Venho de longe e de tão perto, daquele Portugal cujo nome oficial foi, durante séculos, o de Portugal e dos Algarves, mas que, ainda hoje, continua a ter o carácter pluricultural e universalista da distância de tais Algarves na esfera armilar que circulariza o nosso escudo nacional. Daquele Sudoeste da Europa, com os seus arquipélagos atlânticos, que, mais do que uma nórdica finisterra, continua a ser porto de partida, cais de todas as necessárias viagens para a redescoberta de novos mundos. Mas, aqui e agora, neste nosso tempo, tão tecnologicamente dito como de aldeia global e, por vezes, escatologicamente qualificado como fim da história, ainda continua por cumprir a exigência de todos nos tratarmos como filhos de Andram (Gil Vicente). Porque, como proclamava Almada Negreiros, se as frases que hão salvar a humanidade já estão todas escritas, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo a humanidade.
Não há dúvida que, dessa finisterra, nasceu Sagres, pelo Atlântico, a caminho do Sul. Que, outrora, partimos, ousando regressar ao ventre mátria, de nossa mãe distância, na senda daquele abraço armilar, daquele universalista quanto mais além, mais além ainda (Paul Claudel) que talvez constitua a principal significação partilhada das comunidades da lusofonia, esse núcleo central da nossa memória e dos nossos valores, donde nos vem a identidade e a autonomia.
Começámos por ser Porta de Chegada daquele mundo antigo, que se reduzia ao mapa de Ptolomeu e que podemos qualificar como a Idade Mediterrânica da História. Então, nos confins do Ocidente europeu, onde a terra acaba e o mar começa, fomos recebendo, em sucessivas vagas, a visita de fenícios, gregos, romanos, germânicos, judeus, berberes e árabes. Gentes de todas as sete partidas que, de Leste para Oeste, procurando um lugar onde, nos foram ensinando a aprender o aprender, da religião, da filosofia, do direito, da álgebra, da tecnologia.
E nacionalizando essas tendências importadas pela arte da simbiótica, eis que adquirimos técnica para nos podermos lançar numa nova partida, para esse além de nós a que podemos chamar mundialização.
Desde o século XV que, descobrindo as descobertas, nos fomos descobrindo e, com judeus e árabes, africanos, indianos, malaios, chineses ou índios americanos, também diluídos dentro de nós mesmos, conseguimos esquecer o círculo vicioso das guerras santas contra guerras santas entre gentes do mesmo Livro, ousando fazer guerra contra as ondas do tenebroso, os misteriosos cabos bojadores e os fantasmas dos adamastores.
E assim navegando em estradas flutuantes superámos as Tormentas e unimos, pela boa esperança, o Atlântico e o Índico, transformando todo esse espaço no novo Mediterrâneo da história. Chegava a hora de uma terra maior, do tal planisfério, onde se circulava, não apenas de Leste para Oeste, mas também de Norte para Sul, com novas estrelas do norte, a que chamámos cruzeiro do sul.
Faltava, no entanto, cumprir a viagem: ir além dos cabos, da Índia, da Taprobana, esse circum-navegar que é partir para regressar ao sítio da partida. Descobrir que a terra inteira podia ser unidimensional, que a humanidade não cabia nem no ptolomeu da fantasia nem na abstracção de um planisfério; faltava descobrir que, em vez de chegar a uma índia cartografável, importava navegar, como proclamava Fernando Pessoa, para uma índia que não vem nos mapas e chegar lá em naus feitas daquilo de que são feitos os sonhos. Faltava cumprir o abraço armilar, isto é, assumir o globalismo de uma terra-esfera onde não são possíveis periferias, tenebrosos, ou aquelas ilusórias perspectivas etnocêntricas de um mundo quadrilátero, com quatro cantos onde só nos sítios onde reinamos temos a ilusão de estar debaixo do Céu.
Faltava descobrir que tanto o Leste como o Oeste, tal como o Norte e o Sul, são, dia a dia, subvertidos pela revolução dos corpos celestes, em torno de um eixo e à volta do sol. É esse novíssimo mundo que agora, e sempre, pode ser, se os homens forem homens.
Mas o tal diálogo de culturas só é possível se nos expatriarmos nas nossas próprias origens (Heidegger), isto é, se reconhecermos a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações (Toynbee). Para tanto, talvez importe refazer alguns dos pretensos mandamentos das leis dos homens que todos vamos balbuciando de forma hipocritamente unanimista.
Falta uma cidade à imagem e semelhança do homem, uma cidade que não seja grande demais nem pequena demais, mas suficiente na sua unidade. Uma civitas humana onde possam conciliar-se tanto a exigência de independência de cada grupo nacional como a liberdade e a participação de cada cidadão, o que só é possível quando houver uma comunhão pelas coisas que se amam.
Falta também uma nova noção de saber que vá além do pretenso cientismo dos tempos modernos, essa ilusão da morte de Deus (ou do deicídio) que gerou o terrorismo de uma certa razão paroquial - a mesma que determinou que só existe aquilo que pode medir-se ou experimentar-se intencionalmente.
Falta, sobretudo, respeitar uma antiquíssima (mas não antiquada) concepção de homem: aquela que entende cada homem concreto como um homem completo; onde cada homem seja um ser que nunca se repete, vivendo uma história onde cada acontecimento é também um acontecimento que nunca se repete. E porque cada homem é um fim em si mesmo, só podemos salvar a humanidade se nos salvarmos, cada um de nós, fazendo aos outros aquilo que queremos que nos façam a nós. Isto é, só salvando os imperfeitos homens que temos, e somos, poderemos salvar a humanidade.
Aqui e agora, como um dos herdeiros da liberdade europeia, apenas quero proclamar que a história está sempre a recomeçar. Que só há fins da história para os pretensos vencedores. Porque, como dizia um herético português, não será que vencer é ser vencido? Porque só fazendo o passado presente, podemos ter saudades de futuro.
O pequeno-grande povo português que, nos fins da Idade Média, se lançou, com pragmatismo, na aventura dos descobrimentos, da expansão e do diálogo de culturas, não só deu novos mundos ao mundo, desenhando o mapa da terra como planeta unidimensional, como também semeou o diálogo universal do abraço armilar, essa circum-navegação pelo ius communicationis que redescobriu o homem como animal de trocas, tanto de bens económicos como de bens espirituais.
Uma das consequências do processo foi a emergência do mundo que o português ajudou a criar, esse espaço plural e policêntrico de povos, culturas, Estados, Igrejas e comunidades cujo nome talvez seja mais que o da formal CPLP.
Ora, um dos vectores desse tal mundo foi, sem dúvida, a tentativa de criação de sucessivos espaços políticos sujeitos ao domínio do aparelho de poder português. Aquilo que podemos qualificar como a procura de vários impérios, ou, como na modernidade vai dizer-se, de várias áreas de soberania, acrescentadas ao inicial reino dos séculos XII, XIII e XIV.
Portugal e o Algarve, o compósito núcleo inicial do reino, é aumentado, logo no século XV, pelos senhorios conquistados no Algarve de além-mar, em África e na Guiné, até que, com D. Manuel I, passam a visualizar-se os acrescentos de forma já sistemática, falando-se em senhorios de conquista, de navegação e de comércio.
É este o pluralismo do império primeiro, onde há um reino no d’aquém e um senhorio no d’além, tanto à maneira dos antigos Imperadores - pela conquista -, como pelos novos métodos da navegação e do comércio - onde as coisas novas são algo de fluído, sem a rigidez territorialista da quadrícula fronteirizada. Como o próprio Francisco de Vitória então reconhecia, a novidade portuguesa estava no comércio com as gentes exóticas as quais não subjugaram e com grande vantagem, ao contrário do modelo madrileno de Carlos V que persistia na serôdia ideia de monarquia universal e de imperium mundi, enquanto o nosso modelo assumia a modéstia de se constituir como simples intermediário da respublica universalis.
