APELO À MEMÓRIA
Numa breve conversa com a editora-executiva desta revista, minha antiga aluna de ciência política, fui desafiado a passar a escrito algumas impressões sobre a minha juvenil passagem pelos quadros tecnocráticos do sector estadual do controlo do comércio, na era pós-revolucionária, posterior a 1976. Assumindo o compromisso, e sem entrar em pormenores de subjectivismo memorialista e de literatura de justificação, não posso deixar de assinalar o silêncio que continua a marcar a história do processo estadual de controlo do sector comercial. Apenas quero dizer que foi dessa minha experiência de perito burocrata que aprendi a ser liberal e que talvez tenha percebido as causas que ainda levam o sector do comércio a ter a injusta imagem do parente pobre da nossa economia. Mas não é desta que irei contar algumas histórias sobre a luta pela liberalização dos preços e pelo estabelecimento de uma lei da concorrência. Por agora, tentarei alguma teorização de experiência feita, sem recriminações nem elogios sobre figurantes de corredor ou altos decisores minsiteriais.
Com efeito, o enganador slogan que qualifica Portugal como um país de comerciantes faz-nos esquecer que o sector do comércio, enquanto categoria sócio-profissional, sempre foi o mais desprotegido dos grupos de interesse da chamada autonomia da sociedade civil, tanto por causa dos concorrentes, como, sobretudo, por culpas próprias, dado que nunca soube transformar as vulnerabilidades da fragmentação dos agentes económicos em potencialidades mobilizadoras. Na verdade, a existência de um arquipélago multitudinário de pequenas e médias empresas comerciais nunca pôde mobilizar o sector como força viva capaz de actuar continuadamente como eficaz grupo de pressão. Os comerciantes portugueses, apesar de unirem-se quando ameaçados por um adversário comum, parecem não conseguir aguentar a capacidade de mobilização quando desaparecem os chamados estados febris da sociedade e o sector talvez ainda não tenha sido capaz de entender que a participação no sistema político de uma democracia pluralista radica num efectivo processo de institucionalização de conflitos, onde não bastam apenas os ocasionais lobbies dos momentos de crise, com conversas entre gabinetes ministeriais a apelos aos passos perdidos.
Mas mais do que as culpas próprias ou dos concorrentes, talvez seja de assinalar o ambiente global que desconfiança que multissecularmente tem ameaçado o comerciante, quando este é entendido como simples intermediário entre o produtor e o consumidor que corre sempre o risco de perder cidadania económica em épocas de pretensas batalhas da produção. Esta mentalidade, com raízes longínquas na nossa cultura ocidental, levou sempre a que os poderes estaduais em épocas de crise tratassem de controlar burocraticamente a actividade comercial.
Basta recordar-nos das teorias medievais do justo preço que, depois de considerarem o juro como pecado e como crime, chegaram a considerar o comércio como mera actividade de venda do tempo, coisa que só a Deus pertenceria. Tolices teóricas fundamentalistas que, no entanto, tiveram força de lei em Portugal a partir de meados do século XVI e que até levaram a que o nosso primeiro banco apenas se tivesse implantado depois de 1820...
Mas não são essas antiguidades que agora quero evocar. Recordo apenas que no Portugal deste nosso século XX, durante mais de meio século, desde 1922 a quase meados da década de oitenta, estiveram em vigor disposições legais que criminalizavam os lucros excessivos para o sector comercial, estabelecendo margens máximas para os retalhistas e os grossistas. O primeiro diploma dessa série, estabelecido em plena crise do primeiro pós-guerra, por governos democráticos e republicanos, manteve-se em vigor durante todo o salazarismo e deu cobertura ao PREC e à pós-revolução, apenas sendo enterrado com a entrada em vigor com as leis da concorrência, estabelecidas quase cem anos depois do Sherman Act norte-americano.
