
A
frustrada República Nova – Institucionalmente, o dezembrismo tenta
inaugurar um novo ciclo político, marcado pelo presidencialismo, assente
no sufrágio directo e universal e no alargamento do próprio colégio eleitoral.
Com efeito, Sidónio Pais não
pode ser configurado como um mero ditador precursor do salazarismo
ou continuador de João Franco.
Ele é sem dúvida o homem que apenas procura responder às circunstâncias.
Porque a anterior república, marcada pela partidocracia de uma força dominante,
temia o diálogo directo com a massa da população.
As
novidades políticas – Ensaiando banhos de multidão, tem rasgos
de generosidade e recebe um apoio emocionalmente sentido por um povo cansado
de políticos, fechados sobre o seu próprio clube partidário ou parlamentar.
Neste sentido, Sidónio faz melhor do que João
Franco, continuando a pescar apoios no terreno dos potenciais
adversários, e não repete o erro de Pimenta
de Castro, usando, desde sempre, a farda, ele que, há muito,
se vestia de borla e capelo. Surge assim o primeiro presidente da
república eleito directamente por sufrágio universal, alcançando uma legitimidade
profundamente sentida e popularizando a República pela primeira vez. Pressente
também a necessidade de um intervencionismo estadual no plano social e
económico, lançando as bases de um Estado-Providência. Logo em
9 de Março cria-se uma nova estrutura governamental, onde o velho ministério
do fomento, donde já se tinha destacado uma estrutura dedicada ao trabalho,
dá lugar, por um lado, a um ministério da agricultura e, por outro, a um
ministério das subsistências e dos transportes. Segue-se a criação de um Instituto
de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Geral (10 de Maio),
bem como de mecanismos extraordinários de luta contra a fome, como a chamada sopa
dos pobres, que ainda hoje funciona com o nome de sopa do Sidónio.
Instituem-se também as senhas de racionamento, logo em Setembro.
O presidencialismo altera mesmo a estrutura do governo, dado que em 15
de Maio os próprios ministérios são substituídos por secretarias de Estado,
presididas pelo próprio presidente da república, entretanto já eleito em
28 de Abril.
Convulsões
– Não se pense, contudo, que o modelo nasce num país vivendo
em normalidade institucional. A revolução dezembrista é sangrenta, fazendo
cerca de uma centena de mortes e quinhentos feridos, enquanto a instabilidade
golpista continua a manifestar-se. Logo em 8 de Janeiro de 1918, a revolta
dos marinheiros; no Verão, uma greve dos ferroviários, precedendo uma
ensaio de greve geral em Novembro; em Setembro, uma revolta militar em
Lamego; e em Outubro, novas movimentações revoltosas em Lisboa, Porto
e Évora. A resposta do poder estabelecido nunca é branda e assume mesmo
alguns contornos de terrorismo de Estado, sendo marcada pelo
episódio da chamada Leva da Morte, de 16 de Outubro, quando, num
transporte de presos golpistas, no próprio centro de Lisboa, sete deles
são assassinados, entre os quais se inclui o aristocrata republicano
Ribeira Brava. Mas Sidónio nunca deixa de procurar acalmar os ânimos.
No dia 18 de Maio, em visita ao Porto, liberta pessoalmente os revoltosos
detidos que se queixam das tradicionais violências policiais.
Partidos
– No plano partidário, o sidonismo, depois de perder o apoio
político dos unionistas (em 7 de Março, os ministros do grupo de Brito
Camacho abandonam o governo e, no congresso de 8 de Abril criticam violentamente
o estado de coisas, decidindo não apresentar-se às eleições) tenta estruturar-se
pela criação o Partido Nacional Republicano (30 de Março de 1918), onde
se integram os centristas de Egas Moniz e os reformistas de
Machado Santos. O partido, que tem como órgãos de apoio A Luta e A
Situação, ainda sobrevive depois da morte de Sidónio, sob a designação
de Partido Nacional Republicano Presidencialista, tendo concorrido às
eleições legislativas de 1921 e 1922,
antes de se fundir, em 1925, com o Partido Nacionalista. Outro
movimento político nascido na altura é a Cruzada Nuno Álvares, fundada
em 18 de Julho. Esboça-se, inclusive, uma revista, a Pela Grei - Revista
para o Ressurgimento Nacional pela Formação e Intervenção de Uma Opinião
Pública Consciente, fundada em princípios de 1918, de que saem sete
números, até 20 de Maio 1919. Dirigida por António Sérgio e contando
com a colaboração de Ezequiel de Campos e Raúl Proença (1884-1941), é órgão
de uma Liga de Acção Nacional que tem como Presidente o reitor
da Universidade de Lisboa, Pedro José da Cunha, e contando, entre os
fundadores, com os professores Ruy Enes Ulrich, Reis Santos e Francisco
António Correia.
