Poesia de
José Adelino Maltez

 

No princípio era o mar

Pátria Prometida

Na raiz do mais além

Spera, Sphera, Sperança

NO PRINCÍPIO ERA O MAR

ESTAR AQUI

Estar aqui
As palavras proibidas
No silêncio de quem sou
Os arados do poema
O poema é sempre grito por dar
Não sei nada, destroçado
Rosa livre, rosa breve
Para quê cantar de novo
Se não existisse Alberto Caeiro
Chamar deus ao que me cerca
Na praia de madrugada
Nesta incerta descoberta
Um navio de vento vai voando
No cais das despedidas
Vou ao fundo das horas
Hoje apetece poesia
O deus instante
Meu amor é procurar-te
Não vale a pena
Porque pensei paz
As horas podem ser duras
Este caminho teia de aranha
Dia a dia nove luas

AMOR AUSENTE

Depois do amor
Teu corpo sabendo a sal
Se tuas mãos nas minhas
Com palavras de um lirismo português
Este beira mar que somos
Vem
Ir de porto em porto
As tuas mãos de bonança
Estas mãos
Ir para lá do cabo que proibe
Quanto mais longe
Vou de partida
Amor português
Morna
Leve tua pele
Na madrugada breve
O poema é embrião
Pela noite companheira
Teu corpo aberto à noite
Saudar a noite misteriosa
Delirando amor
Dois corpos livres de algemas
Meu corpo teu corpo
Duas réstias de luar
Ir mais além
As palavras portuguesas

O SILÊNCIO E A REVOLTA

Quantos ficaram para sempre
Uns aos outros nos acusamos
Partir de novo
Alcácer quibir ainda nos mata
Neste quarto degredo
Amanhã
Aventurar-me na poesia
Sobreviver
Descobrir meu país desconhecido
Perder-me na terra da manhã
Sobre os medos do passado
Madrugada a madrugada
Este pensar no céu
Onde está meu país?
Poesia pode rimar com mar
Entre saudade e regresso
Um pouco de nós morreu contigo
Ondas brandas da bonança
Das praias ociedentais
Sentado nas areias
Alguns morreram afogados
Vento soão
Vou-me embora
A palavra liberdade
Não ficaram nas crónicas

 


PÁTRIA PROMETIDA

Pátria Prometida

NÓMADA DE MIM MESMO

Com pedras palavras
Construir o meu poema
Tenho as palavras todas dentro de mim
A palavra prometida me dai sempre
As palavras rompem da memória

NA RAIZ DO MEU SER
Onde não há cor nem formas
Por detrás de cada poema


A POESIA DO MOMENTO
As palavras que acontecem de repente
Por onde o olhar se alonga
O poema hoje não é ferida que doa
Poesia são estas mãos de bruma
Para quando o poema da emoção
Acertar todos os relógios
Em silêncio as palavras são

NA CIDADE MAS LONGE DA CIDADE
Sempre canções por fazer
Palavra a palavra exercitar poemas
Poisado na pedra, repouso meu corpo
Esta poesia do calor amarela e seca

POEMAS POR FAZER
Ao tempo perdido as mãos lancei
Este poema por fazer
No vaivém do coração

IR ALÉM DENTRO DE MIM
O senhor deus fez de mim balão
Voando além de mim dentro de mim
Por dentro de mim, dentro bem fundo
Sempre mais além para não chegarmos
Sempre a noite companheira
A poesia dos silêncios procurados
Vem, solidão da noite

ALÉM DA MORTE NÃO HÁ MORTE
Não, morrer agora não
Para quê pensar no homem lobo
Estar sozinho diante da muralha

ENTRE O SER E O NÃO SER

Quando a noite não é noite
Nesta manhã suave
No húmido húmus
Mergulhar nas trevas do meu impulso
De ti parti para o mundo
Eu que tive forças para vencer
Fingi nos meus poemas
De que valem mãos que me defendam
Pensar amor nesta hora de dor
Sou a sombra do que sou
Não senti na carne a poesia

NO BULÍCIO DA CIDADE
No deserto da cidade
Esta cidade nos dói todos os dias
As milimétricas quadrículas
Sem leme nem vela
Às dez da noite de domingo
Neste prédio de apartamentos
Cigarro a cigarro
Pedestre peregrino pelas ruas