Na prática, podemos assinalar vários impulsos nesse movimento expansivo de acrescentamento. O primeiro, inaugurado pela (re)conquista de Ceuta em 1415, gerou o império marroquino, que teve o seu ponto de regresso com Alcácer-Quibir em 1578.
O segundo impulso, a partir da viagem de Vasco da Gama, em 1498, levou ao império português do Oriente, muito especialmente o mundo indoportuguês, cujo ciclo, depois da queda de Goa, em 18 de Dezembro de 1961, e da invasão de Timor pela Indonésia, em Dezembro de 1975, vai terminar com a devolução de Macau à China em 20 de Dezembro de 1999.
O terceiro impulso, desencadeado a partir da descoberta oficial do Brasil, em 1500, terminou com a revolta do Ipiranga, curiosamente liderada pelo próprio herdeiro do trono de Portugal, contra a secura do geometrismo jacobino e mercantil que comandava o revolucionarismo político-militar instalado em Lisboa. E aqui, o modelo, começando pelo estabelecimento do senhorio, através de uma pluralidade de capitanias, consistiu fundamentalmente num processo multiplicador orgânico que instaurou nesse novo mundo, um novo reino, à imagem e semelhança do ponto de partida. Um processo que atingiu o clímax depois da capital da monarquia ter sido transferida para o Rio de Janeiro e da criação do Reino Unido de Portugal e do Brasil.
O impulso mais tardio foi o desencadeado a partir das feitorias africanas, quando largámos a costa e a mera exploração das companhias majestáticas e nos lançámos nas campanhas de ocupação e no povoamento, sobretudo a partir do último quartel do século XIX, depois da Conferência de Berlim.
O quinto e derradeiro impulso de partida, mas já não de acrescentamento, proveio da emigração dos séculos XIX e XX, principalmente a que, a caminho da Europa central, foi protagonizada, nas décadas de cinquenta e sessenta deste século, pela geração da mala de cartão.
De todas estas viagens levadas a cabo por uma entidade já qualificada como nação peregrina, ficaram misturas, memórias, diásporas e, sobretudo, novas sínteses e novas emergências: novos povos, novas unidades políticas e novas culturas miscigenadas, gerando-se um arquipélago de cruzamentos, onde a memória de uma história comum e da prática de um modo de estar no mundo fez nascer uma civitas amoris.
Uma comunhão promovida tantos pelos parcos agentes oficiais e oficiosos do aparelho de poder central como também, e principalmente, pelo chamado império sombra, por essa massa de gentes da comunidade à solta, em acção livre de directivas hierárquicas, dos navegantes aos comerciantes, dos missionários aos simples aventureiros, todos eles sempre à procura de um lugar onde, que a mãe-pátria não podia, não queria ou não sabia propiciar, gerando, em cada um dos que partiam, o paradoxo de uma revolta plena de saudade.
Desse complexo, gerou-se um arquipélago de comunidades. Não apenas portuguesas, não apenas lusíadas e lusófonas, mas também de lusodescendentes, pelo sangue, pela língua, pela cultura ou então pela memória de um encontro ou de um sonho de futuro, através da procura de uma construção conjunta.
Um comunidade feita em torno das coisas que se amam, um patamar a caminho do mais belo de todos os ideais políticos: a construção de uma república universal, de uma paz pelo direito, marcadas pela afectividade das emoções, entre as quais se destaca o lastro de um difuso humor merancórico.
Depois do fim do ciclo do nosso mais recente império terrestre, aquele que teve como principal teatro o povoamento e as campanhas africanas do quase século que vai da Conferência de Berlim aos acontecimentos de 1974, eis que se tornou obsidiante frase de Pessoa, segundo a qual minha pátria é a língua portuguesa. Uma invocação que tem servido de mote para as mais variadas glosas sobre a necessidade de consolidação de uma comunidade lusofalante, cujas parcelas alguns comparam aos heterónimos do mesmo super-Camões do nosso século.
E aqui importa sublinhar que, ao contrário do que aconteceu com o Estado espanhol que, nos finais do século XIX, foi obrigado, por pressão dos interesses norte-americanos, a abandonar Cuba e as Filipinas, apenas tentando, um pouco à maneira dos objectivos do nosso D. Sebastião, uma forte permanência colonial em Marrocos, os portugueses só fizeram uma aposta africana nestes últimos cem anos, quando se desencadeou um movimento de reconstrução imperial, fortemente influenciado pelos ciclos imperiais daquelas potências coloniais do Ocidente europeu que tentavam humanizar a violência do mercantilismo e a hipocrisia do free trade em nome de um missionário white man’s burden.
Aliás, talvez tenhamos construído o essencial da presença portuguesa nesse continente durante as décadas de sessenta e setenta deste século, face ao desafio da chamada guerra colonial ou das campanhas de África, esse simples capítulo da guerra da África Austral, inserido no mais vasto livro da guerra fria. O que bem se demonstra pela circunstância de tal episódio bélico atípico não ter acabado com o nosso abandono de 1974-1975, tendo-se, inclusive, agravado em Angola e em Moçambique, já sem a participação portuguesa.
À maneira de Santo Agostinho, podemos dizer que em 1974-1975 não foi o mundo português que acabou, mas sim um novo mundo português que começou, dado que talvez continuem fecundantes as esperanças de Portugal. Porque, como dizia Arnold Toynbee, numa civilização em crescimento, a um desafio opõe-se uma réplica vitoriosa que vai imediatamente gerar um outro desafio diferente a encontro do qual se ergue uma outra réplica vitoriosa.
O que estamos a viver nesta viragem de milénio, para utilizarmos palavras do nosso saudoso mestre, Agostinho da Silva, antigo professor da minha Escola, pode ser Portugal a morrer como metrópole e a renascer como comunidade livre, já que dominar os outros é a pior forma de prisão que ter se pode. Porque, Portugal, ao contrário do que tantos dizem, não diminuiu, antes se multiplicou, dado que libertando os que mantinha sob o seu domínio, reconhecendo-lhes independência para a vida, renasce em Pátrias. Porque o que Portugal foi tem servido para que Portugal não seja, pois a ilusão portuguesa de império terrestre acabou por ser subvertida pela sorte do capitalismo industrial. Porque Portugal, impelido ainda pelo seu afã de mar e sentindo no mar a verdadeira garantia de independência chega, porém, a África, parasitado pela economia europeia e, já, euro-americana.
Isto é, a descolonização, ou o abandono, de 1974-1975, pode não ter sido o fim de Portugal se vier a ser entendida apenas como o fim de certo princípio, isto é, se os portugueses tiverem engenho e arte para uma reinterpretação d'Os Lusíadas através da Mensagem, estruturando-se o Portugal, poder ser por meio dessa superação do império que é a procura do mar sem fim e dessa nova fé que é a conquista da distância de uma super-nação a caminho da república universal.
O Portugal persistente ficou simples Europa do Sudoeste, só podendo ser verdadeiramente europeus se assumir uma certa maneira portuguesa de entender a Europa. Dessa Europa que desbravou o mar oceano, para Ocidente e para Sul. Que descobriu a América e o Brasil, que transformou as tormentas em boa esperança e que peregrinou o caminho marítimo para a Índia, a China e o Japão. A Europa que circum-navegou a terra inteira num abraço armilar, como gostava de sublinhar outro dos nossos permanentes mestres, Almerindo Lessa.
