Chegou a primavera

 

 

Chegou a primavera, 

vem-nos todos os anos. 

Os geógrafos falam 

em latitude, longitude, sol. 

Dizem que tudo é resultante

do sítio que cada um tem 

na curvatura da terra.  

Julgo que também depende 

daquilo que a solidão sente 

face ao seu próprio lugar. 

Aliás, nosso corpo, breve, 

pode sentir-se bem mais leve 

que o próprio peso do tempo. 

Se ousarmos o sonho de voar 

ou o instante de um chilrear. 

A primavera só o será 

se os verdes gomos vencerem 

os ramos ressequidos.

Se as flores romperem

folhas caídas,

e um raio de sonho

disseminar seu verbo

nas sombras da invernia. 

Só depois pode, enfim, chegar 

a luz a mais, meridional,

de quem sou filho natural

Quando os corpos abrem seus olhos 

para as coisas que são belas. 

Que venha o sol aquecer

as palavras que, na forja,

estão à espera.

Que venha o sol

demarcar-nos da paisagem.

Que, pela voz, regressem

todos genes da distância.

Só então, os homens esquecerão 

a húmida máscara do tempo

que o vento não consegue lavar.

Quando os prados se cobrirem de papoilas

e os bichos todos se remexerem 

fora dos próprios casulos. 

Só depois, apetece procurar, 

por dentro das coisas,

a própria natureza das coisas,

subindo ao cume da colina,

para poder estar mais perto

da plena luz que me calcina.

Então, saberei, mais uma vez, descer

aos longos vales do silêncio,

à verde mansidão do rio.

Para sorver a seiva da terra,

reanimar meu corpo

e, silvestre, misturar-me

nas verdes relvas da manhã.