O novo bilhete de identidade dos Portugueses

 

 

O recente sentimento de insegurança que, neste começo do Verão, se insinuou entre nós, levanta um problema bem maior que o da eventual substituição do Ministro Fernando Gomes. A questão não diz apenas respeito aos políticos profissionais, aos militantes partidários, aos polícias, aos sociólogos e aos analistas de matérias criminais. Ela toca em cada um de nós, dado que tem a ver com a nova identidade dos portugueses, nestas vésperas do século XXI.

 

Com efeito, os assaltantes das bombas de gasolina, segundo os testemunhos oculares, têm entre os quinze e os dezoito anos e são de “raça” negra. Nasceram em Portugal, frequentam escolas públicas portuguesas e são educados pela RTP, pela SIC e pela TVI. Por outras palavras, não precisam de autorização de residência nem são controlados pela dialéctica que se tem estabelecido entre o Serviço de Estrangeiros e o Bloco de Esquerda. Isto é, ninguém os pode repatriar para África, para a China ou para a Oceânia.

 

Julgo que a matéria é séria demais para ficar reservada aos especialistas da segurança interna. Existencialmente falando, assinalo que o meu filho mais novo, de quinze anos de idade, aluno de uma escola pública desta metrópole lisboeta, onde metade dos colegas são da tal tez escura, verificou, no final do ano, que todos eles “chumbaram”. Não estamos a falar no Bakar, no Jamba ou no Samora, de Bissau, Luanda ou Maputo, mas no António, no José e no Miguel que o nosso sistema de ensino público contribui para lançar na marginalidade, talvez por não estar preparado para assumir a nova identidade multicultural dos portugueses.

 

Cruelmente, direi que a maioria dos actuais habitantes deste país à beira mar plantado, esses que se julgam herdeiros de Viriato e de D. Afonso Henriques, ainda pensam que se modernizam ao traduzirem em calão os modelos de combate ao racismo que os inimigos da “Front National” geraram nos arredores de Paris. Quando talvez importe não continuarmos a fingir que o Portugal deste último quarto de século já conseguiu superar os traumatismos do fim do Império Colonial. Não, não me quero referir aos eventuais desvios psiquiátricos que afectaram os participantes na guerra ou os desalojados. Quero dizer outra coisa bem mais complexa.

 

Uma comunidade política de corpo inteiro, esse algo que vai além do Estado e que procura assumir-se afectiva e culturalmente como uma pátria, um povo ou uma nação, é, sobretudo, uma comunidade de pessoas que partilham significações comuns. Tenta ser mais do que uma simples soma de “eus”, dado procurar atingir a dimensão do “nós”, quando cada um dos membros dessa comunidade consegue identificar-se com o todo, ao comungar símbolos mobilizadores.

 

Aplicando o princípio enunciado, podemos dizer que, há pouco mais de vinte e cinco anos, os portugueses eram portugueses porque, por exemplo, sentiam de forma idêntica Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira, duas das significações partilhadas geradas pelo ambiente do “Portugal do Minho a Timor” que, mal ou bem, formatou a maioria dos portugueses de hoje. Esse imaginário assentava no tímido esboço de um lusotropicalismo multicultural sonhado por uma minoria de visionários, mas que não conseguiu driblar os ventos da história da guerra colonial e da posterior descolonização pretensamente exemplar. Outro foi o discurso justificador da pós-revolução, quando, correndo para a integração europeia, nos orgulhámos da “Europa connosco” e de uma unidade nacional assente em bases de homogeneidade etno-histórica, sem os problemas das minorias que afectavam os outros europeus. Até se disse que os portugueses padeciam de uma espécie de “hiper-identidade”, muito especialmente quando nos comparávamos ao Estado Espanhol.