Por mim, quero reconhecer que valeu a pena esse investimento lusotropical de cinco séculos e que a própria Europa necessita desta visão portuguesa do universo. Porque, como dizia Fernando Pessoa, foi por Portugal, pelos Descobrimentos que se deu a conversão da civilização europeia em civilização mundial.
Voltando a Agostinho da Silva, talvez importe proclamar que falta uma realidade mais alta, aquela que nos permite efectivamente fazer do mar, o mar sem fim, aquela que se comporia do que melhor tiveram Ocidente e Oriente, uniria Cristo e Lao-Tseu e nos daria, num eterno sendo e vir a ser, aquele Espírito Santo que á a fusão perfeita do Todo e do seu Nada.
Porque, utilizando agora palavras de Fernando Pessoa, só pode conseguir tal intento a nação que for pequena, e em que, portanto, nenhuma tentativa de absorção territorial pode nascer, com o crescimento do ideal nacional, vindo por fim a desvirtuar e desviar do seu destino espiritual o original imperialismo psíquico, o imperialismo dos poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece.
Pertenço àquele grupo de portugueses que continua a considerar como missão a nossa ancestral tendência para nacionalizarmos tendências estrangeiras com a consequente vocação para a simbiose e o hibridismo.
Porque somos mais propensos para a heresia para o dogma, para a heterodoxia do que para a ortodoxia, para a poesia do que para a filosofia. Mais crentes do que especulativos, mais homens de aventura do que calculistas, mais pragmáticos do que empiristas
Jorge Dias dizia que o português é um misto de sonhador e homem de acção, ou melhor, é um sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e realista ... Mais idealista, emotivo e imaginativo do que homem de acção ... individualista ... possui grande fundo de solidariedade humana e, sobretudo, a saudade, essa mistura de opostos, esse humor nosso merancórico.
Fernando Namora, mais recentemente vem falar na dualidade ou na dialéctica do nosso modo de ser consistindo nessa capacidade de sonho e por assim dizer de desmesura e ao mesmo tempo de reduzir o sonho a coisas bem terrenas como o comércio, o oiro, a conquista lucrativa, essa estranha e inextricável coabitação da generosidade e da cobiça, do desprendimento e do sabor da coisa possuída, da impetuosidade arrojada com o súbito desencanto, da crença que não mede obstáculos com a ressaca derrotista, esse ter asas e, por fim, se bastar com o mísero chão.
Também Agustina Bessa Luís fala no português como poeta, soldado , aventureiro; intelectual e mundano; vítima e herói; experiente e desprecavido. Boa alma e cidadão discutível. Sentimental e capaz de frio juízo sobre todas as coisas. A sua liberdade é interior e não feita à imagem das circunstâncias.
Como salienta a mesma ficcionista: nós temos uma cultura afectiva...Somos um povo que sempre quis viver aproximado do estado de natureza, e sempre quis evitar o estado de guerra. Aquele estado de natureza que permite aos homens viverem em comum conforme a razão, sem consentir um superior a quem se outorgue competência além da que as leis conferem.
Eis-nos, um quarto de século volvido sobre a descolonização africana, de novo, no começo, por sobre as ruínas daquilo que muitos vaticinaram ser um Portugal dos tempos do fim. Aliás, muitos portugueses parecem esquecidos daquilo que Gilberto Freyre disse: que o português se tem perpetuado, dissolvendo-se sempre noutro povo a ponto de parecer ir perder-se nos angues e culturas estranhas. Mas comunica-lhes sempre tantos dos seus motivos essenciais de vida ... Ganhou a vida perdendo-a.
A citada frase de Fernando Pessoa, da minha pátria ser a língua portuguesa, implica algumas anotações, como o próprio poeta logo acrescentou, ao salientar que a base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e acção é a essência da vida. O idioma, por isso mesmo que é uma tradição verdadeiramente viva, concentra em si, instintiva e naturalmente, um conjunto de tradiçöes, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver, acrescentando que estamos neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diferentes, em que somos iniciados à nascença; e cada uma tem, no idioma que é o seu, a sua própria palavra de passe.
Aliás, a frase serviu de mote para aquilo que o português e cidadãos brasileiro Agostinho da Silva chegou a proclamar: agora Portugal é todo o território de lingua portuguesa. Os brasileiros lhe poderão chamar Brasil e os moçambicanos lhe poderão chamar Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo que Fernando Pessoa julgou ser a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora é essa a Pátria de todos nós.
Diga-se, a este respeito, que se uma nação na Idade Média, era antes de mais, uma língua, eis que nestes últimos anos do século XX, tal asserção pode voltar a ser mobilizadora da Comunidade Lusíada, onde, ao lado do ius soli e do ius sanguinis, tradicionais elementos determinadores de uma nacionalidade, se pode sobrepor um ius linguae, o ser-se natural da língua, como já referia Fernão de Oliveira na sua Gramática.
Mas também não nos esqueçamos do avisado conselho do mesmo Fernão de Oliveira: os homens fazem a língua e não a língua os homens. É que qualquer linguagem, especialmente a linguagem poética, ao criar imaginariamente uma nova realidade, gera um significante comunitário de afectos, susceptível de tradução política, se para tanto houver engenho e arte.
O pretexto para tão grandioso sonho radica na circunstância de, no dobrar do milénio, deverem existir cerca de duzentos milhões de seres humanos que terão a língua portuguesa como língua oficial.
Dizemos sonho e não utopia ou acronia. Com efeito, não é utopia porque há lugar e gente para o concretizar; não é ucronia porque a semente já existe. Poderemos qualificar tal projecto como um ideal histórico concreto, conforme a definição de Jacques Maritain, como uma imagem prospectiva, significando o tipo específico de civilização para o qual tende certa idade histórica; não é como as utopias, um ser de razão, mas uma essência de ideal relaizável (mais ou menos dificilmente... não como obra feita mas como obra a fazer-se), uma essência capaz de existência e chamando à existência para um dado clima histórico, respondendo seguidamente a um máximo relativo (relativo a esse clima histórico) de perfeição social e política e apresentando somente, - precisamente porque implica uma ordem efectiva para a existência concreta, - as linhas de força e os esboços ulteriormente determináveis de uma realidade futura.
Um espaço de lusofonia abrangendo Portugal e as comunidades portuguesas emigradas, com direito a voto no Estado da República Portuguesa, o Brasil, os PALOP, os territórios do antigo Estado da Índia, Timor Loro Sae e todo esse arquipélago de pequenas minorias portuguesas, descendentes de portugueses ou filiadas na cultura portuguesa, que falam ou, pelo papiamento, ainda têm a memória, e saudades de futuro, do palavrar em português.
