José Adelino Maltez, Tópicos Jurídicos e Políticos, estruturados em Dili, na ilha do nascer do sol, finais de 2008, revistos no exílio procurado da Ribeira do Tejo, começos de 2009
Estado
A prosperidade do Estado, e em particular dos seus habitantes, é o fim primordial da sociedade política e das próprias leis
O Estado não é um mero conceito, mas antes uma ideia dinâmica Chateaubriand, François-René de
O Estado não é simples relação utilitária, síntese de força e consentimento, de autoridade e liberdade, mas encarnação do ethos humano e, portanto, Estado Ético ou, como dizem outros, Estado de Cultura
The modern State is the distinctive product of a unique civilization. But it is a product which is still in the making, and a part of the process is a struggle between new and old principles of social order. To understand the new, which is our main purpose, we must first cast a glance at the old.
O Estado é uma entidade masculina que, relativamente à pátria e à nação, deve ter uma relação semelhante à do homem com a mulher
Só a ciência do direito está em postura de dizer o que é o Estado
Para Marcello Caetano, é constituída por um povo fixado num território, de que é senhor, e que, dentro das fronteiras desse território, institui, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis necessárias à vida colectiva e imponham a respectiva execução. Tal unidade a que se dá o nome de Estado e que, em português, tem direito a maiúscula, segundo aquelas escolas de direito público dominantes que marcaram o subsolo filosófico da nossa Constituição, é susceptível de ser decomposta, quase mecanicamente, em três elementos o povo, o território e o poder político sendo-lhe atribuídos outros tantos fins a segurança, a justiça e o bem-estar social.
O Estado
segundo os nossos actuais conceitos, não tem apenas um corpus, não é
apenas um determinado conjunto geo-humano dotado de uma certa
organização. Não se resume à mistura aditiva de um elemento territorial,
de um elemento societário e do poder político. Para que haja um Estado,
exige-se não só a exclusividade desse poder político sobre o conjunto
geo-humano que o mesmo organiza, impedindo que outros poderes políticos
possam ter supremo poder sobre tal conjunto, como também a
racionalidade, isto é, a existência de elementos teleológicos, daquilo
que normalmente se designa como os fins do Estado.
Para além de
uma sociedade , de uma terra e de um governo, impõe-se um elemento
espiritual capaz de dar legitimidade ao monopólio da força pública, de
dar unidade ou ordenamento. Exige-se a tal exclusividade que, desde Jean
Bodin , vai conseguir-se pelo recurso à magia do nome soberania .
A tal
exclusividade que, surgindo de um conceito teológico secularizado,
consegue ser traduzida, com o mínimo de operacionalidade lógica, através
dos conceitos jurídicos, os únicos que dispõem daquela tecnicidade
instrumental que permite um mínimo de universalidade comunicacional,
pelo menos desde que, com as guerras civis europeias a que chamámos
guerras religiosas, a linguagem jurídica sucedeu à linguagem teológica,
filosófica e ética e se transformou no principal campo de conversação da
racionalidade.
Falar em
Estado é, pois, falar numa totalidade que vai além da mera actividade de
um aparelho do poder, a cidade do comando ou os governantes, sobre um
determinado conjunto geo-humano, a cidade da obediência ou os
governados. O conceito de pátria, de terra dos pais, pode, nalguns
casos, ser necessário, mas não é suficiente.
Do mesmo modo,
também podem ser necessários, embora não suficientes, os conceitos de
grupo humano de origem, a nação, ou de governação. Exige-se sempre que o
aparelho de poder, ou o principado, os organize politicamente e
juridicamente , tanto em nome da assunção pela comunidade de um
determinado espírito de unidade, a chamada consciência nacional, como de
acordo com as regras do direito.