Um
presidencialismo democrático – Excluir a lei e a prática eleitoral
do sidonismo da vida da I República, configurando o processo como um
pré-28 de Maio ou um proto-fascismo pode constituir excelente literatura
de justificação, mas impede que se assinale uma efectiva experiência
de sufrágio universal, bem como a primeira eleição de um chefe de Estado
por sufrágio directo e também universal. Julgamos que o modelo lançado
pelo antigo ministro dos primeiros governos do regime, juntamente com
os ilustres republicanos que o apoiaram, de Machado Santos a Egas Moniz,
apenas cria a hipótese de um presidencialismo democrático que, se tem
o vício da personalização do poder, nem por isso deixa de ser democrático,
como o virão a demonstrar as experiências da V República francesa, com
Charles de Gaulle e Mitterrand e, como, de certa maneira, o tentam praticar
Ramalho Eanes e Mário Soares, nas nossas experiências de institucionalização
pós-revolucionária da democracia. Acresce que a participação de adversários
do regime na vida parlamentar, longe de destruir as instituições, poderia
vivificá-las. Ligar a experiência sidonista ao Estado Novo corresponde
a uma verdade, se distinguirmos o 28 de Maio do salazarismo e se recordarmos
que uma das primeiras oposições ao salazarismo veio dos generais do movimento,
nomeadamente de Vicente
de Freitas.
A forma
do poder é a de uma república presidencialista, com correcções à própria
Constituição de 1911 e com alterações das suas principais leis orgânicas,
da Lei da Separação à Lei Eleitoral, mas sem nunca se dar uma global revisão
do texto constitucional. Contudo, entre os apoiantes do também chamado
dezembrismo, há um conflito persistente quanto ao perfil do presidencialismo.
Primeiro entre os unionistas e os sidonistas propriamente ditos, intervindo,
pelos primeiros, o próprio José Barbosa, autor, na Constituinte, de um
projecto presidencialista. Depois, um conflito entre os centristas de Egas
Moniz e o grupo sidonista de Tamagnini Barbosa,
dado que os primeiros queriam restringir os poderes presidenciais de dissolução
parlamentar.
Um
vazio de projecto – O sidonismo não assenta em qualquer prévio projecto
definidor da arquitectura do Estado, flutuando conforme as crenças dos
sucessivos apoiantes. É particularmente inovador a nível de imagem do poder
com o presidente-rei a utilizar pela primeira vez os banhos de
multidão. Surgem, assim, sinais de novos tempos políticos, da república
nova que vários tentam corporizar em rótulos e ideias. Martinho Nobre
de Melo tenta integrar esse hibridismo no sindicalismo integral, então
defendido por Léon Duguit. Outros há, pré-fascistas, como Teófilo Duarte.
Até António Ferro (1895-1956) se sente empolgado com a novidade.
Com efeito, a personalização do poder aliada ao messianismo vivia a intensidade
dos tempos posteriores às aparições de Fátima, aos dramas de uma guerra
mundial e da emergência da revolução bolchevique. Os próprios integralistas,
assumindo-se como deputados do sidonismo, tentam também ocupar o vazio
de uma revolução que se fizera sem prévio trabalho doutrinal. Uma revolução
com autor, mas que, depois de feita, procura ideias.
A sede
do poder está no chamado Paço de Belém, nome que, nos diplomas
substitui o de Presidência da República, num homem que tenta inventar
uma instituição. O executivo tende, assim, a sair de S. Bento. Só depois
de expressas todas estas contradições é que Sidónio procura a constituição
de um partido e até se organiza um governo com ministros que passam a chamar-se secretários
de Estado. Reduz-se o tempo de reunião do Congresso. Não se toca no
poder judicial. E sempre o militarismo, dado que Sidónio, ao contrário
do que fez Pimenta de Castro,
trata de vestir a farda que não usa há muito e quando há crises
logo passa a assumir as funções de comandante militar. Mas apenas
instrumentaliza a farda, mitificando os cadetes.