PEREGRINANDO AMOR

Meu amor adolescente
Tempos azuis adolescentes
Naquela noite em que teu corpo

AMORMENTE

De novo o amor volta a ser poema
Teus braços débeis de andorinha foragida
Que importa o amanhã
Amar o amor no plural
A minha espera foi deserto
Enquanto espero por teus braços
Anseio mão amante que se estenda
Ausentes meus olhos estão presentes
Em solidão me cerro dia a dia
É teu nome que regressa
Não apetece passear sozinho
Esta saudade
É demais este sofrer-te
Os anos passaram
Já não és senão recordação
Na mata das acácias meu amor
Será possível que um só momento
Conversando
Apetece simplesmente conversar contigo
Queria ser gaivota
Entre a lua e a cidade
Ergo meus olhos para o sonho
Adormeço nos píncaros do tempo
Agramor
Lavrar no corpo da mulher
Deixa que teus seios aproem
É a hora de celebrar teu corpo
Nas densas brenhas do teu corpo
Ternura de amar-te
De olhos postos no teu rosto
Meu corpo todo lança de fogo
Digo dos teus olhos cor de mar
Pureza de estarmos sós
Na rudeza crua
Dai-me senhor do tempo
O tempo que passa

TODOS OS DIAS OS DIAS SÃO

Todos os dias os dias são
Desbravando a madrugada
No sossego da madrugada
Quando as horas deslizam
As mãos cheias de nada
Pela estrada fora, noite dentro
Sempre a noite diante dos faróis
Sei que senti poesia
Amanhã três homens vão partir
Das horas todas uma só hora
Nunca sentir receio
Procurar porquês para cada instante

PASSEANDO NO PASSADO

Era uma terra em pousio
A mesma paisagem de outrora
Como o tempo passa
A velha casa do meu avô
No meu quintal em dias de sol
Minha avó velha mãe da mãe da minha mãe
A morte veio beijar-te lentamente

NOSSO FILHO HOMEM SEMENTE

As mãos de deus nos deram fogo
Fiquei só comigo mesmo

HORAS DE BRUMA

Mais uma vez o homem

Mais uma vez as palavras
Fui homem total meio deus meio animal
Quebrar atávicas algemas

NAS TEORIAS DA RAZÃO

Seguir o rumo livre
Ousei aventurar-me
segregando teu grito de mordaças
Cravar fundas as unhas
O mistério não acaba em bojador
Sei que dentro de mim

MARE NOSTRUM

Entre as ondas e as areias
Sobre o mar cinzento
Benvindo são vapor
Lá vem o navio balouçando

BEIRA MAR DE PORTUGAL

A música natural do nascer do dia
Entre as areias e o pinhal

OLHANDO A BARRA DO TEJO

Do cimo desta colina
Navios são berços
Entram na barra barcos estrangeiros
Regressam ao algarve

MIL NOVECENTOS E SETENTA E CINCO

Mil novecentos e setenta e cinco
Mesmo pátria antiga
Nossos mortos
Sem versos que nos despertem
Que as palavras sejam armas
Não açaimes teu ser
Nosso querer há-de varar
Dias que passo a pensar
Deixa que os tiranos dominem
Estou aqui não vou fugir
O povo revoltado
Perdidos
Segregado, sigo sem contrato
Podeis prender meu corpo

REGRESSO QUE NÃO VEM

Sebastião somos nós quando acreditamos
Enchemos trovas com palavras
Eu sou o que sem medo
Morremos sem bandarra portugueses
Não sei se sebastião pode mais voltar
Não vês florirem esperanças
Passo a passo te consagro


NA RAIZ DO MAIS ALÉM

Somos ainda quem fomos
Portugal que partiu
Ao mar demos quem somos
No mais além do ocidente
Peregrinar raízes
É preciso Portugal
As incansadas viagens da minha terra
Deste lugar que não tem lugar
Na raiz do meu país
Sempre um lugar onde
À procura de quem somos
Retornados, revoltados
O dia a cair dentro de mim
II
SOBRE A PROCURA DA PALAVRA