O que só pode
conseguir-se quando esse todo tem determinados fins, que agora costumam
catalogar-se segundo a tríade justiça, segurança, bem estar. Isto é, o
Estado exige que o político se transforme numa espécie de relação
metapolítica, que os poderes se volvam naquela relação que os
transfigura em Poder, a tal rede de micropoderes que se institucionaliza
em algo dotado de universalidade e onde podem enquadrar-se muitas
diferenças, dado que, para atingir-se tal universalidade, há uma
multiplicidade de formas de mistura dos ingredientes.
O Estado tem
de ser perspectivado como um sistema aberto, como uma instituição de
instituições, isto é, como um sistema que troca matéria com o exterior e
que integra vários subsistemas sociais, com entradas reivindicativas (
input) e saídas prestativas (output), e onde a política seria uma
actividade de harmonização de contrários, obtida pelo consentimento e
pela persuasão. Governar tornar-se-ia assim num processo de ajustamento
entre grupos, num processo de negociação e de troca, num modo dinâmico
de gerir crises, através da articulação de interesses.
Porque o
Estado, segundo Rials, é o lugar onde a sociedade se mediatiza, se
pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e
tensões da sociedade Neste sentido, o Estado aparece como simples
parcela de uma mais ampla sociedade política, admitindo-se um político
supra-estadual, infra-estadual e a latere do próprio Estado, pelo que
seria possível conceber tanto a poliarquia de uma repartição originária
do poder político por vários corpos sociais, como também a própria
possibilidade de uma ordem universal, de uma civitas maxima, de uma
sociedade do género humano.
Por outras
palavras, o Estado não seria o fim da história do político nem o
hegeliano advento de Deus à terra, mas uma simples contingência
histórica. Porque teria havido unidades políticas maiores e porque
deveriam conceber-se comunidades políticas supra-estaduais, incluindo
essa sociedade das nações, em que cada Estado, mesmo o mais pequeno,
possa esperar a sua segurança e os seus direitos, não do seu próprio
poder ou do seu próprios juízo jurídico, mas dessa grande sociedade das
nações, duma força unida e da decisão da vontade comum, fundamentada em
leis, como diria Kant
Diremos, na senda de Daniel
Bell , que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais
para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos
problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes
problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a
tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global,
tentamos projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas
também é grande demais, pelo menos, quanto à participação política e à
humanização do poder, e muitos exigem desconcentração,
desregulamentação, descentralização e regionalização. De qualquer
maneira, eis que Estado é sempre produto da natureza racional e da
vontade do homem.
O poder
supremo, necessário para que o Estado seja uma comunidade perfeita, se é
um poder que, na sua ordem, não reconhece nenhum poder superior, eis que
tem de adequar-se a outros poderes qualitativamente superiores,
prosseguindo outros fins, de acordo com a lógica daquele princípio da
subsidiariedade que, reconhecendo o Estado como sujeito autónomo de
decisão moral, em nome da autonomia e da subjectividade da sociedade,
para utilizarmos palavras de João Paulo II , não deixa de salientar que
uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de
uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas
deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua
acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum .
A questão
fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder,
mas na assunção da plenitude da democracia. Em democracia, o Estado não
é um c'est moi do soberano exterior à sociedade. Em democracia, o Estado
é um c'est nous, um c'est tout le monde. Em democracia, o Estado somos
nós, os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na
decisão e de escolher os seus representantes.
Nós, cada um
de nós, os homens comuns, somos as únicas realidades substanciais da
política. Os grupos, as instituições e a própria instituição das
instituições que abstractizámos como Estado, não passam de meras
realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens
que as vivificam.
O
fundamental está no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a
que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de
duas fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização em
que 1+1 seja mais do que o resultado aritmético. Em que a união
comunitária da política faça a força do pluribus unum, gerando uma
mais-valia de sonho, de imaginação, de energia. Em suma, precisamos de
política- Política, pela reinvenção dos laços comunitários de uma
pilotagem do futuro, capaz de refazer o software das pilotagens
automáticas que os tecnocratas e pequenos e médios intelectuais costumam
importar através da tradução em calão de muitas fotocópias pirateadas a
partir de manuais de programação estranhos à nossa índole, à nossa
maneira de estar no mundo, à nossa realidade vivencial.
