A autonomia das regiões como forma de reforço das liberdades nacionais

A polis só pode ser entendida como a tensão dialéctica entre o poder e a liberdade, tal como o direito só pode conceber-se como o diálogo da justiça com a força. A polis só pode ser entendida como o espaço de diálogo entre a decisão e a participação, entre a governação e a cidadania, como a exigência de unidade na diversidade, como a harmonia dos discordes.

Este entendimento pluralista da polis, este perspectivar a polis não como uma sociedade, mas como um mosaico de sociedades. De sociedades imperfeitas, ou consociações simples ou privadas, e de sociedades complexas, já de carácter público. Implica que a entendamos como um mosaico de espaços de cidadania, isto é, de espaços de participação política na decisão. Como um macrocosmos de macrocosmos e microcosmos políticos e sociais.

Só assim pode superar-se a tentação corporativista, para a qual cada grupo tem uma posição pré-definida pelo a priori de um decreto no modelo de participação na decisão e onde o próprio conceito de representação obedece a um regulamento estatuidor. Os grupos, as consociações, para o corporativismo, são sempre concebidos como corpos intermediários entre o indivíduo e o cume do Estado, negando-se o individualismo, a espontaneidade da cidadania e comprimindo-se a política que deixa de ser entendida como um espaço de conflitualidade criadora, de luta entre os grupos, com a consequente negociação e troca.

Porque o essencial na política é sempre o afrontamento, o ajustamento, a dinâmica, através de constelações que se fazem e desfazem e de uma pluralidade de centros de decisão.

Só assim pode superar-se a tentação jacobinista, simultaneamente individualista e estatista, onde o individualismo se transforma num cidadanismo estatizante que proibe a existência de qualquer espaço de participação política entre a individualidade e a estadualidade e onde também se nega a hipótese de um político supra-estadual.

Se o sistema político tem de ser entendido como um sistema autónomo e aberto, como um sistema que tem relações de troca com o seu ambiente, não pode deixar de ser concebido como autónomo e aberto tanto face aos subsistemas sociais do seu interior, como face aos subsistemas políticos, também marcados pela autonomia e pela abertura que o integram.

Isto é, o espaço do político não pode ser monopolizado pelo estadual nem ser subjugado pelo soberano, dado que no chamado infra-estadual também circula o político. Mesmo quando o estadual coincide com o nacional, o sistema político não deixa de ser um complexo de sistemas políticos e de subsistemas sociais.

A região, dentro do espaço estadual, também é um sistema político, dotado do seu próprio circuito de decisão, não podendo ser reduzida ao simples circuito administrativo. Em certo sentido, é tão sociedade perfeita quanto o próprio Estado. Pode não ter jus legationis, jus tractum, jus jurisdictionis e jus bellum, mas tem povo, território e poder político, tem um poder de decisão que já não é apenas técnico, pois que decide sobre fins, sendo dotada dos meios necessários para os alcançar. Isto é, tem liberdade, na escolha de fins, e poder para os executar.

A Autonomia das Regiões como Forma de Reforço das Liberdades Nacionais

Paráfos finais

Quem advogar uma visão estratificada da organização do político, onde cada estrato seja sempre uma manifestação do indivíduo, ao contrário do que defendia o corporativismo; quem advogar que cada estrato não pode diluir-se piramidalmente no todo soberano, ao contrário das teses jacobinas, tem de repudiar a perspectiva do político como o unidimensional e o homogéneo e tem de defender a necessidade de cada estrato poder desenvolver as respectivas potencialidades.

O reforço das autonomias, neste sentido, não é o contrário das liberdades nacionais. Com uma nação que não se meça pelo Estado-Aparelho-de-Poder, mas sim por uma metapolítica de identidade que pode não coincidir com os Estados a que chegámos. Com a necessidade de uma comunidade de significações partilhadas, com um povo reunido por hábitos complementares de comunicação.

Porque uma só nação pode ainda hoje estar repartida por vários Estados. Porque uma só nação pode ter no seu seio várias regiões. Porque nem sempre as regiuões coincidem com as nações.

Nação é sobretudo comunhão em torno das coisas que se amam, é civitas amoris, é o tecer espontâneo de laços no plano das articulações laterais e verticais por onde se gera uma polis.

Direi que talvez existam realidades políticas diferentes dos Estados Nações, dos Estados que querem, através do aparelho de poder, construir nações. Talvez existam realidades políticas que são o preciso inverso, realidades políticas a que chamaremos Nações- Estados. Pode haver nações que constituiram Estados.

Direi que Portugal é uma dessas raras entidades de Nação-Estado que, portanto não tem que temer a plena liberdade das suas regiões, dado que elas, felizmente, não constituem nações sem território, povos sem Estado ou pretensas nacionalidades.

Por aqui pode passar o consenso, mesmo que se chame federação. Por aqui pode passar a divisibilidade da soberania, a descolonização e a pluralidade das identidades. Não continuemos a traduzir em calão juridicidades feitas para outras realidades, pensadas para outros medos, sofridas por outras culturas.

Por isso é que alguns teóricos do regionalismo tecnocrático, desse que é filho do conúbio entre a planificação e a a vulgata do modelo de construção europeia, nos acabam por considerar um país totalmente atípico (S. Cassese), coisa que bem poderia ser dito, de forma totalmente inversa, porque, de facto, sendo o modelo do político mais estável de toda a história europeia, talvez soframos dessa super-identidade dos que não sofrem dos traumatismos da questão das nacionalidades.

 

Como dizia Benjamin Constant, um dos inspiradores da geração que lançou as sementes frustradas do autonomismo de 1895, o patriotismo só existe pela afeição cheia de raízes que prende o povo às localidades e constitui o exacto contrário daquela ideia dominante de Estado transformada numa abstracção, numa idiea indefinida e inconsciente geradora de um patriotismo vago e infecundo.

Como repetia Eça de Queirós, importa superar essa ideia de centralização onde se destrói a vida parcial e onde se forma no centro outro pequeno Estado que é a concentração das forças, das actividades, das concorrências, onde o governo é um grupo exclusivo de homens que parecem ter a virtude oculta, o segredo, a ciência misteriosa de governar; é uma magistratura suprema enfeudada numa certa família de chefes, que a ninmguém deixam as insígnias sagradas e a púrpura distintiva. Só eles são os que concebem e os que pensam, os que dão a força e a luz.

Porque, conforme o mesmo Constant, a variedade é a organização, a uniformidade é o mecanismo; a variedade é a vida; a uniformidade é a morte.

 

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Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.