Entreversos, entrelinhas
Escrever quem sou
Este prazer de escrever
A semente do poema
O encanto do poema por fazer
Palavra a palavra me aprofundo

III
ENTRE QUATRO PAREDES

Árvore replantada
Calustrofobia
Sítios que apetecem sempre
Partido e repartido
Memórias de barca bela
Biografia
Ser como todos os outros
Sempre a dor de não sermos
Deixem que deixe de ser
Hino à glória de ter medo
Uma rosa cor de rosa
Não fazer nada
Domingo à tarde
Ser de novo menino
Do Porto que me deu cidade
No baile do clube
O prazer de fumarmos um cigarro
Ser do contra

IV
MEMÓRIA DE AMOR AUSENTE

A praia primeira dos meus dias
Neste remoçar do tempo
Beber de um gole
Um destino por cumprir
Borboleta, voar
Quem me dera moço de novo
Partir, sair daqui
Em teu corpo vegetal profundo
Se teus olhos me dessem

V
CANTOS DO ALÉM

A utopia tem de ser um dia
Nunca sou quem estou
Peregrinar a memória
Tempo de ter tempo
Tudo me passa além
Amanhã há-de vir sol
Na teia do poema
Navegante de saudade
Ao poema dou quem sou
Sentinela de mim mesmo
Esta luz a mais, meridional
Pressa de chegar depressa
Andorinha te dou nome
De onde vem o sol?
Vai em frente, segue viagem
Ir ao fundo de quem sou
Este mais além que pensa
Nos olhos de minha filha
Ciclo das estações

MALHAS QUE A GUERRA TECE

Guiné verde vermelha
Missão cumprida
Nesta guerra guerrilheira
Alguém que sepultaram na distância


ESCRITOS INÚTEIS

Justificação. Em quinze declarações prévias
Estar aqui e ser agora

Estar aqui (p.9)
As palavras proibidas
No silêncio de quem sou
Os arados do poema (p.12)
O poema é sempre grito por dar

Regressam ao Algarve
Na rudeza crua (56.2)
Não sei meu amor se é o medo (56.2)
Dai-me, senhor do tempo (56)
Já vivi o necessário para saber
Sem versos que nos despertem (84.2)
Os anos passaram (46.2)

No silêncio de quem sou
Os arados do poema
Juntar palavras e sons
Chamar deus ao que me cerca
Esta distância que apetece
Escrever todos os dias
Quando me encontro, logo me perco
O magma pétreo das palavras
Pensar na morte sem pensar morrer
Depois do amor
Este beira mar que somos
Ir de porto em porto
Em teu colo de bonança
Quanto mais longe, mais longe ainda
Nos beirais de quem sou
Corpos livres de bruma
Meu corpo todo
Vencer os corpos, viver o amor
A palavra exacta
Partido e repartido
O poema é vento que desperta
Deixa que os outros se percam no bulício
A música imprevista de um verso novo
Dia a dia, poemizar meu ser
Pedras palavras vou lançando
Voando além de mim dentro de mim
Viver é nascer de novo
Quando a morte vier
Pelos trilhos do silêncio
Uma bússola secreta
Andorinha peregrina
Ausente, meu amor
Este sangue adolescente
A cidade nos deu saudade
Peregrinar teu corpo
As longas praias do poente
No silêncio do pinhal
Já vivi o necessário para saber
Vago remanso dos meus dias
Não filosofemos as árvores
Arca dos sonhos passados
O dia da nossa despedida
Quando o tempo for de novo nosso tempo
Amanhã há-de ser mar
Retomar o sentido dos gestos
Viajar pelos meandros
Lá longe, para além da serra
Procurar um lugar onde
Domando a caneta
No cimo da serra
Ermos, lentos montes
A íntima fronteira
No dia a dia dos dias que passam
Um pedaço de silêncio onde me guarde
Apetecia ter um cão
Apetece falar com minhas filhas
Quando as ideias correm mais velozes
Há uma estátua quioca
Aqui na praia do Lizandro
Minha cadela podenga
Tudo me dá lembrança
Quando o vento guarda
Olhar o mar cá de cima
Aqui onde quem sou me esquece
A força do silêncio
Memórias muito prosaicas