política. Na estação televisiva de inspiração cristã, o presidente do conselho de administração chegou a ser um destacado militante do humanismo laico. No partido herdeiro das tradições anticlericais do Partido Republicano Português, o seu actual secretário-geral é um dos mais destacados militantes católicos…

[7] O autor deste relatório, quando aluno de direito em Coimbra, entre 1969 e 1974, nas aulas dos então assistentes Avelãs Nunes e Aníbal de Almeida, teve o privilégio de ser obrigado a aceder às linhas analíticas do marxismo ortodoxo, conforme os modelos neo-realistas da escola que gravitava em torno da revista Vértice e da cooperativa Unitas.

[8] Raúl Brandão, As Farpas, 4º tomo, pp. 114-115.

[9] Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais [1868], Porto, Porto Editora, 1951, p. 461.

[10] Camilo Castelo Branco, «Memórias do Cárcere» [1852], in Memórias, p. 105.