Respublica     Repertório Português de Ciência Política         Edição electrónica 2004

Harmonia

Palavra de origem grega, querendo significar ajustamento ou ordem de elementos, ajustamento, encaixe, articulação, proporção. Desde sempre se comparou a harmonia musical à harmonia cósmica, a universo entendido como um sistema de elementos diversos e contraditórios. Alguns, como Heráclito proclamam mesmo que a bela harmonia nasce das coisas contrárias e tudo brota da oposição. É desta ideia do tecer os contrários que nasce a própria reflexão da política, nomeadamente em Platão. Com efeito, as coisas políticas, as coisas da religião e as coisas do direito, todas procuram uma ordem comum, a ordem que se opõe ao caos, um equilíbrio que sempre precisou de uma espada e de um fiel, para poder ser harmonia ou mistura de contrários. Porque nunca houve nenhuma sociedade em que todas as regras fossem espontaneamente cumpridas, porque sempre foi precisa uma heteronomia, um poder entendido como a mistura da força com ideias, capaz de punir os prevaricador. Onde, em vez de um bloco monolítico hierarquista, tenta imitar-se o pluralismo e a flexibilidade da harmonia cósmica. Sem os valores, a ordem política não passaria de mera facticidade, não possuindo sentido nem íntima ordenação. Com os valores a ordem política passa a ser uma espécie de dinâmica de distintos à procura de harmonia, onde as bipolaridades e as antinomias são exigências vitais. A politicidade, com efeito, é poder mais liberdade, governabilidade mais participação. A polis não pode ser pequena demais nem grande demais. Tem de ser uma unidade que não desfaça harmonia desses contrários que são o poder e a liberdade.

 

A arte do tecelão

Como salientava Platão, a tarefa principal do homem político é como a do tecelão, dado caber-lhe transformar a tensão em harmonia, fazer com que cada uma das partes da virtude estejam de acordo com as outras. Por exemplo, a tensão entre a coragem e a moderação, entre a bravura e a doçura. O político é aquele que tece grupos opostos de seres humanos, onde reinar é juntar o que está dividido e tecer é como se fosse casar, casar os filhos das famílias marcadas pela bravura com os filhos das famílias marcadas pela doçura. Porque não podem tornar-se cidadãos os membros da cidade totalmente incapazes de se tornarem bravos, ou vice-versa. A política é pois a arte de conciliar contrários. É a tensão entre o governo tirânico e o governo político. Entre o poder e a liberdade. Entre a coacção e o cumprimento espontâneo. O movimento da degenerescência é provocado pela desagregação do múltiplo a partir do uno, quando o uno não consegue a harmonia. Quando cada cidade não é uma, mas muitas. Quando são pelo menos duas, inimigas uma da outra, uma dos pobres e outra dos ricos. Quando a cidade não consegue aumentar, permanecendo unida. Quando a cidade cresce na multiplicidade e não na unidade e não se alarga como um círculo.

 

Cícero: liberdade, autoridade e poder

Também para Cícero, uma república que constituiria uma harmonia entre a liberdade, a autoridade e o poder, onde a libertas estaria na participação directa do povo na decisão política, a auctoritas estaria no órgão que conserva a memória da fundação da cidade e detém o poder legislativo, o senado, e a potestas, no poder executivo dos magistrados.

 

São Tomás e a unidade de ordem

São Tomás vai assumir uma perspectiva totalista, a consideração da civitas como mera unidade de ordem ou unidade de relação, como um todo de ordem (totum ordinis), mais orgânica do que organicista, dado que se visiona uma harmonia, uma unidade da diversidade. Trata-se de uma unidade na diversidade. Há diversidade de funções mas uma harmonia imposta por um fim unitário. Há mera aplicação de uma dada forma a uma determinada matéria, os indivíduos.

 

D. Jerónimo Osório e a concórdia

Também D. Jerónimo Osório salienta que o ideal social é a harmonia, a união de todos, a concórdia firme e duradoura. E o rei deve incitar todos à prática do bem, deve procurar a salvação do povo e o bem da república.

 

Leibniz: reconciliação, harmonia, síntese

Também Leibniz sempre foi marcado pelo impossível de conciliar os contrários, através daquilo que qualificava como reconciliação, harmonia e síntese. Assim, eis que, enquanto homem do iluminismo, tentou recuperar a escolástica aristotélica, do mesmo modo que, como luterano convicto, procurou a reconciliação com os católicos. Neste sentido, considerando que a harmonia universal é Deus, pretendia instaurar uma espécie de alfabeto do pensamento, onde a física, a mecânica e a matemática deveriam ocupar o espaço da metafísica.

 

 

Do soberanismo ao federalismo

Com o soberanismo, os Estados deixam de ser Repúblicas e transformam‑se em potências e a sociedade internacional, em lugar da harmonia do teatro do mundo, passa a ser uma espécie de teatro de operações de Estados, como pessoas em ponto grande, passam a ser uma ordem estabelecida, uma positividade sem transcendente onde tem razão quem vence, onde a razão da força é mais forte que a força da razão. Por isso é que Proudhon retoma o topos: A federação seria também o próprio contrário do equilíbrio : uma federação não um equilíbrio. Equilíbrio pressupõe antagonismo, federação pressupõe harmonia e liberdade. Equilíbrio é o sistema animal do instinto; federação é o sistema racional da consciência.

 

Unidade na multiplicidade

Por outras palavras, a polis é a harmonia na diversidade, unidade na multiplicidade, não podendo ser grande demais nem pequena demais.  A polis tem de ser suficientemente grande para poder atingir a auto-suficiência, para conseguir um poder de governação, mas também tem de ser suficientemente pequena para permitir a liberdade e a participação. Logo, não pode ser grande demais nem pequena demais. Tem de ser harmonia. Tem de crescer na medida compatível com a sua unidade. Tem de ser suficiente na sua unidade. A partir de então, o pensamento clássico do político tratou de assumir que devem manter-se os dois termos da oposição, não em equilíbrio neutro, mas através de uma tensão criadora, daquela mesma que falava Heráclito : o que se opõe, coopera, e da luta dos contrários deriva a mais bela harmonia. Porque a unidade não é unicidade, tal como o todo não é o totalitário. A unidade é unidade na diversidade, diversidade de funções, mas harmonia para um fim unitário, um bem comum mobilizante. A polis só pode ser entendida como o espaço de diálogo entre a decisão e a participação, entre a governação e a cidadania, como a exigência de unidade na diversidade, como a harmonia dos discordes.

 

Harmonia económica Proposta do livre-cambista Claude-Frédéric Bastiat, que serve de título a uma obra de 1849. Porque as leis gerais do mundo social são harmónicas e tendem em todos os sentidos para o aperfeiçoamento da Humanidade.

 

 




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