Lisboa,
23 de Março de 1992
Meu caro Manuel Monteiro,
Exmº Senhor Presidente do CDS
Dirijo-me tanto ao Presidente do Partido de que ainda sou filiado, mas na
irregular situação de militância suspensa, formalmente comunicada ao então
Presidente Diogo Freitas do Amaral lá para os idos de 1988, como ao camarada de
muitos combates antigos.
Escrevo-te em cima do calor do X Congresso, onde, sem ser basilista nem
gostando pessoalmente do Dr.Basílio, apoiei conscientemente a opção
"começar de novo". E, a este respeito, quero dizer-te que, apesar de
não fazer parte das listas dirigentes do mesmo Dr.Basílio, comprometi-me
substancialmente com a respectiva candidatura e deixei que o meu nome por ele
fosse instrumentalizado, com toda a lucidez. Aliás, depois do que se passou, se
houvesse uma repetição do Congresso, seria mais do que reincidente, pois, além
de sujar as mãos, daria um activo contributo organizacional a tal campanha,
dando por finda a suspensão da minha militância e candidatando-me a
congressista.
Sou filiado no partido desde o dia seguinte ao V Congresso, mas sou
militante político da direita desde os meus bancos do liceu. Tenho 25 anos de
vida política, 40 de idade, cinco anos de militância activa no CDS e 9 de
filiação no mesmo partido. Isto é, não é pelo facto de não estar filiado
num partido que me transformo num desempregado político.
Aliás, dedico toda a minha vida profissional à política, dado que sou
e continuarei a ser professor de ciência política, misturando a paixão com a
própria profissão, onde me pagam para todos os dias pensar cientificamente na
própria política.
Importa dizer que nunca fiz parte de qualquer outro partido ou associação
política, antes e depois do 25 de Abril, apesar de ter ajudado à implantação
do Partido Popular Monárquico e de ter colaborado activamente com o
Dr.Francisco Sá Carneiro, como o podem atestar as minhas participações no
"Povo Livre" e o exercício das funções de adjunto do Ministro
Magalhães Mota no VI Governo Provisório no ano de 1976.
Fui, aliás, um dos assessores que estiveram nas conversações que
levaram à criação da A.D. e exerci funções de adjunto em dois governos da
mesma coligação governamental.
Convém proclamar que não estou disponível para integrar ou para
colaborar com o PSD do Professor Cavaco Silva.
O meu "cursus" no C.D.S. é conhecido. Comecei como dirigente
de freguesia nos Olivais. Subi à Comissão Política no Congresso de Aveiro,
através de um combate de bases e de uma activa participação no Grupo de Ofir.
Integrei a primeira Comissão Directiva do Professor Adriano Moreira e, depois
do Congresso do Porto, continuei na Comissão Permanente.
Com o regresso do Professor Freitas do Amaral, depois de me libertar de
todos os cargos directivos que detinha a nível de base, acabei por requerer a
suspensão formal da militância, tendo combatido publicamente a direcção do
partido em vários escritos.
Sou agora obrigado a tomar uma opção depois do X Congresso. Ou
interromper a suspensão, regressando à militância; ou solicitar a disfiliação.
O novo Presidente foi meu camarada em muitos combates. Tenho por ele e
por alguns dos seus companheiros na directiva e na comissão política, dos
quais destaco o Fernando Pais Afonso e o João Luís da Mota Campos, sincera
admiração e muita estima, especialmente pela coragem e pelo desassombro. Do
mesmo modo, ligam-me aos Presidentes do Conselho Nacional e do Conselho de
Jurisdição laços de veneração e de respeito, profundos. Isto é, não seria
capaz de os combater publicamente, mesmo que usando de estratégia indirecta.
Acontece apenas que em política o que parece é. E o C.D.S. com o Manuel
Monteiro é a direita das muitas direitas de que eu não sou nem quero ser. É a
direita que entende a direita liberal, segundo as concepções restritas do
neo-liberalismo do Dr. Paulo Portas. É a direita que entende a direita
populista segundo a imagem do Engenheiro Abecasis, que nem sequer conseguiu
resistir nas urnas da urbe de Lisboa ao assédio do Partido da Solidariedade
Nacional. É a direita que entende a defesa da economia privada, segundo os
modelos de certa CIP e de certa CCP, a que vai de Nogueira Simões a Pedro
Feist. É a direita que assume uma visão restrita da conspiração entre
"avôs e netos", excluindo certas gerações trintonas e quarentonas
que nasceram para a direita entre o pós-salazarismo e o antes do PREC. É uma
direita burguesa demais para os pequenos-burgueses e citadina em excesso para
ruralões como eu. É uma direita muito esteticamente "yuppie" e
"neo-rockeira" que não gosta de plebeus "feios, porcos e
sujos", muito "terra a terra".