Para tanto,
importa distinguir o Estado-Aparelho de poder, o principado, do
Estado-Comunidade, a res publica, a fim de se declarar que não pode
haver democracia se aquele não resultar deste. O Estado-Aparelho de
poder em democracia tem de ser o representante do Estado-Comunidade,
pois o soberano não pode ser algo que paire sobre uma
unidimensionalidade de súbditos.
Em
democracia, a soberania resulta da cidadania, o Estado-Aparelho de poder
tem de potenciar-se no Estado-Comunidade. Logo, tanto tem de haver
integração da sociedade no Estado como uma resposta ( output) do Estado
às exigências e aos apoios (input) da sociedade. Porque se o principado
não for mero instrumento da res publica, a comunidade tem de revoltar-se
contra o poder estabelecido e expulsar o usurpador, se possível, através
dos meios legais disponíveis. Sucede que a democracia constitui apenas
um ideal, um sentido regulativo, da mesma natureza que a exigência do
Estado de Direito democrático, aquele que proclama que o fundamento e os
limites do poder passam pelo direito e por aquela forma que é irmã gémea
da liberdade e inimiga do arbítrio. Já não é lei aquilo que o príncipe
diz e o príncipe está submetido à própria lei que edita .
Na prática,
porém, a teoria é outra, porque qualquer democracia, marcada que está
pela plenitude da procura da perfeição, tem de ser instrumento dos
homens imperfeitos que somos, e das inevitáveis instituições imperfeitas
que constituímos. Qualquer democracia assume-se, no plano das
realidades, como uma poliarquia, como um sistema de competição
pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e
para a cidade dos deuses e dos super-homens. Poliarquia para o país das
realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa
mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do
caminho pisado que, afinal, nós nos fazemos.
Está em
crise o modelo de Estado que, de cima para baixo, do soberano para os
súbditos, pretendia construir uma nação. Está em crise o modelo de
construção do político onde se dá o primado do poder sobre a liberdade,
o predomínio do Estado-aparelho-de-poder sobre o Estado-comunidade, do
príncipe sobre a república.Utilizando as categorias de Maquiavel ,
diremos que estão em crise os principados, não estão em crise as
repúblicas. Mas, se utilizarmos termos paralelos, diremos que estão em
crise os soberanos, mas não estão em crise as nações
Está em
crise aquele modelo absolutista do político que continua o processo dos
déspotas esclarecidos, como Luís XIV , Frederico o Grande da Prússia,
Pedro o Grande da Rússia ou o nosso Marquês de Pombal. O modelo que
permaneceu e se reforçou com o Estado jacobino da Revolução Francesa,
principalmente de 1792 a 1796, constituindo um dos primeiros modelos de
um Estado terrorista que é continuado por Napoleão, Lenine , Mussolini ,
Hitler, Estaline , Mao ou Pol Pot.
Esse que
tratou de executar adversários pela simples razão de pertencerem a um
grupo diferente, considerado como contra-revolucionário, esse que
reinventou o delito de opinião e que aumentou a massa dos prisioneiros
de consciência; esse que praticou massivamente o genocídio; esse que
utilizou como forma de governar a confiscação e que transformou o
cidadão em carne para canhão.Está em causa o modelo de Estado que tentou
praticar a engenharia social para a construção de um homem novo. Está em
crise o poder, não está em crise a liberdade.
O poder
nasceu para se discutir, a liberdade para o discutir. Como dizia Hannah
Arendt , enquanto a independência nacional, ou seja, a isenção de
dominação estrangeira, e a soberania do Estado, ou seja, a pretensão de
total e ilimitado poder nas relações externas, estiverem identificadas .