Resta saber se, entre todos esses lusofalantes, há a hipótese de construir, reconstruir ou consolidar uma comunidade de significações partilhadas ou um contexto de afinidades, onde muitas identidades podem confluir: não apenas as da eurolusitanidade, da afrolusitanidade e da brasileiridade, mas também a de outros lusopartilhantes, como os indoportugueses, os sinoportugueses, os timorenses, os lusodescendentes do Hawai, bem como os que também lusiadamente se revêem nas terras frias da Europa central ou nas brumas atlânticas
Com efeito, a possibilidade da Comunidade Lusíada, ou de uma Confederação dos Povos de Língua Portuguesa, abarca um espaço mais amplo que o do lusotropicalismo ou que o do saudosismo lusitano. E não deixa de poder ser uma comunidade de significações partilhadas mesmo quando as regras dos prontuários linguísticos não são canonicamente observadas na língua maternal ou na língua escolar
Ela tem sobretudo uma dimensão metapolítica, à semelhança do mar sem fim de que falava Fernando Pessoa, constituindo mais uma entidade espiritual que uma organização política, revestindo a forma de um povo não realizado, a florescer, sem aquele peso da terra e do poder estadual, mas com o sem fim do poder dos sem poder que, no fundo, é a suprema forma de poder, porque a mais metafísica
A necessária descoberta do caminho político para o Planeta
Dois mil anos depois daquilo que convencionámos ser o nascimento de Jesus Cristo, um dos pontos de partida da era euro-mediterrânica, e quinhentos anos depois da viagem de Cabral e Caminha, um dos principais impulsos da era euro-atlântica, importa proclamar que ainda não vamos entrar no novo milénio, porque nos falta descobrir o caminho político para o Planeta. Já entendemos que a Terra é só uma, em termos de ambiente, mas ainda não percebemos que há também um só mundo em termos geo-históricos e geo-humanos, um só mundo que deve ser perspectivado como a terra dos homens, como corpo político, dotado de organização política e da ideia que serve a política: a racionalidade do justo.
O número dos homens e das riquezas
Ainda não reparámos que em cada 100 homens há pouco mais de 10 europeus, quase 6 norte-americanos, também quase 6 da ex-URSS e menos que 9 sul-americanos, contra 22 chineses e 20 membros índicos, para pouco mais que 11 africanos, enquanto quatro quintos da riqueza mundial continua a caber a uma sétima parte da população do mundo. Ainda não assumimos que o homem, como cidadão do mundo, deve passar da aldeia global da comunicação à polis global, onde, para além da casa comum da economia e das finanças, com déspotas e donos, candidatos a senhores do mundo, porque apenas estão mobilizados pela racionalidade técnica da utilidade e da segurança, importa a comunhão do fenómeno político superior, em torno da racionalidade ética de um princípio de justiça e da união simbólica pelas coisas que se amam.
A permanência de Ptolomeu
Utilizando a metáfora comemorativa, dois mil anos depois, mesmo a nível mediterrânico, os seguidores de Cristo, ou do seu aparente inverso, o humanismo laico da matriz estóica e da modernidade iluminista, continuam com dificuldades de diálogo face aos seguidores de Maomé, de tal maneira que ambos ainda não conseguem navegar entre as margens daquele que foi o mar interior do mapa de Ptolomeu, esquecidos que estão dos manuais de Platão e Aristóteles, que os europeus redescobriram nos séculos XII e XIII, graças aos mesmos árabes. Quinhentos anos depois, o Atlântico, a que acedemos com a ajuda de pilotos também árabes e de cartas e técnicas de navegação trazidas do Mediterrâneo, ainda não consegue ser o oceano moreno, dado que não se empreendeu a viagem a caminho do Sul, com ligação ao Índico e passagem para o Pacífico. Que o diga a nossa história de viajantes, neste mesmo ano de 1999, em que o simbólico estabelecimento de Macau mudou de natureza jurídico-formal e que em Timor, local de passagem do Índico para o Extremo-Oriente e do Índico para o Pacífico, se venceram as Tormentas, mas ainda não se realizou a Boa Esperança.
A viagem por cumprir
Falta muita viagem por cumprir para atingirmos a armilar, esse cruzamento de paralelos e meridianos que nos ensina a circum-navegar e a fugir dos planisférios da abstracção. Com efeito, a globalização, como semente do universal, ainda não foi compreendida. Ainda não com-prendemos, dela, parte com parte, para chegarmos a conexões de sentido, de tal maneira que, do particular, possamos ter intuição da essência. A vertente económico-financeira da mesma globalização já descobriu que todos os habitantes do Planeta são produtores e consumidores, mas ainda não concluiu que esse não é o fim da história e que ainda não começou a viagem pela justiça na distribuição dos rendimentos. Os ricos são cada vez menos e cada vez mais ricos. Os pobres, cada vez mais e cada vez mais pobres, agravando a revolução demográfica, com os ricos a terem cada vez menos filhos e os pobres no ritmo do “crescei e multiplicai-vos”, com a doçura dos “lírios do campo”. E não basta a hipocrisia da segurança e daquela ordem pela ordem que permite manter a Europa com dois terços de gente a viver cada vez melhor, graças à existência de quase um terço de socialmente excluídos, onde os maioritários, da nova classe média, votam sempre, muito mediocraticamente, nos mesmos partidos do centrão gestionário e situacionista, numa estabilidade garantida pela circunstância de, no resto do mundo, a maioria ser de excluídos. Política é segurança e bem-estar, mas não é apenas segurança e bem-estar, exigindo a superação dessa racionalidade técnica do mercado, pela ascensão à justiça da racionalidade ética, que constitui a estrela do norte do campo político.
Globalização, depois da economia...
Talvez os economistas ainda não tenham percebido que os problemas económicos, apesar de apenas se resolverem com medidas económicas, como ensina o FMI, não se resolvem apenas com medidas económicas, como ensina o bom senso. Porque se a economia (de oikos, casa em grego, de domus, casa em latim) é ponto de partida para a política, e não o contrário, também a globalização económica tem de ser entendida numa perspectiva armilar, como desafio que apenas pode ser vencido, quando se der regulação política àquilo que hoje já é um planeta unidimensional, em termos de comunicação e de sociedade da informação. No tocante ao Planeta, se já estamos na casa, falta sairmos desse doméstico e atingirmos a esfera pública, o político, onde tem de inventar-se algo que seja superior ao dono e nos dê a racionalidade do justo.
Entender a revolução global
Vivemos um tempo de revolução global, aliás, a primeira revolução global da história da humanidade. Onde o global não é necessariamente a restrita globalização económica e financeira proclamada por certo pensamento único de um pretenso neo-liberalismo, realmente pouco ético, marcado pelo hobbesiano do individualismo possessivo, mas um sentimento de planeta unidimensional, provocado pela existência de ameaças globais que roubaram aos campos da profecia e da poesia os sonhos da sociedade do género humano, essa civitas maxima, onde todos podemos ser cidadãos do mundo. A ameaça já não vem apenas de outras entidades políticas diferentes da nossa, de um inimicus, vizinho ou idêntico, mas daquelas ameaças que ameaçam realmente todos os homens: do risco tecnológico maior, à fome; da doença provocada por virus que não conhecem fronteiras, às questões da segurança; dos problemas do ambiente, à ultrapassagem das tolices de um conceito de desenvolvimento quantitativo que esqueceu a entropia, gerando uma sociedade de desperdício, cheia de lixeiras físicas e morais, hipocritamente dita sociedade da abundância, mas que apenas se mantém pela criação das necessidades artificiais do consumismo, pelo que nas mesmas se morre pelo excesso de comida, enquanto no resto do mundo se passa fome.
Das organizações internacionais à integração internacional
Para além das organizações internacionais, marcadas pelo inter-estadual dos Estados a que chegámos, com a consequente tentação da Realpolitik dos Talleyrand e dos Kissinger, há também sinais e sementes de integração internacional, com a criação de novos pólos de poder supra-estaduais, de novos centros, de novas acrópoles, de novos espaços supra-domésticos, polidos e civilizados, para onde os indivíduos podem transferir expectativas e lealdades, gerando uma rede de pluralidade de pertenças, uma constelação de massas de actividade, que só uma perspectiva pluralista do político pode contemplar e que só o princípio da subsidiariedade pode abercar.