Por tudo isto é que o CDS corre o risco de assumir-se como o partido do
eixo "Lisboa-Cascais", com delegação na "Foz do Porto" e
outras tantas tentativas de imitação nas muitas discotecas da província.
Corre o risco de transformar-se no partido da "geração" de "O
Independente", tudo com óculos "Benetton", tudo com casaquinhos
do "Homem da Regisconta", tudo com as mesmas vestes da "geração
BCP". Corre o risco de assumir-se como o partido que tendo a má imagem do
"partido dos ricos", trata de aderir, através de todas estas opções
geracionais, mais estéticas e vivenciais do que políticas, às próprias
ideias dos ricos.
Trata-se,
evidentemente, de uma opção que pode ser benéfica em termos de dinamização
do partido, mas que, para mim, constitui uma flagrante violação daquilo que
considero o cerne da lealdade básica às minhas origens e às minhas concepções
do mundo e da vida.
Com efeito, aquilo que no "freitismo" era uma ameaça, acaba
por ocupar a central de comando da imagem do partido, em nome do
"anti-freitismo".
Portanto,
o "pai" do militante António Maria, em nome da corência, não pode,
de maneira alguma, identificar-se sociológica e axiologicamente com esta opção.
Para
mim, a democracia-cristã é uma axiologia a que adiro, em nome daquilo que
substancialmente me formou: o tradicionalismo consensualista português, de raiz
monárquica e institucionalista.
Sou, portanto, mais libertacionista do que liberal, reivindicando aquele
conceito tomista de justiça que a não reduz à justiça comutativa do animal
de trocas, antes exigindo a permanência vivificante da justiça distributiva e
da justiça social.
Neste sentido, não posso ser anti-socialista primário como os
neo-liberais. Bem pelo contrário: defendo que a democracia-cristã tem de
acentuar os valores da solidariedade e da justiça, na linha dos actuais
desenvolvimentos doutrinários de João Paulo II.
Condeno, pois, que um partido democrata-cristão, em 1992, caia na tentação
passadista dos alvores da revolução conservadora, tachteriana e reaganiana. Em
Portugal, a tal direita natural, tem instintos populistas e justicialistas e
alguns entusiasmos anti-plutocráticos.
Castrar tacticamente esta tendência das nossas forças vivas em nome de
um entendimento "liberalista" e quase "marialva" do conceito
de direito de propriedade, é não entendermos que o nosso
"proprietarismo" vem menos da revolução burguesa do século XIX, do
que da revolução alodial do minifundarismo medieval, onde mergulham os
"factores democráticos da formação de Portugal".
Porque adiro a esta concepção do mundo e da vida, tenho de me
posicionar contra os actuais defensores da religião secular da teologia do
mercado, protestantes demais para as minhas raízes.
E não me basta que alguns batam muito demo-cristianamente com a mão no
peito do pieguismo e do pietismo, porque, pelo menos, desde Luigi Sturzo que a
tal democracia-cristã é uma perspectiva política independente da sacristia e
dos muitos beatos que dela são satélites.
Traduzindo em miúdos estas doutrinarices, quero dizer ao Senhor
Presidente do CDS que sou daquela direita que está muito à esquerda do
marialvismo, do pietismo, do mercadismo e do proprietarismo e que quero ter as mãos
livres para poder votar na força política que seja mais fiel a esta concepção
do mundo e da vida. Isto é, se o CDS, como infelizmente temo, se desviar das raízes
dos movimentos católicos operários do século XIX e do solidarismo das mais
recentes encíclicas, não me repugna votar e defender publicamente um Partido
Socialista, se ele conseguir dar provas de fazer a síntese entre o humanismo
laico e o humanismo cristão.
É este o entendimento que tenho da direita dos valores, por oposição
à direita dos interesses. E porque considero que a política
tem de ser marcada pela preponderância da ética da convicção sobre a
ética da responsabilidade, não sou capaz de ceder aos neo-maquiavelismos e
neo-realismos que adoram o bezerro de ouro do utilitarismo e do pragamatismo.
Perante estas minhas angústias de fidelidade axiológica e sociológica,
a razão e as convicções apontam-me, como única via de superação do
impasse, a desfiliação deste CDS. Contudo, o coração, as amizades e o
passado comum aconselham-me que dê um tempo de espera e que diga tudo o que
penso ao jovem Presidente.
