QUEQUES, FERRO VELHO E MIGUELISTAS

 

A nossa “rentrée” política deu os seus primeiros passos cenográficos, com a esquerda a ceder ao ritmo da agenda política lançada por Paulo Portas, sua excelência o senhor ministro da defesa nacional, e número três do executivo de uma coligação cujo nome de baptismo ninguém invoca. Esse mestre da teatrocracia que nos rege, que, nas suas comunicações discursivas, previamente ensaiadas, nunca dá ponto sem nó, decidiu provocar os líderes oposicionistas para uma cena de fantasmas, ao fingir uma direita que já não há, para que o “gauchisme” dos Ferros e Carvalhas caísse na esparrela de exibir verbalmente uma esquerda que também já não há.

 

Sua excelência o ex-ministro dos velhinhos e reformados, pondo a voz tão grossa como o corpo, logo caiu na armadilha de transformar Portas no seu adversário directo, para gáudio do dr. Barroso. E usando um vocabulário típico do PREC antediluviano, chamou a Portas o grande chefe dos trauliteiros miguelistas. Mas nem os liberais que sofreram das agruras dos caceteiros de D. Miguel ficaram satisfeitos, nem os republicanos que, em 1919, resistiram à Traulitânia, vieram em seu auxílio.

 

Sem ser por acaso, eis que o colega de Ferro na fundação da Intersindical, o editorialista do “Notícias da Amadora” no crepúsculo do marcelismo, um tal Carlos de São Pedro do Sul, retomando a linguagem de Mário Castrim, repetiu o epíteto miguelista e, muito pasteleiramente, acrescentou-lhe, a expressão “queques”, situando os inimigos numa “linha” imaginária, que não é a de Torres nem de Cascais, mas a de Sintra.

 

No dia seguinte, o Dr. Ferro, não satisfeito, deu contornos finais à ameaça fascista, clamando contra a circunstância de um alto dirigente do partido de Portas ter vindo defender a restauração da pena de morte.

 

A esquerda que não há, nessa sua doença infantil a que Lenine chamou esquerdismo, continua assim a precisar de um inimigo imaginário para poder dar sinais de vida.

 

Desta forma os complexos freudianos da genética política do Dr. Ferro cometem o erro crasso de entregar todo o vasto espaço do centro-esquerda a um vazio que só aproveita ao Dr. Barroso. Coitado do PS, se não perceber que só pode voltar ao poder, como o fizeram Soares e Guterres e como o têm feito todos os partidos europeus da mesma família política!

 

Com efeito, para desgraça do “gauchisme”, o Dr. Portas, que tem muitos defeitos, não se assemelha ao senhor Le Pen. A esquerda, que o continua a transformar na besta do Apocalipse, comete o mesmo erro que a parente francesa, quando há um quarto de século, disse coisas idênticas de Jacques Chirac, para, mais recentemente, o ter que sufragar como o defensor do republicanos contra o avanço da extrema-direita.

 

Será que a mentalidade Maio 68 do Dr. Ferro, influenciada pelos “queques” trotskistas, não percebe que num só dia, o gaullismo de Malraux e Aron levou para as ruas de Paris bem mais milhões que todos os adeptos da revolução perdida tinham conseguido em nome do “antes vermelhos que mortos”?

 

A tal rua, em democracia pluralista, não é, com efeito, propriedade do esquerdismo. Basta também recordar o Verão Quente português, onde o Partido Socialista, quando ainda não tinha a militância do Dr. Ferro, se juntou aos democratas de direita, para lutar contra a proibição do jornal República e para tudo culminar nessa grandiosa manifestação da Fonte Luminosa que marcou a derrocada do gonçalvismo. Nessa altura, alguns “queques” do primitivo MES ainda andavam nas mesmas “linhas” do Dr. Carvalhas, apesar de contarem com a simpatia do ministro mercelista Silva Pinto, futuro militante do PS.

 

Em segundo lugar, importa salientar que a abolição da pena de morte é uma conquista do liberalismo monárquico e não da esquerda jacobina. Até foi esta que inventou a guilhotina, ao mesmo tempo que praticou o genocídio da Vendeia e, segundo consta, os regimes herdeiros deste “gauchisme”, mantiveram-na até ao último quartel do século XX.

 

Não consta que os pais-espirituais de tal “gauchisme” tenham denunciado as purgas do estalinismo ou que se tenham revoltado contra a reintrodução da pena de morte nos regimes africanos de expressão portuguesa, depois de 1975.

 

A esquerda que inventou o Terror tem de perceber que o mesmo só foi superado, não pelo Contra-Terror dos tais miguelistas, mas pela tolerância da moderação liberal. A mentalidade pidesca, a que assassinou Humberto Delgado em 1965, não foi vencida pelo COPCON, donde emergiram as FP25, mas pela paz civil estabelecida entre a esquerda e a direita, depois do 25 de Novembro de 1975, com Melo Antunes e Ramalho Eanes, Mário Soares e Sá Carneiro.

 

O “gauchisme” que queria “partir os dentes à reacção” e “mandar os fascistas para o Campo Pequeno”, e contra o qual sempre reagiu o Partido Socialista, quando era atlantista, europeísta e defensor do pluralismo, foi então bem simbolizado por um extraordinário professor de direitos da personalidade que tive em Coimbra, o qual, se durante o Estado Novo sempre havia sido o campeão da denúncia da pena de morte, eis que, depois de 1974, quando assumiu altas funções de Estado no gonçalvismo, logo apareceu a apoiar publicamente o MPLA quando este restaurou a pena de morte.

 

Se a esquerda portuguesa persistir nessa guerra santa contra os fantasmas, a política portuguesa não terá a necessária emenda. Nos outros tempos do PREC foi a fronteira entre os que eram pela revolução e os que estavam contra a revolução. O muro chamava-se, então, muralha de aço de um tal companheiro Vasco que declarava, monomaniacamente, que quem não estava por ele estava contra a gloriosa marcha do comboio da história.

 

A velha esquerda da pré-revolucionária oposição democrática, dita da unidade antifascista, se, durante os primeiros tempos do PREC, ainda festejou os primeiros de Maio do unitarismo, pouco a pouco, começou a perceber que as fronteiras do essencial passavam no seu próprio seio.

 

Só a partir da questão da unicidade sindical e, muito particularmente com o caso "República", é que o soarismo quebrou o cordão umbilical que o prendia ao sincretismo genético da dita unidade antifascista e estabeleceu as novas fronteiras da pós-revolução: a liberdade, à maneira ocidental, das democracias burguesas, e os socialismos revolucionários marxistas-lenistas ou marxistas-terceiro-mundistas.

 

Hoje, o dr. Ferro e os respectivos companheiros continuam a sofrer as angústias existenciais da respectiva geração. Uma esquerda que para se afirmar tem necessidade que exista um determinado inimigo de direita, para que as respectivas premissas possam atingir uma qualquer racional conclusão. E quando ele não existe inventa-se. . .