A NOSSA MEMÓRIA DE LUÍS SÁ

  Em colaboração com Teresa Bracinha Vieira

 

Neste último ensaio de jornalismo de ideias, com que encerrarei o século XX, decidi, mais uma vez, dar a palavra à minha irmã  M. Teresa Bracinha Vieira, cumprindo o sagrado dever de revivermos  o companheiro e amigo Luís Sá:

 

Sonhou          sobre o mundo e sonhando abriu na realidade o baú que preservava algo de precioso, de incondicional...

Excedeu-se como as raízes das árvores milenárias na contenção do discurso, atento que era à degradação da palavra e à inexistente força individual das térmitas. Concentrava-se nos sentidos e nos sentires decisivos de um povo, no interior do qual surgira, procurando a textura da natureza humana, infinitamente em risco.

“Para quem o que vale a pena é o que se pode transformar em capital circulante é porque condena o outro a inexistir”, disse-me o Luís citando um livro que acabara de ler.

Em rigor, sempre o conheci em esforço permanente num horizonte de intelegibilidade e de vontade que forçavam os saberes inquietantes a revelarem-se.

Nunca esquecerei a Universidade com o Luís Sá; com o Professor Doutor Luís Sá no resgate vivo, plenamente vivo da entreajuda na transmissão do Conhecimento, como um dos caminhos através do qual escreveu a sua própria História. 

Muitos dos seus alunos me relataram o evento relevante que constituíam as suas aulas, a sua força vital e tranquila de invencível rival no método.

Assim e enfim se distinguia claramente dos pesquisadores míopes, dos investigadores de minudências, dos seres diminutos por excelência.

Estou convicta que muitos o olharam sem ver, muitos o pensaram sem pensamento.

No mundo do Luís não se confiscavam segredos e ninguém era estrangeiro. Uma das suas grandes lutas era a de alertar, constante e doridamente, para a ficção da igualdade de direitos dos cidadãos perante a lei. 

Falávamos frequentemente sobre a grande monstruosidade de quem inflecte em seu proveito a acção de vários seres, extraindo deles forças de manipulação inquietantes.

Disse-lhe, um dia, que me sentia desfalecida pela proliferação de anões análogos e de mesma função discricionária de des-razão que, nos faziam viver de alma viva e aflita. Respondeu-me: “Um dia, de tão extenuados, de tão necessitados de dizer não, e sem que o esperemos, inverter-se-ão as desproporções de forças, e, os “sábios” de olhar vasento, já não serão sequer, refutadores de pequenas teses”.

Frequentemente, conversávamos, ora através de silêncios, ora atingidos de palavras que se nos consentiam em diálogo de luz, ora através de deuses propícios a quem se entende viciado na comum solidariedade ao mundo.

Assim, também na Causa de TimorLorosae.

Diria ainda que em acto de imensurável fraternidade, o Luís, suspendia o seu poder de clivar ou de unir, sempre que via no acaso de um olhar, um ínfimo reflexo de uma ave que ainda não partira.

Procurava níveis diferentes do Ser, oferecendo, sem diferença, a proposta da fundação irreversível da Liberdade própria de cada Homem, ainda que intuísse, de alguma forma e em muitas situações, que se viesse a revelar inútil esse seu gesto.

De modo muito próprio, o Luís Sá era um sismo sobre o tecido social.

Cabe-me, também a mim, pela nossa profluente e genuína Amizade, por todos os momentos de trabalho conjunto na Universidade, a robustez da palavra escrita, para que se não trate como trivial o que é privilegiado, para que se não reduza a postura de uma vida distinta, a um ciclo unificador de fenómenos conhecidos, exorcizando-se deste modo qualquer inquietação à saciedade instalada.

Infelizmente, a comunicação e as posturas maciças que saturam o século, dissimulam a mentira absoluta sob um envólucro que proclama algo de oposto: uma espécie de vazio abstracto que é tudo sem ser nada..., como afirmava Kierkegaard.

Contudo, há quem o saiba e tenha a coragem de combater num combate guerreiro e, por essa mesma razão, por vezes, tremendamente só, sem que na sua origem falte a esperança e a dignidade do Homem que questiona os fundamentos primeiros.

Este, também, um dos grandes exemplos que o Luís nos deixou, e que em todos se deveria imortalizar como seu legado.

Num mundo de infectos ares e onde se anima com arte a simulação de um futuro, o Luís Sá sonhou sobre o mundo e sonhando abriu na realidade o baú que preservava algo de precioso, de incondicional...  

M. Teresa Bracinha Vieira

 

A força e a beleza destas palavras esmagam todas as guerrazinhas de homenzinhos que instrumentalizaram o nome de Luís Sá, a propósito do recente Congresso do PCP ou de um episódio mal contado sobre a sua não contratação como professor duma universidade pública portuguesa, a minha. Aliás, poderia narrar duas outras histórias sobre outras tantas recusas de contratação do mesmo Luís Sá por mais universidades públicas portuguesas, até porque, em dois desses casos, tive intervenção directa, como amigo, colega e orientador das respectivas dissertações de mestrado e doutoramento.  Continuarei a procurar cumprir o que com ele pactuei: calar.

 

Digo apenas que importa recuperar para a política o sentido da verdade. Em Portugal, os valores da tolerância, do pluralismo e da racionalidade poderão frutificar se o sentido da justiça prevalecer sobre o compadrio, o dogmatismo e os fantasmas da teoria da conspiração.

Quando fizermos um esforço racional e justo para superarmos as divisões conjunturais do reino da opinião, convergindo em torno dessa substancial procura da sabedoria, que, não negando as opiniões, permite partir destas para a procura de um bem maior. Quando houver sítios de humilde estudo e de convivência entre colegas, onde os homens livres possam esquecer-se das divergências cívicas, dos desalinhos ideológicos, das opções de conjuntura e das rupturas epistemológicas, pela procura do saber pelo saber.

Só verdadeiramente seremos livres quando percebermos que as qualidades e a riqueza humana e moral e a abertura de espírito na  procura do conhecimento podem transcender outras diferenças (Luís Sá).

 

 

BEM COMUM DA SEMANA

 

O papel de Portugal em Nice

Luís Sá assinalava em 1997 ser possível a evolução da entidade europeia “no sentido de um poder cada vez maior de potências”, sendo conhecida a existência de “propostas no sentido de criar uma hierarquia das potências, em que os pequenos e médios países teriam um papel subordinado”. Por isso, saudamos o instinto plurissecular  expresso pela política externa portuguesa na Cimeira de Nice, que não traiu esta nação que já existia antes de ter surgido o nacionalismo.

 

MAL COMUM DA SEMANA

A tentação imperial de certa Europa

Continuando a citar Luís Sá, importa assinalar a permanência da tentação imperial de certa Europa, marcada por aquilo que Michel Pinton qualificou como a tirania abstracta do dinheiro. Se a União Europeia  acabar dominada por um directório de quatro, ou de cinco, não tenhamos dúvidas: surgirá o drama de se abandonar a nação aos nacionalistas anti-europeístas, quando é possível um tudo pela nação, nada contra a Europa.