Julgamos não estar em crise o modelo de nação-Estado, isto é, da nação
que pretende resistir como polis ou da nação que pretende
autodeterminar-se. Aquele modelo que, em nome do small is beautiful,
pretende que, a cada nação, corresponda um Estado, que o universal possa
atingir-se através da diferença.
Está em
crise a autenticidade do conceito de soberania, não está em crise a
nação. Está em crise o modelo absolutista, não está em crise a
perspectiva libertacionista. Estão em crise os nacionalismos que se
construíram, e constróem, à imagem e semelhança dos estadualismos, os
nacionalismos que, esquecidos da libertação nacional, tendem a
estadualizar o político.
Está em
crise a conjuntural modernidade do Estado, não está em crise o
permanecente do político. Estão em crise os Estados que se despolitizam,
não estão em crise os Estados que se repolitizam, que se revigoram no
cidadanismo da polis, da democracia e da iuris societas . Está em crise
a razão de Estado, não está em crise o Estado-razão, o Estado de Direito
Democrático .
Está em
crise o modelo de polis que não se vivifica nas actuais circunstâncias
da revolução globalista e da revolução do localismo. Não está em crise a
dimensão estadual a que pode dar-se a autenticidade da cidadania.
Não está em
crise aquele modelo de Estado que nasce da comunidade para o aparelho de
Poder. Não está em crise a nação politicamente organizada, o aparelho de
poder que brota da libertação da comunidade. Está em crise o modelo de
centralização soberanista que foi do absolutismo, despótico ou jacobino,
o qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias
comunidades naturais.
Está em
crise o modelo de Estado que, transformando os indivíduos do direito
natural em cidadãos do direito positivado, tratou de estatizar todos os
direitos originários e naturais e decretou que não poderia existir
qualquer espécie de intermediação de corpos políticos entre o mesmo
indivíduo e o centro do aparelho de poder estadual. Esse modelo que
expropriou as comunas, as regiões, os grupos profissionais e outros
poderes ditos periféricos, decretando a impossibilidade de uma
pluralidade de centros de poder soberanos se submeterem a um mesmo ente
coordenador.
Julgamos que
o debate dos anos setenta e oitenta em torno da dialéctica
colectivismo/liberalismo que muitos, subliminarmente, confundem com o
dualismo Estado/Sociedade, perdeu o sentido nesta fase pós-socialista e
de desconstrução daquele Estado-Providência que foi um Estado de
Bem-Estar e que agora é um Estado de Mal-Estar. De um Welfare State,
aliás, muito à portuguesa que, sendo fundado pelo salazarismo como
Estado Novo com algum atraso comparativamente a Napoleão III e a
Bismarck, diga-se de passagem, nem por isso deixou de ser o respectivo
herdeiro quando gerido pelo marcelismo, pelo gonçalvismo e pela
pós-revolução, donde, em muitos subsistemas, ainda não saimos.
As linhas de
força que apontavam para o mais sociedade, menos Estado e para a
libertação da sociedade civil, mesmo quando remodeladas pelo
aggiornamento do menos Estado, melhor Estado, ou de menos Estado, mais
sociedade, têm agora sabor algo retroactivo, muito principalmente face
ao actual processo de revolução globalista a que, entre nós, acresce a
aventura de participação no projecto europeu.
Porque,
perante um Estado que é, ao mesmo tempo, grande demais (no centralismo,
na burocratite, no gestionarismo e no regulamentarismo) e pequeno demais
(face aos desafios da internacionalização da segurança, da economia e
das ameaças globais do risco maior, seja armamentismo, ambiente, doença
ou fome), isto é, um Estado com muita adiposidade, pouco músculo e
terrível défice de nervos, persistirmos em serôdios soberanismos de
pacotilha acaciana é minguarmos, senão suicidarmos, o essencial daquela
realizável vontade de sermos independentes que nos fundou, manteve e
restaurou em anteriores crises de viabilidade.