A memória do lobo do homem
Os velhos Estados, nascidos do primitivismo da modernidade ocidental, ainda submetidos aos reflexos condicionados dos hábitos de obediência, aos medos do Leviathan de Hobbes e aos complexos do pessimismo antropológico de Nicolau Maquiavel, talvez sejam filhos daquela visão agostiniana e luterana que considera a política como um castigo divino, por causa do pecado original, partindo do preconceito que há sempre uns que subjugam e outros que se submetem pelo medo da violência, proclamando que o imperante, e a não a verdade, é que faz a obediência. Esses mesmos que perspectivaram o homem lobo do homem e que continuam a reduzir o político ao verticalismo da pirâmide ou da elite no poder. Até porque o chamado maquiavelismo, iludido por parecer ter razão a curto prazo, além de uma não-moral é também uma péssima política, porque deixa de ter razão no médio e no longo prazos.
A procura do Estado-Razão
Mas talvez outras perspectivas possam ser reabertas neste final de milénio. A velha polis grega do discurso de Péricles, os medievais concelhos do regresso da política, as observações de Pero Vaz de Caminha sobre o estado de natureza do bom selvagem, que tanto influenciaram Rousseau, ou a leitura kantiana da política, com um Estado-Razão onde não tem que ser majestática a Razão de Estado. E se a perspectiva hobbesiana começa a ser repudiada pelos seus parentes grocianos, julgamos que importa ir além do mero tratado, do útil pacta sunt servanda, e assumirmos o sonho kantiano, essa terceira via estratégica que vai mais além, a caminho do justo, porque dá ao mundo aquele cosmos da raiz do político, a autonomia da participação cidadânica, onde a urbs nos pode dar o orbs. Anthropos physei politikon zoon ...
Reflexões, aforismos e paradoxos
Tomo como guia a recente publicação em Brasília de um inédito de um mestre destas viagens sem fim, que me foi oferecida pelo embaixador Francisco Knopfli. Com efeito, o editor Victor Alegria deu à estampa um caderno inédito de Agostinho da Silva, numa belíssima edição, que inclui a reprodução do manuscrito: Reflexões, Aforismos e Paradoxos, Brasília, Thesaurus, 1999, com apresentação de Constança Marcondes Cesar. Impossível fazermos recensão formal destes escritos intemporais do Mestre, obrados em Lisboa, talvez em meados da década de oitenta, e agora editados em Brasília. Porque boa leitura é aquela que leia o que não há entre página e página da mesma folha (fragmento nº 138). Porque a matéria não deve andar antes do mestre (nº 231). Porque é possível que a imaginação espiritualize o poder.
Imanência que é transcendência
Há que ingressar, de vez em quando, no tempo que vamos esquecendo. Que regressar a esse poiso que nos sustenta. Na tal imanência que é transcendência, no devagar regresso ao profundo silêncio da leitura daquelas obras que não têm princípio nem fim. E estes escritos de um português execedente de Portugal só podiam ser primacialmente editados no Brasil onde se sente Portugal à solta.
Viajar devagar
E li, de um sôfrego, tais linhas, longas demais para tão curto tempo, quando apetecia que a viagem destes quinhentos anos fosse devagar. Passo a passo, absorvendo as milhas, absorvendo as letras, sentindo o deslizar dos dias e das sílabas, a mudança da mente, a mudança do corpo, nessa eterna adaptação à alma do lugar. Infelizmente, recensão é corrida, desprezando o espaço, sem lugar para a procura do mais além, aqui.
Agostinho da Silva e o imaginar
Agostinho, nascido em 1906, no Porto, terá morrido em Lisboa em 1994. A três de Abril, dia da Ressurreição. Por isso ressuscita sempre que, por dentro das suas palavras, ousamos renascer, ao integrá-las no movimento da vida, numa corrente de pensamento que nos faz estar antes e depois da nossa própria vida. E desta escola da Junqueira que o acolheu depois do exílio, ouso proclamar-me seu discípulo. Não apenas da pessoa, mas da tal corrente antiquíssima, intemporal, eterna, a que ambos aderimos, que ambos ousamos servir, porque é antes e depois de nós. Neste sentido, segue a presente recensão. Tão anti-recensão quanto esses escritos, originariamente sem título, me provocam. Da criação, vem o fenómeno. Da criatividade, o imprevisto. Pelo que importa descobrir. Porque o pensamento não só relaciona, mas cria (218). E todo o concreto vem de imaginar (230). E as obras primas são sempre capelas imperfeitas para os que vêm depois de nós continuarem a criação, confirmando o sublime de descobrirmos o que já está descoberto e de inventarmos o que já foi inventado, dando continuidade à angústia, à preocupação, à dúvida.
Navegar é preciso
Bem precisamos, portugueses e brasileiros, de diálogos transversais que entendam esta nossa pluralidade de pertenças. E os pensamentos agora publicados são, de facto, novo hino à heterodoxia luso-brasileira, lusitana, lusófona, quase ibérica. Desse mais além de que Portugal foi simples agente, sem saber quem foi o verdadeiro autor do impulso que nos levou de partida, sem regresso (304). Porque também navegámos nas ondas de um mar interior que nos deu ensimesmamento e porque, para continuarmos a navegar, nesse navegar é preciso, temos de nos converter ao signo maior de um tempo que tem de ser. Esse comunitário amor universal que é diluir-nos em todos os outros.
Sentido de viagem
Porque, quando a viagem nos faz peregrinos, eis que podemos ser romeiros de um sentido que transforma cada um dos nossos passos em missão. E todos os que são bafejados pela força desse sentido nunca terão um sítio que os limite. Em todo o mundo poderá haver a nossa terra. Viajemos, pois, com o sentido da viagem, sem a mácula daquele que tudo pensa poder captar porque apenas viaja para fazer suas preconceituosas sensações, já registadas por outros. Sem que lhe apeteça ser Pero Vaz de Caminha. Porque não se sente parcela da mudança, dessa tal viagem onde apetece cumprir livremente nosso destino. Quando importa sermos sempre os mesmos em qualquer lugar, mas convertendo-nos ao espírito da mudança. Porque, se formos desenraizados pelo preconceito da abstração, apenas conseguiremos ver aquilo que é a confirmação das nossas próprias previsões.
A história do futuro
E tudo isto a propósito do último texto de Agostinho. Onde se diz da busca do Perfeito (3), do chamar Deus ao pensamento (4), de, contra ortodoxias e heterodoxias, proclamar o paradoxo (5), criticando o presente e projectando o futuro. Porque toda a história que vale é do futuro (9). Aliás, o permanente é arquitectar o futuro e nele ir transformando o presente (300). Porque, crendo com todo o nosso ser, atingiremos o máximo da dúvida. Porque se não há liberdade no homem toda a profecia é inútil (195).
Paradoxo
Eis o começo de uma viagem interior, que a direita dirá de esquerda subversiva, que a esquerda dirá de direita conservadora (308). Onde o panteísmo é amor daquilo a que outros chamam Deus. Onde o dito anarquismo é verdadeiro regresso da política, da procura da ordem que deve ser contra a desordem instalada. Onde até Portugal é o universo, porque, no ínfimo da semente, pode estar o sinal do largo horizonte. Porque no átomo, no microcosmos tem de mimetizar-se o cosmos, se o cosmos for um macro-antropos, se o homem for um micro-cosmos. Porque vale a pena sonhar que um dia nada será de ninguém (30). Nesse mais além onde deixará de haver governo exterior, quando nos governarmos a nós mesmos (31).Quando dissermos que não há liberdade minha se os outros a não tiverem (50). Até porque seremos mais nós, quando a loucura nos inspirar e a razão nos exprimir (47).
