NÃO AO ABSOLUTISMO

Artigo publicado em Povo Livre, 12 de Junho de 1976

 

1- Sujeitos a homens de génio ou a homens comuns que personificavam o poder - uma nova e adocicada forma do l'État c'est moi, em que era lei tudo o que o cônsul iluminado opinava -, os portugueses, perdendo o hábito de pensarem a res publica, transformaram-se naquele desgraçado país, onde ninguém a ninguém admira e todos a determinados idolatram, como bem observou Almada Negreiros.

De facto, interessava ao paternalismo catedrático dos governantes estadonovenses que as pessoas se não preocupassem com essa ciência esotérica chamada política, a que só certos eleitos, os políticos , deviam ter acesso, porque, para os outros, a arraia miúda, a única política devia ser trabalhar e trabalhar sem discutir.

Portugal precisa de um indisciplinador, proclamava Fernando Pessoa, no início dos anos trinta, ao analisar os sintomas daquilo que considerava a doença da ordem. E, na verdade, as águas mansas do antigo regime, de tão estagnadas que eram, já estavam transformando este país, que fora nascente, num autêntico pântano de consciências.

 

2. O vinte e cinco de abril foi a tão esperada pedrada no charco do nosso letargo, o tal indisciplinador de que falava o poeta.

Poucas vezes terá acontecido na história deste país uma tal explosão de emoções e uma tal mobilização de vontades, que criaram condições para que a tal libertação da mola desoprimida que se partiu se transformasse numa autêntica revolução libertadora, pois raras vezes os ideais de pão, paz, justiça e liberdade terão sido, ao mesmo tempo, de tantos.

Mas a ilusão não duraria muito tempo. Nos subterrâneos do processo, começava a gerar-se uma aliança contra natura entre certos militares, que haviam sido libertadores, e alguns intelectuais ditos unitários, aliança essa que pretendia fazer uma leitura totalitária de um programa que se asumia como de salvação nacional.

E o espírito do vinte e cinco de abril a que quase todos tinham aderido, foi sendo progressivamente usurpado pelo oligopólio dos que não queriam, ou não sabiam, entender a palavra liberdade.

3. Ser-se revolucionário de acordo com as maiorias é um contra senso, afirmou certo dia um tal marinheiro que havia sido alto-comissário (não) de Portugal em Angola. Era o estado de espírito de todos os libertadores que pretendiam alcançar o poder através da insurreição a partir do aparelho de Estado.

4. Traduzindo em calão todos quantos modelos de revolução haviam sido inventados desde os tempos de Lenine, os nossos surrealistas revolucionários não se enetendiam quanto ao modelo mais adequado. Tivemos, assim, desde os mais estalinistas dos leninistas, aos maoistas ultravermelhos, com passagem pelos titistas, guevaristas, trotskistas, castristas, oportunistas, vigaristas e outros que tais. Um repetir ad nauseam de todos os ismos que o mundo e o submundo haviam produzido no último meio século.

Em todos eles, sempre o mesmo erro: o de pensarem a história, não como uma co-criação de homens livres, mas como algo que os manuais das respectivas ideologias já trazem escrito; o de, obcecados por determinados modelos de homem e de sociedade, quererem neles encaixara realidade de qualquer modo, nem que fosse pelo camartelo das propagandas e das polícias.

5. Mas a revolução não eram só os generais em mangas de camisa e discursar no Sabugo, nem as madamas de pá p'ra cima das campanhas de alfabetização. Para lá da comédia, havia a targédia da repressão tout court.

É que, parafraseando Albert Camus, para adorar por tempos e tempos um teorema, a fé não chegava; era preciso mobilizar a polícia. É que, enquanto houvesse inimigos, reinaria o terror e haveria sempre inimigos enquanto a revolução existisse e para que a revolução existisse.

6. Com o Verão Quente de 1975 e o pronunciamento de Tancos, iniciou-se o processo da segunda libertação que, no entanto, só viria a consolidar-se em vinte e cinco de novembroi. Foi a queda dos garnizés, pequenos e médios oficiais, incluindo generais graduados, que haviam subido ao poleiro do poder graças a toda a sorte de bicadas traiçoeiras, quase nos tendo lançado para o lodo mais nojento que o charco do antigo regime havia produzido.