O Estado e a
Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente
organizada, de uma comunidade política que tem de se manter viável face
ao exterior e fiável face ao interior. O Estado e a Sociedade correm o
risco de se perderem nas teias dissolventes de uma mundialização que
tanto tem novas formas de público, os grandes espaços, como novas formas
de privado, a Internacional das sociedades civis .
O Estado e a
Sociedade não são coisas, são antes processos que se exigem mutuamente;
não podem entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário que,
enfraquecendo-os, inviabiliza a comunidade política que devem servir.
Tentando,
agora, pensar em português para o Portugal de hoje, diremos que pode
estar em causa a viabilidade do modelo português de Estado. Com efeito,
o Estado que os portugueses instituíram e refundaram sofre de alguns
desafios existenciais que constituem o cerne da presente crise.Começa
por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o
Estado-Segurança, dado que se põe em causa o monopólio da força física
legítima, tanto no plano da segurança interna como no plano da própria
segurança externa.
A força
legítima ameaça desintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança
privada, nomeadamente através do apelo que muitos fazem a agências
privadas de segurança que, assim, negam a essência do aqui d'el rei, tal
como aparecia na célebre Lei Mental de D. Duarte que lançou as bases do
predomínio do direito sobre o arbítrio do Machtstaat, mesmo que vestido
das peles de cordeiro de uma higiénica companhia de seguros funcionando
a cunhas.
Segue-se a
crise do Estado-Administração da Justiça ou do Estado Justiceiro, a
crise da confiança dos povos nos seus juízes e nos seus procuradores,
com a ameaça concomitante de esporádicas emanações da Lei de Lynch e,
por vezes, pelo desvario de certos mini-pogroms contra os pigmentarmente
diferentes com que se deleita o falso nacionalismo zoológico de
importação. O que leva alguns, marcados pelas sombras de tal horizonte
de medo, a propor que eliminemos a plurissecularidade consequente do
nosso humanitarismo penal, quando o caminho é apenas darmos meios
fácticos ao humanitarismo e não invertermos os valores de que nos
orgulhamos.
Mas também
não nos devemos esquecer dos muitos erros que cometemos com o legalismo,
a chicana processual e a falta de sentido de missão de alguns servidores
da Justiça, tentados pelo sentido de casta dos corpos especiais e pelo
vedetismo de certa espectacularidade. Ai de nós se enveredarmos pelo
appeal mediático de uma qualquer telejustiça!
Ai de nós se
o terceiro poder se conubiar com o chamado quarto poder! Porque então só
daí sairemos com juízes eleitos ou com juízes sorteados...Vem, depois, a
crise do Estado-Imposto. Parece que nos esquecemos que a história da
democracia é a história do imposto, dessa longa resistência dos povos no
sentido da necessidade do consentimento para a tributação, coisa que
constituiu sempre o cerne das Magna Charta e que praticamos desde que
instituimos o Parlamento em 1253.
O que está
em causa é simplesmente a evasão fiscal, um problema mais moral do que
fiscalista, dado que, neste momento, continua a pagar o justo pelo
pecador, o que menos tem em benefício da petulância do prevaricador,
porque, não havendo moralidade, deixa de haver consciência comunitária
de punição e sentido contratual de contribuinte. Quando é impossível o
aumento da nossa carga fiscal e não parece curial deixarmos de honrar os
compromissos assumidos com os crescentes milhões de pensionistas.
Finalmente, é a crise do Estado-Burocracia, esse instrumento vital do
Estado racional-normativo, dado que, de tanta reforma administrativa e
de tanta modernização administrativa, se perdeu o próprio sentido dos
gestos e se desprestigiou o funcionário, aquele que é um servus
ministerialis, o escravo de uma função marcada pelo direito à carreira e
paga pelo vencimento, contra o clientelismo e o emolumento.