Justiça e paz
Para tanto, há que perspectivar a política ao contrário, não a virando de cabeça para os pés, mas pondo-a, novamente, com a cabeça por cima dos pés, sem rebaixarmos os fins. O que sucederá quando ela deixar de ser a arte de obter a paz por meio da injustiça (62). Quando a justiça der paz, quando a paz nos der justiça. O que não basta.
Utopia anti-utopia
Porque, depois de chegarmos à Índia que vem nos mapas, temos de querer ir além da Tapobrana, em busca da Índia que não vem nos mapas, para podermos ser premiados com a Ilha dos Amores (133), a utopia portuguesa que é uma anti-utopia, porque tem lugar, tem aqui e tem agora. Esse depois da viagem de comércio e de guerra, quando há o repouso de um momento sem tempo e de um lugar sem espaço (327). Onde posso mudar se me penso mudado (335). Esse império sem império que vem depois das políticas apenas cartografáveis e geometrizáveis, dessas que exigem fronteiras, outros, ameaças, inimigos, momentos excepcionais que nos soberanizem e desumanizem.
Ter e ser
Anarquista? Sim, mas sem inveja. Porque além da classe dos que têm e da que se lhe opõe (isto é, os que querem ter, e não necessariamente os que não têm), há uma terceira: a dos que podem ter e não querem ter (141). Porque cada indivíduo tem de governar-se a si próprio, sendo sempre o melhor que é; porque tudo tem de ser de todos (324). Contra o capitalismo, economia comunitarista. Contra o cesarismo, democracia directa. Contra o inquisitorialismo, educação pela experiência da liberdade criativa, sociedade de cooperação e respeito pelo diferente, metafísica que não discrimine quaisquer outras, mesmo que pareçam antimetafísicas.
Procura da ciência
Uma análise do poder que finge não ser análise do poder. Porque a política é louca quando parece certa, enquanto a teologia está certa quando parece louca (159). Uma fidelidade à verdadeira ciência que finge parecer não científica, quando reconhece que a ciência apenas cresce quando regada de ironia, coragem e paixão (179).
Instituições e movimentos
Homem destes não poderia criar instituições. Apenas movimentos. Corrimão ou muletas que ajudem os outros a caminhar. E esse homem foi, muito simbolicamente, o primeiro responsável pelo Centro de Estudos Luso-Brasileiros desta escola da Junqueira. Num acaso que tem de ser convertido numa necessidade.
Universalismo português
Depois, Agostinho sonha Portugal. Que trouxe o de fora à Europa e que agora tem de levar para fora a Europa (63). Um Portugal, como planta destinada a povoar a terra que ousou ser tudo, para não ficar em simples nada (266). Um Portugal que, depois do ciclo do Império terrestre, não pode ser simples sobrevivente (269), preso apenas às brumas da memória, minguado no presente e sem saudades de futuro. Quando tem de continuar a lançar sementes que germinem pelo mundo (301).
O mestre e o discípulo
Porque é dever do mestre fazer com que seu discípulo seja o que é; para o transformar nele mesmo, só tem que deixá-lo ir sendo, consigo e todos e tudo aprendendo o que é; e, a cada experiência com ele o mestre reflicta. Eis-me, portanto, parcela desta viagem, por acaso parte de uma viagem que apetece, deste cumprir livremente a missão e o destino que nos são propostas.
Brasil
O novo livro de Agostinho, saído na véspera dos Quinhentos Anos, talvez nos obrigue a uma redescoberta do Brasil, para que uns e outros nos não esqueçamos da semente original donde brotámos. Porque nós, portugueses, e nós, brasileiros, somos como aquelas ondas concêntricas, de pedras lançadas a um lago pelo mesmo impulso inicial. Nós, e nós, não somos, entre nós, um qualquer outro. Porque cada um de nós se foi expandindo conforme as circunstâncias que nos desafiaram e nos diferenciaram, mas sem perdermos o signo da identidade originária. O círculo brasileiro, alargado a cerca de quinhentos povos, autóctenes ou emigrantes, marcou a América não integrada pelas gentes de Carlos V. O círculo português, euro-africano, euro-índico e euro-oriental, gerou novos espaços, muito articularmente, depois de 1825.
Divergências e convergências
Urge, agora, estabelecer novas pontes entre esses universos, cada qual com os seus espaços de autonomia, cada qual com as suas divergências e convergências, onde uma visão estratégica deve entender os vulneráveis sinais de distanciamento como potencializáveis sinais de crescimento, no sentido da emergência face ao infinito da esfera armilar. Porque o nosso sentido do universal não pode ser amedrontado pelo provincianismo localista dos que temem o processo da globalização.
A língua portuguesa
A âncora da língua, essas algemas que nos libertam, talvez constitua o principal dos elos desse processo de criação política de uma civilização superior. Aliás, quanto maiores forem o policentrismo e a pluralização no processo de constituição da comunidade lusíada, maior será o englobar universalizante e a consequente adequação à globalização. Por outras palavras, quanto mais o círculo brasileiro dialogar com África, com o Índico e com o Oriente da lusofonia, mais terá de dialogar com a vertente europeia dos que em português vão comunicando. Porque, assente nesta base, Portugal poderá ser cada vez mais europeu, e o Brasil cada vez mais americano. Tal como Cabo Verde, Guiné, Angola e Moçambique deverão acirrar a pertença africana e Timor agilizar-se como zona de passagem do Índico para o Pacífico. O segredo da comunidade lusíada, entendida como pluralidade de pertenças, está no facto da respectiva identidade não dever temer a integração de cada uma das respectivas parcelas noutros círculos concêntricos de novas pertenças.
Conflito de patriotismos
Há, no entanto, nuvens de crise neste processo. Um dos permanecentes sinais está na circunstância de alguns continuarem a ver o patriotismo de cada um das parcelas da comunidade lusíada como oposto ao patriotismo de outras. No caso das histórias do Brasil e dos outros candidatos a novos Brasis, por exemplo, muitos continuam a confundir o patriotismo português com os interesses de certos portugueses que estiveram, ou estão, instalados ou ligados ao contra-Ipiranga. Como se não tivessem sido bem portugueses os mamelucos e os bandeirantes, esses primeiros semeadores do expansionismo brasileiro para além do risco estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas. E até parecemos esquecer que as próprias populações negras do Brasil foram um dos mais importantes veículos da unidade nessas terras americanas, contribuindo decisivamente para a conservação e difusão da língua portuguesa. Talvez importe recordar que verdadeiramente patriótica, para portugueses e brasileiros, foi a a luta contra os holandeses, depois de 1640, onde foi simbólico o episódio da reconquista de Luanda pelo luso-brasileiro Salvador Correia de Sá. Essa primeira das operações de ingerência humanitária, mas cujo reverso também significou a intensificação do tráfico de escravos. Como também esquecemos que São João Baptista de Ajudá teve como núcleo central o estabelecimento de baianos no Golfo da Guiné.
Ondas concêntricas
Quando um português viaja no presente e no passado do Brasil como que está viajando por dentro de si mesmo, dado que o pólo brasileiro ainda constitui sítio de transferência dos nossos sonhos, das nossas expectativas e até de algumas das nossas lealdades. Porque no Brasil, a diferença face às raízes portuguesas apenas significa o tal círculo maior da mesma onda de criatividade e de imaginação. O Brasil de hoje difere daquilo que é o Portugal de hoje porque abarca outras gentes e outras terras, mas sem deixar de ser onda concêntrica nascida do mesmo impulso genético. O que devia levar a fundamentais consequências estratégicas quanto ao modelo de CPLP, onde o Brasil tem de assumir a respectiva liderança natural, principalmente no tocante a uma responsabilidade internacional relativamente à língua. Porque as unidades integrantes da CPLP, que já são uns Estados Unidos da Saudade, segundo a clássica expressão de António Ferro, não podendo voltar a ser um Reino Unido, têm de procurar uma institucionalização adequada à globalização.