A segunda libertação, não sendo tão embriagadoramente eufórica quanto a primeira, foi, contudo, muito mais eficaz. É que os portugueses, tendo sofrido na carne e no espírito a tragicomédia da pseudo-revolução, já não eram o povo despolitizado do salazarismo nem o povo sloganizado e massificado do gonçalvismo.

Fartos de batalhas contra fantasmas do outro mundo, estavam agora lançadas as condições paara descobrirmos que o inimigo verdadeiro eram as nossas próprias divisões internas.

7.O que nos divide, no entanto, já não é o Velho do Restelo.

Os que partiram de Belém com Vasco da Gama já não podem descobrir mais nada. Nem sequer o caminho marítimo para a índia do socialismo original, pela via do terceiro mundo.

As nossas caravelas ou se afundaram tragicamente na aventura africana, ou regressaram meio arrombadas às praias ocidentais donde haviam partido. Aliás, desde que o Almirante Tenreiro as transformou em duvidosos bacalhoeiros, as mesmas já haviam perdido toda aquela sedução que exaltava os nossos épicos.

Regressados definitivamente às nossas fronteiras europeias, também já não podemos sonhar com o regresso de D. Sebastião.

Agora é que D. Sebastião talvez tenha morrido de vez.

Mas se o Desejado-ele-próprio já não pode voltar, porque as areias movediças da traição o fizeram perder, talvez o sebastianismo continue. E, o que é pior, talvez continue na sua faceta mais retrógada e obscurantista, aquela que aceita toda a injustiça, todo o crime e toda a mentira, pela promessa de um milagre.

8. Ma cuidado! Também não é Marx que nos divide. Aquele senhor de longas barbas esbranquiçadas, nascido em 1813, autor do que, para muitos, é consderada como uma nova bíblia, Das Kapital, não pode ser culpado de todas as nossas insuficiências. Esta revolução até talvez tenha mais a ver com Freud...

O sistema filosófico de Marx, produto do ambiente cultural alemão da época, se, para muitos, se transformou em novo dogma, para quem possui uma autêntica perspectiva histórica, não passa de um elemento, como qualquer outro, daquele todo que é o pensamento humano. E, como todos os sistemas, não é a Verdade, embora possa conter algumas verdades.

Se ser apenas marxista é um contra senso, ser apenas antimarxista é um paradoxo, directamente proporcional. O marxismo tem tanto valor como o tomismo, o hegelianismo, o existencialismo, etc. E nenhuma destas escolas pode ser elevada à categoria de religião, por mais científica ou metafísica que seja.

 

9.Portanto, dividir este país em marxistas, por um lado, e antimarxistas ou não marxistas, por outro, talvez até seja dar demasiada importância à obra de Marx...

O que nos divide não é Marx nem o marxismo, mas sim o dogmatismo de certos mais marxistas do que Marx que, antes de Marx, já por cá existiam, só que com outra religião. É a tal intolerância que, desde há séculos, nos vem lançando artificialmente uns contra os outros, provocando um estado de guerra fria permanente.

O ultramarxismo de hoje é pois o herdeiro directo do caceteirismo material e espiritual que, considerando tumores malignos todos os que não pensassem como eles, sempre os procurou extirpar pela sangria da depuração, quando não pela sangreira.

Quando é que, em Portugal, o erro deixará de ser o contrário das nossas verdades e a verdade, o contrário do erro? Quando é que o joio do absolutismo deixará de contaminar a nossa seara?

 

10. De notar que nas nações, tal como nas pessoas, não é imediatamente a seguir aos grandes traumas que surgem as grandes depressões. Entre os dois momentos, acontece sempre um período intermediário de euforia, em que a embriaguez de mudança se sobrepõe à própria consciência de mudança.

Assim está acontecendo em Portugal. Depois do gonçalvismo e da descolonização, que trairam duas das grandes esperanças dos portugueses, a liberdade e a autodeterminação, e apesar de quase um milhão de desempregados e refugiados, ainda não tomámos verdadeira consciência do drama que nos atingiu.

A grande depressão ainda não aconteceu. É preciso evitá-la, ou, se ela for inevitável, arrecadarmos energias para a podermos superar.

Up Arrow.gif (883 bytes)

início.bmp (3862 bytes)

Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 05-01-1999.