SER COMO TODOS OS OUTROS

Alguns julgam de quem pareço ser,
o contrário de quem sou,
como se em mim as coisas mais simples
não tivessem lugar.
Quem diz que o poeta não pode sofrer
do stress do funcionário exemplar?
Quem diz que o poeta não é um ser passível
de exemplar carreira na burocracia ministerial
e candidato a louvor no boletim oficial?

Apetecia deixar de ser quem aparento ser. Deixar de ser este senhor doutor casado, director e professor. Ser apenas um entre os demais, a quem apetece também o prazer das coisas mais iguais. Ler A Bola, jogar no Totoloto e saudar o incrível de todas as manhãs desfolhar o dito Correio da Manhã. Nos anúncios, procurar casa e, na lotaria, pensar que não preciso de pedir um empréstimo para comprar casa.

Quanto apetece ser como todos os outros
sem a pretensão de ser poeta.
Ser apenas um humanamente entre os demais
na longa fila dos que apenas sobrevivem
sem a dor de pensar na própria vida.
Ser igual ao que nunca são demais,
e perdido na sonolência da multidão,
esquecer-me de quem sou.
Ser um cidadão qualquer
marcado pelo ganha-pão,
cumprir o horário, ser bom funcionário
e votar sempre como deve ser
na semente de sucesso que vai vencer.

Ser obediente, sacrificado, competente
e aspirar a um louvor cinzento
pela vida que dediquei a quem não sei.
Cumprir ordens sem pensar que posso pensar
(para quê procurar o porquê
do que existe para não ter porquês?)
Sim, senhor mandante, senhor director-geral
vossa excelência manda, basta apenas despachar
e cumprirei sem duvidar vossa omnipotência banal.

Para quê pensar o porquês
do que não tem porquês?
Para quê sofrer pelos meandros direitos
do que torto tem que não parecer
Esta angústia da vida burocrática
dos corredores das demandas sem fim.

Vale a pena esperar, esperar pacientemente
a hora de me poder aposentar.
Depois, sim, oh que alegria,
poder cultivar as flores do meu quintal
e, sentado no sofá, ler descansadamente
os livros todos que deixei por ler,
sem temer que me venham surpreender
em flagrante de cultura marginal

Apetecia deixar de ser o que pareço ser
fingir para os outros quem na verdade sou
sair desta fortaleza em que resisto