A Revolução Atlântica
Nestas encruzilhadas da história, Portugal permaneceu não apenas por causa de Portugal. Talvez a principal consequência de 1640 tenha sido o Brasil. Depois, por causa dos imperialismos napoleónicos, deu-se o embarque da Corte para o Brasil, com a consequente criação de um Reino Unido, mais uma vez marcado pela armilar, onde o grito de Ipiranga valeu a pena. Porque a antiga metrópole europeia sentiu a dor de ser colónia quando se tornou no único país da Europa com a capital na América do Sul e tratou de criar essa ilusão de movimento de libertação nacional chamado revolução, com início no dia 24 de Agosto de 1820. Uma descolonização ilusória, porque desconhecedora da globalização, hegemonizada pelo free trade britânico, o verdadeiro criador das regras do jogo de então e, consequentemente, o principal beneficiado, porque Londres, que parte e reparte, não é tolo e percebe da arte. Uma ilusão de descolonização-libertação artificialmente oposta à sua irmã-inimiga brasileira, tal como em 1974-1975, os potenciais novos Brasis africanos, apertados pelas tenazes da guerra fria, se separaram de um conjunto ditado, para, depois, redescobrirem que dividir pode ser unir, quando livremente se redescobre a comunidade dos afectos e das significações partilhadas. Tal como os portugueses que restam em Portugal, talvez só agora, nestes finais de 1999, comecem a compreender que a descolonização, a que fomos forçados nos anos de 1974-1975, não significou um Portugal dos anos do fim.
Importa assumir as raízes para poder semear-se o futuro. Assumir as raízes, sentir o eixo da roda dos valores que vai acompanhando as circunstâncias da mudança. Porque quem assumir, desse eixo, o humanismo activo, redescobre sempre que no princípio da política está o homem e que só depois vem o Estado. E, portanto, deve concluir que o Estado a que chegámos é que tem de ser humanizado e não o contrário, do homem a ter que ser estadualizado, como ensinava o meu falecido professor Francisco Lucas Pires. Dar conteúdo prático a esse humanismo, talvez implique assumirmos a democracia clássica, onde a cidadania tem de ser participação nas decisões e o público que retomar o horizontalismo da confiança, do pactismo, do consentimento, sem o qual não pode haver comunhão nem bem comum. Lutar pelo humanismo passa, assim, pelo combate ao indiferentismo, esse vício da democracia representativa, quando os governantes se tomam da sobranceira altivez do soberanismo e do poder de império, e tentam transformar o cidadão, de que são meros representantes, em simples súbdito.
Neste virar do milénio, a crise do Estado tem a ver com a infeliz continuidade de velhas respostas ideológicas para as velhas questões sociais, quando importa descobrir o verdadeiro homem pós-ideológico, esse que, assume a pluralidade dos subsolos filosóficos que sustentam a actual axiologia do humanismo democrático e pluralista. Esse que é capaz de reinventar novas ideias regeneradoras para os novos desafios das novas questões sociais e das novas questões políticas.
Por nós, vale a pena chamar a atenção para a necessária nova perspectiva do universal, ou do armilar, que reconhece a existência de uma sociedade do género humano, onde todos podemos ser cidadãos do mundo. Uma herança greco-latina, de marca estóica e cristã, que acirrou os factores democráticos da formação de Portugal e que ainda pode mobilizar o humanismo lusíada, nomeadamente dos portugueses que continuam dispostos a dar novos mundos ao mundo, dessses que, reconhecendo a diferença, continuam dispostos a diluir-se em todos os outros.
Eis o regresso à política que subscrevo. Esse retomar do pactismo do nosso tradicional sistema de concelhos, quando o político, de acordo com a expressão do Infante D. Pedro, foi visualizado como mero concelho em ponto grande. Neste sentido, o elemento nação, no seio dos Estados a que chegámos, não pode continuar a depender exclusivamente da perspectiva verticalista do aparelho de poder estadualizante. Tem de revivificar-se politicamente na cidadania e esta, que ser amparada pelas comunidades políticas do small is beautiful, sejam elas naturais ou artificiais.
Neste sentido, só pode ser superada a actual crise do Estado pela autodeterminação da nação-Estado, bem diversa da perspectiva autárcica e verticalista do chamado Estado-nação. Há política antes e depois do Estado a que chegámos. Há política no interior dos Estados. Tem de haver política acima dos Estados a que chegámos.
51. Tal como humanizar a abstracção societária implica o reforço do indivíduo entendido como pessoa, dotada de uma dignidade, essa sim, soberana, e da plenitude de uma esfera de autonomia, na qual devem conciliar-se tanto a dimensão individual quanto a dimensão social e, consequentemente, liberdade e responsabilidade, participação e solidariedade. É desse espaço de resistência, dessa raiz da dignidade humana, que deve derivar a política. E nenhum valor pode instrumentalizar a pessoa. Seja Estado, Nação, ou Igreja. Mesmo a própria indução dita humanidade não pode esquecer o homem, cada homem concreto, de carne, sangue e sonhos, cada eu nas suas circunstâncias, esse verdadeiro centro do mundo, esse fim em si mesmo, esse ser que nunca se repete.
Tem de haver política além dos Estados porque há política no interior e ao lado dos Estados. Tem de haver CPLP, mas só haverá CPLP quando houver política de CPLP no interior, ao lado e acima dos Estados integrantes da CPLP. Tem de haver CPLP quando esta passar para uma fase de integração política. Só então nossa pátria será a língua portuguesa e a comunidade lusíada se assumirá como um todo, onde cada parte será a intuição da essência dessa unidade, onde cada parte será um heterónimo do mesmo eu comum, quase autor de si mesmo.
Por enquanto, outras integrações políticas desafiam cada um dos Estados da mesma CPLP. E muitas incompreensões desse processo político supra-estadual continuam a confundir o político. Mesmo o do bem comum mundial, dado que, nesta fase da globalização, ditada pelo pensamento único e pela memória da guerra fria, contra o domínio do processo integrativo tradicional da hegemonia, esse que considera que todos os centros políticos particulares devem ceder perante um deles, apenas parece emergir a resposta do modelo de governo mundial. O processo típico daqueles que defendem a instauração de um principado mundial, com ligação directa entre esse centro político e todos os homens, o qual tem como sucedâneo o mal menor do directório ou uma aliança entre as unidades políticas dominantes, onde acaba por ser regra injusta o princípio da hierarquia das potências, com Estados Directores, Estados Secundários e Estados Exíguos, onde, sob a hipócrita igualdade formal de todos os Estados, há sempre alguns que são mais iguais do que a maioria dos restantes.
Outra incompreensão da integração internacional tem a ver com o facto de vivermos no binário do unitarismo contra o federalismo. Quando os que mais falam em federalismo acabam por ser tão ou mais centralistas que os unitaristas, ao advogarem o imediatismo de um novo contrato, ou ao invocarem o federalismo funcionalista e gradualista que prevê a transferência para o novo centro, apenas de algumas funções dos anteriores centros políticos, através de um desapossamento sem dor.