Com efeito, devo-te a lealdade de só sair do Partido, depois de uma
conversa pessoal. E, desde já, prometo que não instrumentalizarei publicamente
essa saída, nomeadamente pela publicação de qualquer texto na comunicação
social ou através de uma qualquer controlada fuga de informação.
Também não colaborarei em qualquer subversão interna, pela constituição
de grupos à margem da vida institucional do partido, como vai ser inevitável
face à não existência de oposição organicamente representada, circunstância
que representa para a tua liderança um dos principais calcanhares de Aquiles.
Peço-te, pois, uma audiência, para, de homem para homem, nos
definirmos. Se considerares que não vale a pena, até podes esquecer-te de a
marcar, pelo que serei obrigado a considerar que tacitamente tens conveniência
em livrar-te de pessoas com o meu perfil, consumando, deste modo, a minha
desfiliação no trigésimo dia posterior à recepção desta carta.
Com saudações democratas-cristãs
Caxias,
de Fevereiro de 1993
Meu caro Dr. Manuel Monteiro,
Presidente do actual CDS/PP e
legal sucessor de uma instituição
que foi apenas chamada
Partido
do Centro Democrático Social:
Um dos problemas socialmente existenciais do cidadão subscritor desta
carta prende-se com a circunstância do mesmo ainda estar simbolicamente
inscrito numa instituição designada Partido
do Centro Democrático Social. Esse problema pretende ser resolvido com esta
carta-ruptura.
Com efeito, o cidadão em causa pretende exercer um dos seus direitos
fundamentais que é pedir a desfiliação do CDS, invocando o princípio geral
de direito sic rebus, sic stantibus. Não
o faz, contudo, à maneira dos divórcios litigiosos, onde o amor-ódio costuma
embrenhar-se em pretextos de faca e alguidar, sejam decisões congressistas ou
actos pessoais de ingratidão da liderança mais recente.
Com efeito, a minha relação com o CDS continua a ser a de pleno amor
institucional, só que esse amor pertence a um passado que já não há, pelo
que não encontro, no arsenal individual de frustrações que actualmente tenho
disponível, nenhuma bojarda de ódio susceptível de ser arremessada aos
actuais detentores do poder no partido.
Antes pelo contrário: compreendo-os, respeito-os e até tenho por eles
uma sincera estima. Só que o actual presente do partido, bem como o futuro que
lhe vislumbro, nada tem a ver com as minhas crenças e as minhas concepções do
mundo e da vida.
Por outro lado, não estou desiludido da luta política, dado que a mesma
me continua a entusiasmar e também
não renego ainda poder vir a desenvolver certa sociologia da esperança nesses
domínios.
Tudo isto para dizer, muito formalmente, que, ao sair, não o quero
fazer de mal com o Dr.Manuel Monteiro e de mal com aqueles que agora fazem a
imagem e o combate do que até hoje foi, ainda que apenas simbolicamente, o meu
partido.
Quero também acrescentar o seguinte: porque de forma não nominalista,
mas substancial, continuo democrata-cristão, e cada vez mais democrata-cristão,
tenho de ser cada vez menos liberal e cada vez mais libertacionista, cada vez mais
nacionalista e cada vez menos soberanista, cada vez mais tradicionalista e cada
vez menos conservador. Logo, não posso aceitar o maniqueísmo dos que falam
numa fronteira mítica entre capitalismo
e socialismo, entre o Estado
e a Sociedade e entre Portugal
e a Europa.
Porque depois deste globalismo do fim da guerra fria e da integração na
Comunidade Europeia, nem libertar pode ser construir o liberal com o martelo da
injustiça nem conservar o que está pode confundir-se com conservar o que deve ser. Logo, quem não entende que a justiça é
o novo nome da igualdade e a continua a reduzir à comutação, esquecendo que a
mesma tem também de ser justiça distributiva e justiça social, está a
admitir que pode haver liberdade sem
igualdade e libertação individual sem solidariedade, o que pode ser de muita outra doutrina, mas não é
certamente da democracia-cristã.
Além disso, no plano tribal, não só estou, sociologicamente, na outra
margem, face à imagem das forças vivas do actual CDS, como, no plano
geracional, perdoem-me a ironia,
pertenço àquele mundo trintão e quarentão contra o qual, muito
freudianamente, se revolta o PP, quando tenta fazer uma pretensa conspiração
entre os avós e os netos.
