CONTRA OS QUE ESTÃO CONTRA O REGIME

 

Entre os portugueses que vamos tendo, o normal é haver anormais, como nesta explosão de acontecimentos, onde todos vamos gastando nosso latim com os "entretantos", quando a análise minimamente racionalizada só pode incidir sobre o obscuro "finalmente". O caso que liga Ritto a Pedroso talvez possa vir a ser o melhor revelador deste "reino cadaveroso", dado que talvez tenhamos chegado às vésperas de um terramoto semelhante à "operação mãos limpas", onde, pedra a pedra, se venham a desmontar certas estátuas que chafurdam, não no barro, não na lama, mas num lodaçal de viscerais intimidades.

Recordemos que as grandes mudanças de regime em Portugal nunca foram marcadas pela efusão de sangue. De facto, 1820, 1836, 1842, 1851, 1910, 1926 e 1974, esses marcos da mudança política, quase não causaram mortos. Apenas foram uma espécie de emissão de um certificado de "cadaverosidade" do regime derrubado, pois o dito, um quarto de hora antes de morrer, já estava morto, porque interiormente apodrecido.

Por isso é que eu gostava mesmo de saber as causas do "tabu" de Cavaco Silva e as efectivas razões, nunca declaradas, que levaram Guterres a largar o poder. Qualquer um destes nossos Primeiros-Ministros devia saber bem mais do que se pode provar numa investigação judicial ou numa investigação jornalística...

Aqui e agora, também eu só sei que nada sei, balouçando ao sabor das intervenções mediáticas de políticos, magistrados e jornalistas. Assim, sejam quais forem os desenvolvimentos destes meandros, julgo que estamos a viver a mais grave crise institucional desde 1974. Porque se trata de uma crise politicamente suprapolítica, uma autêntica crise moral que tem a ver com o fundamento da própria comunidade, dado que está em causa a "confiança pública".

Muito liberalmente, direi que o mal absoluto, em termos políticos, está na circunstância dos agentes do aparelho de Estado se assumirem como os detentores do bem e da verdade. Quando eles se colocam em tal posição, logo se convencem que têm a obrigação de missionar o bem e de extirpar o mal, proibindo todas as vozes consideradas como de perdição.

Por isso, quero aqui deixar meu testemunho: estou contra todos os que estão contra o regime do Estado de Direito Democrático. Se nada sei dos processos judiciais em causa, se nada conheço das profundas investigações jornalísticas que desencadearam os primeiros, posso, contudo, intuir que os feitiços hão-de voltar-se contra os feiticeiros.

Os grandes mestres da manipulação da imagem que ascenderam, dos postos de "agenda setting", aos alcatifados vértices daquelas postas que julgavam impunes, não podem continuar a transformar a política numa brincadeira de amigos de colégio. O povo inteiro não pode continuar a ser objecto moldável pela esquizofrenia de uma ultra-minoria que nos julga passivos, obedientes e reverentes pacóvios de brandos costumes.

A geração que domina o poder político-mediático nasceu de muitas noites da má língua, de toneladas de niilismo e é agora liderada pelos velhos líderes do Maio 68. Todos demoraram trinta anos a chegar aos cinquenta e continuam serodiamente iguais ao que eram no tempo dessa velha senhora. Padecem da esquizofrenia típica dos revolucionários frustrados, sejam os advogados na berra, os juízes na barra, os procuradores na birra, os parlamentares na borra e os líderes políticos na burra.

Ora, a classe política assentava num acordo de cavalheiros sobre muitos silêncios que acabou por ser quebrado. E, furada a barreira, todo o visceral se vai espalhando, onde os que semearam ventos podem vir a colher tempestades.

Temo que ainda permaneça o país da inquisição. Que, em vez de uma pide, estadualmente controlada pelo governo, tenham surgido dezenas de formigas brancas, muitos formigueiros de "moscas", onde alguns até são assessores de intriga de suas excelências ministeriais. Julgo, portanto, que não há uma conspiração, mas uma complexidade de conspirações, quase à maneira do Onze de Março, onde inventonas tentam golpes falhados para que outros dêem os contragolpes duradouros.