Na verdade, ainda em 24 de Julho de 1957, num momento próximo do Tratado de Roma, por cá ainda se emitia um decreto-lei nº 41 204, onde, além de consagrar-se o princípio do tabelamento, se mantinha o estabelecimento de margens máximas de lucro: margem de lucro líquido superior a 10 por cento nas vendas por grosso e de 15 por cento nas vendas a retalho... E em 1974, um diploma do I Governo Provisório, emitido em 10 de Julho, fez acrescer ao processo um regime de global controlo estadual dos preços que, marcado pelos modelos franceses do pós-guerra, serviu de cobertura para todo o posterior intervencionismo gonçalvista e pré-europeu, ao mesmo tempo que continuávamos enredados nas teias do pão político, nessa ilusão proteccionista do nacionalismo económico que só com um dos governos da Aliança Democrática começou a ser desmantelado.
Esta variante portuguesa da desconfiança secular dos poderes públicos face ao comerciante talvez se compreenda se notarmos que grande parte da nossa política económica deste século teve que responder à variante do abastecimento público, àquilo que antigamente se chamava de questão das subsistências. E talvez não tenha sido por acaso que os dois grandes trabalhos universitários que levaram António de Oliveira Salazar ao professorado versaram precisamente A Questão das Subsistências e O Problema do Trigo e que o mesmo, antes de ascender à pasta das finanças, foi um dos peritos chamados para tratar da matéria em 1923 no Congresso das Associações Comerciais e Industriais...
Por outras palavras, o sector do comércio sempre foi vítima de políticas económicas voltadas essencialmente para o controlo dos abastecimento e dos preços, em nome do proteccionismo industrial ou agrícola, através de defensivos mercantilismos. Porque nestes modelos de resistência, todos podem ter liberdade económica menos os comerciantes, condenados à tutela.
Junte-se a isto a nossa tradicional tendência para a aliança banco-burocrática, de que falava Antero de Quental, e perceberemos como é difícil fazer implantar o espírito da mão invisível aos assuntos domésticos. A tal aliança de que falava Quental sempre fomentou formas de socialismo de Estado e zonas de economia mística que ora clama pela liberdade económica quando a actividade está a dar lucro, ora pressiona no sentido do proteccionismo e dos subsídios quando a mesma dá prejuízo.
O alastramento destes preconceitos tem também a ver com a falta de inciativa que o sector comercial parece assumir quanto a interpretações globais da própria evolução histórica portuguesa, dado que raramente se salienta o esforço do sector no sentido da defesa da liberdade em momentos fundamentais da nossa história contemporânea. Parecemos esquecer-nos dos homens da revolução de 1820, muito ligados a sectores comerciais, e da própria biografia de alguns dos marcantes criadores das instituições liberais. E quase desconhecemos o esforço de muitos políticos da I República que tentaram criar uma alternativa ao situacionismo burocrático do partido de Afonso Costa. Tudo parece diluir-se nas teias da chamada União dos Interesses Económicos, quando falta repor a verdade histórica na sua totalidade, onde, por exemplo, o papel de um dirigente do associativismo comercial chamado Moses Bensabat Amzalak, por acaso um dos fundamentais reitores da minha Universidade, continua a ser negligenciado.
Hoje, quando
as teias da globalização e da integração europeia já nos libertaram
internamente da tentação controleira do pão político e da economia
de guerra, talvez seja urgente repensarmos uma história silenciada que também
tem ocultado velhas reflexões teóricas de economia política de alguns autores
lusitanos ligados ao sector comercial, como os trabalhos de Ferreira Borges. E não
vale a pena pedirmos a marxistas arrependidos depois de 1989 que se preocupem
com este manancial liberdadeiro. É o apelo que deixo aos homens do
associativismo comercial: não se esqueçam da vossa própria contribuição
histórica para a actual liberdade portuguesa. Glosando os ditos de um antigo
trabalhador do sector dos serviços, publicados numa revista profissional do comércio,
chamado Fernando Pessoa, se foi um defeito a liberdade económica se ter
coordenado pelo intervencionismo, eis
que continua a ser um defeito a eventuar incoordenação da liberdade económica
pela selva de certo laxismo, provocando a constituição de inevitáveis
economias paralelas, onde paga o justo pelo pecador.