Isto é, quero tentar comprometer-me, muito evangelicamente, com a
memória do sofrimento, em vez de alinhar como homem
de sucesso, e prefiro assumir a condição de pai, em aliança com os
filhos, sem esquecer os pais dos meus pais e os filhos dos meus filhos.
Um último parágrafo para dizer que não é o cavaquismo nem o
anti-cavaquismo que estão por trás destas linhas. Nenhum dirigente, e, muito
menos, nenhum insigne apoiante, do actual CDS tem legitimidade política ou
pergaminhos morais para me poder acusar nesse domínio, dado que os denunciei
quase in ovo, frontal e publicamente,
e não me vejo a desaguar no oceano de águas turvas do situacionismo sistémico.
Enquanto não surgirem novas alternativas e se não modificarem as
circunstâncias, continuarei o meu regime de votação sob o cavaquismo: a
abstenção consciente ou o voto moral no partido que efectivamente liderar a oposição global
à decadência de Portugal, pela democracia, pela justiça e pela liberdade da
pessoa.
Com sincera admiração e velha camaradagem
José
Adelino Maltez,
até à subscrição supra, dominus
do cartão nº 110603136 do CDS
Caxias,
18 de Dezembro de 1992
Exª Senhor Director de O Independente
(ao cuidado da jornalista Constança da Cunha e Sá)
Mais uma vez, graças à irónica pena da jornalista Constança da Cunha
e Sá, uma boca desgarrada da minha autoria, transportada por um terceiro, muito
"habitué" nestas intermediações sobre a minha apagadíssima figura
de ex-dirigente do CDS, surge nas "independentes" páginas de
acompanhamento da vida interna do partido em causa.
Para uma adequada informação, gostaria de acrescentar:
-conservo a filiação no CDS, em cartão assinado em 1983 pelo Dr.José
Vieira de Carvalho, mas, desde 1988, que pedi, ao Professor Freitas do Amaral, a
formal suspensão da militância, atitude que não alterei com a subida ao poder
da actual direcção;
-confirmo ter-me passeado pelo último comício, onde revi alguns amigos,
mas onde nem por isso me converti ao actual estado de coisas de um partido, onde
há quatro anos não tenho intervenção;
-conforme as cartas que tenho mandado ao Dr.Manuel Monteiro, continuo
radical quanto aos desvios do partido face à perspectiva justicialista da
democracia-cristã e, como também sou um radical europeísta (até sou o autor
da proposta de modificação dos estatutos do partido que o fazem formal
defensor da "união política da Europa"), não participei na última
brincadeira referendária, até porque, em vez do não
ou do nim face a Maastricht, optaria por um claro sim, conforme o tenho demonstrado em escritos, entrevistas e outras
intervenções públicas que, apesar do público restrito que lhe acedeu, não
deixam de ser públicas e bem anteriores ao referendo do CDS e à cimeira de
Edinburgo.
Isto é, conservo-me como um radical democrata-cristão que considera
possível a conciliação de um radical nacionalismo português, com um radical
europeísmo, dado considerar que o "dividir para unificar" da construção
comunitária poderá afectar potências herdeiras de impérios europeus
frustrados, mas não antiquíssimas Nações-Estado como a portuguesa,
necessariamente solidária com todas as nações sem Estado de uma Europa que eu
gostaria e hei-de ver internamente descolonizada, desde a Ilha do Corvo até
Vladivostoque.
A boca que me atribui e que não renego é tão radical na sua ironia
quanto a crónica da senhora jornalista. Se outra ironia, a do destino, nos
tivesse feito cruzar em tal comício, até poderia acrescentar à mesma
jornalista-cronista que, em tal acontecimento social, só bati palmas quando o
Manuel Monteiro fez justiça ao Narana Coissoró.
Se o CDS continuar nesta senda, em eficaz aliança com certos opinion
makers de O Independente,
desejarei sinceras felicidades pessoais ao jovem e corajoso líder, mas,
parafraseando o Cardeal Retz, serei obrigado a dizer que, para permanecer
radicalmente fiel às minhas crenças - democratas-cristãs, nacionalistas e
europeístas - e à estratégia que, enquanto dirigente do CDS, entre 1985 e
1988, sempre defendi, terei de votar noutro partido: naquele que menos possa
trair as minhas concepções do mundo e da vida. Apenas espero pelo próximo
Congresso do CDS para resolver o problema do cartão nº 110603136 que, apesar
de tudo, gostaria de conservar, mesmo com violações da disciplina partidária.