Logo, corremos o risco de ver cair a confiança pública no regime. Quer as suspeitas sejam fundadas, quer tudo não passe de uma cabala. Amanhã todos seremos diferentes, porque "alea jacta est".

É urgente que tudo seja clarificado, que a "glasnot" permita a necessária "perestroika", que a a "glasnot" dê mesmo transparência. Que se mude alguma coisa para que não fique tudo na mesma.

O país continua cercado por incógnitas, onde todos temos que opinar olhando apenas a parte visível do "iceberg". Da rede pedófila ao julgamento da Moderna, de Felgueiras a Isaltino, o entrelaçado comunicativo talvez oculte coisas mais profundamente criminosas, mas que as lentes disponíveis dos olhos e ouvidos do Estado não conseguem captar. Por causa da elefantíase legislativa. Por causa da adiposidade burocrática, onde há banhas em vez de músculos e descalcificadas ossaturas, num Portugal obesamente invertebrado.

O tal ex-opinion maker, que agora manipula, conspira e dejecta, ao contrário dos especialistas em assuntos gerais, assume-se como um especialista em todas as especialidades. Dos taxistas à engenharia genética, das violações à política orçamental. Filósofo de nascença, nem por isso deixa de ser um estalinista de crença. O pior é que continua inteligente, pleno de recurso retóricos e sabendo cultivar o bem senso. Militante dos assuntos intermediários, denota, contudo, falta de crença quanto aos valores fundamentais. Falta-lhe, sobretudo, a agilidade sincera do discurso poético.

Somos assim dominados por iluministazinhos que continuam à procura de um novo Descartes, de um novo Darwin, de um novo Bentham ou de um novo Karl Marx, todos esses irmãos-inimigos da mesma tacanhez progressista. Esses cientificistas sem o sonho da ciência, esses materialistas sem o transcendentalismo da própria matéria, que nunca perceberam a existência de uma natureza das coisas.

São iguais nos postulados metodológicos ditados pelos escassos alicerces em que baseiam as respectivas teses sobre as origens. E lá continuam, muito primitivamente, à procura de novos primitivos actuais, dizendo quase o mesmo que Manuel Emídio Garcia e que Marnoco Sousa, respectivamente pais de Afonso Costa e de Salazar.

Não entendem o sonho nem o símbolo. Tentam explicar o homem sem compreenderem o homem, porque recusam a realidade do mistério. Mitificando uma realidade que não há, dizem que há factos, quando apenas acontecem interpretações de factos.

Eu que nunca fui pseudo-comunista, comunista, éme-érre-pum-pum, féque-éme-éle, éme-éle tão só, militante, aderente ou filiado no partido popular e adjacências, porque sempre estive no mesmo sítio valorativo, desde o Maio 68 e da Coimbra 69, isto é, na velha direita pré-salazarista, pré-prequiana, pré-cavaquista, pré-portista e pré-barrosista, estou disponível para assumir o bom combate contra todos os cabrais da nossa praça e a alinhar na ampla coalisão que nos possa trazer a necessária regeneração.

Porque sempre fui contra o 23 de Abril, o 24 de Abril, o 26 de Abril, o cavaquistão, a cultura do "independente" e esta coisa molusca que é o actual situacionismo, apelo às muitas direitas, infederadas e infederáveis, para que cumpram a serenidade pedida pelo Presidente da República, a Ordem dos Advogados e os representantes dos magistrados.

A autonomia da sociedade civil não pode continuar a ser confundida com o abuso de posição dominante das forças vivas. E o Estado tem que ser um Estado de Direito e não o do comunismo burocrático. Portugal só será regenerado, com mais Estado, mais sociedade, mais política. Isto é, com o Estado de Direito e a Santa Liberdade.