 

Descontando a questão nunca resolvida dos ciganos, olhávamos para os africanos que todos os dias aterravam na Portela e, subconscientemente, julgávamos que se tratava de mera afluência conjuntural, susceptível de ser repatriada quando construíssemos todas as obras públicas do regime e acabássemos com as barracas.

 

Por tudo isto, importa recordar que, na Idade Média, cerca de um quinto dos portugueses reais seriam mouros e judeus. Saltando alguns séculos, podemos também lembrar que, na região da Grande Lisboa, ainda no século XVIII, existiriam cerca de dez por cento de negros. Por outras palavras, o mais permanecente dos Estados europeus e a nação mais antiga deste Continente, partiram, afinal, de uma base multicultural e  apenas se identificaram unitariamente por terem praticado inquisitorialmente uma espécie de genocídio doce. Mesmo nestes últimos dois séculos, já sem judeus nem mouros, continuámos na mesma senda de construtivismo nacional centralista, quando programámos e aplicámos um modelo de assimilacionismo exacerbado tanto na metrópole como no espaço imperial.

 

Esses programas tradicionais do unitarismo, que marcam o nosso subconsciente, não me parece que sejam capazes de responder ao problema do António, do José e do Miguel. Eles podem ser pretos, mas já não são africanos. São europeus e portugueses, não serão vítimas da Inquisição e resistirão aos programas assimilacionistas das escolas, quartéis, igrejas e televisões, se não for estabelecido um novo bilhete de identidade dos portugueses.

 

O António, o José e o Miguel, diferentemente dos respectivos parentes, que, há séculos,  não resistiram identitariamente ao grupo dominante, vivem hoje na União Europeia e na aldeia global da comunicação, pelo que conseguem captar, a partir da Baixa da Banheira, da Falagueira e do Bairro das Marianas, alguns símbolos comunicacionais que lhes dão a ilusão de estarem em Nova Iorque fazendo guerra ao white anglo saxon protestant, ou em Paris lutando contra o soldado Chauvin.

 

Ao contrário dos repectivos pais, que conseguem ter uma boa relação com o grupo dominante, porque não têm a agressividade do destribalizado, o António, o José e o Miguel, que já não são africanos, correm o risco de ficar apátridas, se não reinterpretarmos Portugal de forma multicultural.

 

O racismo é o reflexo típico do animal territorial que está na base de qualquer homem. Coisa que apenas pode ser vencida pela razão, pela inteligência emocional e pela boa educação, se esta servir um projecto de bem comum que admita como portugueses o António, o José e o Miguel. Acontece que muitos racistas, temendo o “politicamente correcto”, são objectivamente hipócritas, quando ainda pensam poder praticar o anterior assimilacionismo, adversário da multiculturalidade. Talvez menos hipócrita, mas certamente mais ineficaz, é o pretenso anti-racismo que, sendo satélite da extrema-esquerda, acaba por lançar as minorias étnicas que a ele se acolhem para a uma marginalidade politicamente instrumentalizada.

 

Os portugueses têm que ter a coragem de reinventar Portugal. Têm que reorganizar a nova comunidade de significações partilhadas que, conservando o essencial da tradição universalista dos nossos oito séculos de história, seja capaz de a enriquecer com os contributos do António, do José e do Miguel. Que os nossos autarcas assumam uma efectiva política de ordenamento territorial. Que as nossas escolas se adequem ao futuro.

 

Eu quero, em nome das esperanças de Portugal, que o António, o José e o Miguel, que não são zairenses em Madrid, magrebianos em Paris, turcos na Alemanha ou romenos em Viena de Áustria, mas filhos dos meus irmãos Bakar, Jamba e Samora, façam parte do melhor do nosso universalismo. Por outras palavras, tanto rejeito a ilusão assimilacionista dos que querem conservar o que já não há, como me revolto contra o paternalismo de certos pretensos anti-racistas, que apenas os querem elevar à categoria de tolerados. O António, o José e o Miguel têm o direito e o dever de ser tão portugueses como os meus filhos.