Foram longos os anos de exílio voluntário, por causa do tal papel
social que tenho de representar, do curriculum, do cursus honorum, da
carreira, do posto de vencimento que aos meus dá casa, mesa e luxo. Mas
agora não apetece recordar os sítios estranhos onde tenho de fingir viver essa
falsa identidade que todos dizem ser minha. Porque todos julgam de quem sou,
apenas meu ser profissional, feito cartão de visitas ou badana de livro, quando
apetece procurar, entre os nichos da distância, um lugar que me dê alento e
rasgar quem finjo ser no triturador dos papéis sem alma. Não, não sou essa
fotografia de passe, tão postiçamente sorridente, que bordeja meu nome, em
relevo, carimbado. Também não me confundo com esse rabisco de assinatura que
movimenta a minha conta bancária. Nem com esses números de pagar impostos e
levantar dinheiro, assim todos postos, em sigilo, nos muitos cartões electrónicos,
que accionam as caixas automáticas que anotam os meus passos. Esse colossal
ficheiro do novo Leviathan; onde o mercado tende a usurpar a liberdade; e onde só
me deixam referendar aquilo que me perguntam, muito controladamente. Talvez seja
mais do que o simples dígito de um qualquer recenseamento, esse registo, essa
abstracção, que os gestores da governança fizeram número fiscal e cartão de
eleitor, simples folha de um dossier qualquer na repartição tantos de tal. Há
quem, por dentro, não caiba no breve espaço rectangular dos ditames
normalizados de uma ficha planeamentista. Valeu a pena não perder meu ser nos
jogos ocasionais dos que, em busca da fortuna, se embrenham no azar. Valeu a
pena dar sentido à própria espera. Sou bem mais que a simples consequência
fingida de um encadeado curricular. Sou quem fui que há-de ser, mesmo depois de
morrer. Porque neste refúgio das simples dúvidas que lanço sobre
quem penso ser, tenho a ilusão de escrever para a eternidade. Mesmo que todos
os outros me lancem no pelourinho das minorias, quero viver como penso, sem
pensar como vou vivendo.