Uma crise
que determinados erros de falta de pensamento agravaram, dado que falta
uma Escola de Quadros e uma coordenação de policies que nos liberte de
certo orçamentalismo casuístico, para não falarmos de alguma tentação
dos anos oitenta pela privatização dos métodos de gestão pública, na
mesma altura em que as grandes holdings privadas copiam modelos da
estratégia dos governments.
Todas estas
crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, no qual o poder
político, tanto o do poder governante como o do poder representativo,
deve preponderar sobre os grupos e sobre as facções. De novo, o poder
político não é uma coisa, é uma relação, um processo de condução da
network structure, de comando da rede de micropoderes, um sistema de
sistemas e subsistemas, em que até aquilo que habitualmente se designa
como classe política não passa hoje de um mero subsistema de um processo
global.
É evidente
que a governação, isto é, a pilotagem do futuro, numa sociedade aberta e
pluralista não passa de um modo dinâmico de gestão de crises, dado que o
governo pelo consentimento impõe a emergência de forças vivas, em que a
articulação de interesses e a emergência de pressões constitui o normal
anormal da competição.Mas reconhecer o pluralismo não pode significar
cedência ao neocorporatism.
Do mesmo
modo, aceitar as facções, os partidos e a competição para a conquista
eleitoral do poder não implica necessariamente a partidocracia.As
democracias e as sociedades abertas estão cercadas pela corrupção em
sentido amplo, isto é, pelos inúmeros processos de compra do poder. Tal
como as burocracias estão minadas pelo clientelismo, pelo nepotismo,
pela pantouflage e pelo negocismo.
Por isso é
que as democracias têm de defender-se, em primeiro lugar, contra as
degenerescências típicas dos próprios fenómenos democráticos,
garantindo-se a democracia com ainda mais democracia, isto é, sem
cedências ao despotismo dos césares, das multidões e dos próprios
césares de multidões, em que a demagogia, aliada a poderes pessoais
tende inevitavelmente para a usurpação e a tirania doces, ou, o que é o
mesmo, para a negação do governo pelo consentimento.
Do mesmo
modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta senão com
mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da
internacionalização da economia e do reconhecimento da actual
internacionalização da própria sociedade civil. Qualquer regresso ao
Estado gestor, ao Estado confiscador ou ao Estado planeador seria
desgastarmos o político em funções para as quais não está vocacionado;
seria persistirmos no latrocínio. O que não deve significar cedência à
teologia do mercado de certos missionários ultraliberais, mas antes o
humilde reconhecimento de que os problemas económicos só se resolvem com
medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas .
Porque o
mercado não é o Estado, porque a oikos não é a polis. O nível da
política é o que está acima do doméstico, o decisor acima das partes, no
qual não há um dono mas um todo de cidadãos que não são os escravos, os
dependentes, os clientes ou os súbditos ; são antes aqueles que dão o
consentimento na decisão, participando na mesma, ainda que
federativamente, ou escolhendo os representantes que a proferem em nosso
nome para zelar pelos nossos interesses.
Mais
política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver
mais Sociedade. Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais
pensamento de Estado, de mais política internacional, de mais segurança,
de mais justiça, de que todos paguem o imposto, de mais imparcialidade
da administração, para que haja mais mercado, mais produção, mais
solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a intimidade da família
e da pessoa; em suma, para a realização do direito dos direitos, que é o
direito à felicidade.
Só que mais
Estado nunca poderá ser o menos Estado de um Estado empresário, de um
Estado interventor nos preços e na gestão, de um Estado quase merceeiro,
policiesco, vigilante ou caceteiro. Apesar de tudo, a democracia e o
Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos regimes
políticos... mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que
qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, na qual
preponderam sempre os sargentos e os censores, mesmo que com a
proverbial brandura de costumes. Bem menos péssimos do que aqueles
regimes que, em nome da ideologia, decretam a verdade, esquecendo que o
bem tem sempre um bocado de mal e o mal, um pedaço de bem.
© José Adelino Maltez |
Última revisão:06-05-2009
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