Talvez nos tenhamos esquecido dos sinais semeados por Kant, ainda tão incompreendidos, dessa república universal entendida como uma exigência ética, no sentido de levar cada Estado a comportar-se como se todos os Estados existentes, formassem um Estado Mundial, uma civitas humana, a fim de poderem limitar-se os poderes do Estado-Leviathan. Exigência que só pode ser realizada se entendermos a graduação da procura da república maior, no contexto daquilo a que se chama princípio da subsidiariedade, onde cada república apenas terá os poderes necessários para a respectiva função, não interferindo as maiores na autonomia das menores, porque todas, e cada uma delas, têm de ser perfeitas e integrais, conforme a natureza das coisas para que foram inventadas. Uma geometria variável adequada à pluralidade de pertenças, aos focos quase excêntricos de cada onda elíptica, onde é hipócrita proclamar-se o não soberanismo da entidade política menor, apenas para se acirrar, muito piramidalmente o soberanismo do centro.
Acreditamos que a via subsidiária e pluralista é a que melhor poderá defender aquilo que somos e sonhamos ser. Essa aplicação dos princípios do Estado de Direito à ordem internacional. De maneira que a mesma possa deixar de viver no estado de natureza da vingança privada, onde cada Estado é lobo de outro Estado e onde os que se assumem como bons selvagens são devorados pela predadora lei da selva. E neste tempo realista de lúcidos analistas, talvez importe a lucidez de nos sabermos ingénuos, reconhecendo que cada Estado deve submeter-se para sobreviver, desde que saiba lutar para continuar a viver. Pois cada Estado deve reconhecer que a respectiva independência não deixará de o ser, se a inevitável gestão das dependências e das interdependências for norteada pela vontade de querer ser mesmo independente.
Talvez seja esta a linha que nos permite ler a recente obra de Agostinho da Silva. Depois das descolonizações frustradas de 1974-1975, onde Macau foi inversamente proporcional a Timor (por vontade alheia à vontade doméstica portuguesa, diga-se, aliás), eis que, finalmente, os portugueses podem encarreirar-se para a segunda época de Descobrimentos, a da fraternidade humana. Mas haverá também uma terceira, essa metafísica e mística, com todos os povos de línguas ibéricas (fragmento nº 307). Uma tal terceira fase, onde o social com suas regras, entraves e objectivos dê lugar ao grupo humano que tenha por meta fundamental viver na liberdade e que todos em vez de terem metafísica, religiosa ou não, sejam metafísica. Tudo virá, porém, gradualmente, já que toda a revolução não é mais do que um precipitar de fases que não tiveram tempo de ser...(nº 324).
Deixem-me acescentar que, tal como pela etimologia semítica, Ibéria quererá significar passagem, passagem entre a Europa e a África, assim Portugal, onde a terra acaba e o mar começa, sempre foi um cais de partida para o Mar Oceano, o sítio onde as ondas lhe batem nos muros, sempre sensível àquela visão do poder que considera dependendo todo o manejo da monarquia da navegação de frotas e armadas, e dos ventos que se mudam por instantes, como dizia o Padre António Vieira no Sermão de Acção de Graças de 1695.
Conforme Jaime Cortesão, Portugal é o resultado de uma convergência atlântica, dado que tudo impelia a gente portuguesa para o mar... A actividade marítima estava não só nas raízes da nacionalidade, donde sobe como seiva para o tronco, mas é como que a linha medular que dá vigor e unidade a toda a sua história.
Por seu lado, Jorge Dias acentuava que Portugal não teria sobrevivido até hoje, como nação independente, se não tivesse ligado o seu destino ao mar, estabelecendo amarras tão fortes com outras terras e outras gentes.
Consideramos, com efeito, que a Comunidade Lusíada é apenas um passo para a recriação do espaço maior de uma nova leitura da respublica christiana com a Ibéria, a América de Língua Portuguesa, a América de Língua Castelhana e a África dos PALOP e, portanto, pela criação de uma comunidade onde a união ibérica se extinguiria como fantasma, porque é muito mais aquilo que, pelo futuro, nos une, do que aquilo que, no passado, nos dividiu.
O regresso ao futuro de um Mar-Oceano, neste Atlântico a caminho do Sul, talvez deva continuar a senda daquela antiquíssima rota da Índia que, pela Volta da Mina e pela Volta do Sargaço circundava pelos Açores e pela Madeira, a caminho ou no regresso da Guiné, do Brasil, de Angola. Daquela rota que, depois de varar a Boa Esperança e de refrescar-se no Rio dos Bons Sinais, navegava pelo Indico e pelos mares da China, do Japão e de Timor. Até porque o Pacífico tende a ser o Atlântico e este o Mediterrâneo dos próximos tempos...
Uma última palavra quero deixar para brasileiros, porque, entre os potenciais factores de dissociação do processo de consolidação da comunidade lusíada, avulta a circunstância da grande potência que é o Brasil, e que constitui a maioria absoluta do elemento humano da Comunidade Lusófona continuar a viver política e diplomaticamente num certo introspectivismo. E sem a participação liderante do Brasil nesse processo nunca será possível a vivência política de tal comunidade.
Até sou dos que sufraga a ideia de Joaquim Barradas de Carvalho, segundo a qual o Brasil representa mais Portugal do que talvez certas formas culturais de Portugal de hoje, demasiado presas a influências europeias e principalmente francesas, e quase subscrevo a tese de Agostinho da Silva, para quem no dia 1 de Dezembro de 1640, o que verdadeiramente se separou de Espanha não foi Portugal, foi o Brasil e que Portugal nessa data foi feito independente pelo Brasil e continuou independente porque só na Europa se podia, através da Corte de Lisboa, fazer a política do Brasil. Neste sentido, a própria mudança da capital para o Rio de Janeiro, face às invasões napoleónicas, significou que a nossa entidade política matricial mudou-se de sua província europeia para a sua metrópole transatlântica.
Acresce que muitos dos melhores intelectuais portugueses dos séculos XVIII e XIX são brasileiros de nascença e de mentalidade solta, de Alexandre de Gusmão a Matias Aires, de José da Silva Lisboa a José Bonifácio Andrade e Silva. Como esquecer que a primeira obra literária que se escreveu no Brasil é o Diálogo sobre a Conversão do Gentio do Padre Manuel da Nóbrega, redigida em 1557 ? Como esquecer que foi o brasileiro Diogo Gomes Carneiro (1618-1676) que escreveu a Oração Apodixica aos Crismáticos da Patria, em 1641? Como esquecer esse grande brasileiro chamado Padre António Vieira? Como abstrair de Agostinho da Silva ter a cidadania brasileira ? Com olvidar que foi Gilberto Freyre que deu à Comunidade Lusíada a teoria do lusotropicalismo?
Mas também não sou pessimista. Como proclamava António Ferro, mesmo que façamos tudo para nos desentendermos, para nos afastarmos, as nossas almas hão-de encontrar-se às escondidas, porque são partes do mesmo todo. Preferível, portanto, que juntemos, duma vez para sempre, essas duas saudades e que proclamemos dentro de nós - soberania que não ameaça as fronteiras de ninguém ! - os Estados Unidos da Saudade de Brasil e Portugal.
A viagem que durante cinco séculos encetámos pelos mares, além do mar, e, depois, como bandeirantes, através das selvas e sertões, tornou-nos cidadãos do mundo, vagabundos de um sonho universal. Basta tão só que não percamos o pragmatismo da Aventura e o realismo do Sonho. O que levou e continua a levar os Homens aos Descobrimentos é essa ideia eterna de ser o Homem a fazer a História e não a História a fazer o Homem, mesmo sem saber que História vai fazendo. Porque o Homem, dizia Pascal, supera infinitamente o Homem. Porque, como Paul Claudel pôs na boca de Cristóvão Colombo: quanto mais além, mais além ainda.