A colectânea de textos de Carlos Abreu Amorim, que tenho a honra de prefaciar, comete o pecado de tanto rejeitar o politicamente correcto da esquerda cultural como de não alinhar com a direita louvaminheira que ingressou na fileira do situacionismo.
Daquele situacionismo, onde o máximo denominador comum é pensarmos que um bom pai de família deste alargado Bloco Central que nos vai decadentizando tem de ser alguém com o chamado coração à esquerda, mas com a razão à direita, de maneira que possa pontificar a vontade de poder do aparelhismo partidocrático.
Talvez não seja por acaso que o autor, ao levantar a bandeira liberal, a faz rimar com o Porto, num país onde quase todos esquecem que a expressão liberal, apesar das inequívocas origens doutrinárias anglo-americanas e setecentistas, teve um baptismo hispânico.
Começando pelo liberal Benjamin Constant, importa recordar que o patriotismo só existe pela afeição cheia de raízes que prende o povo às localidades e constitui o exacto contrário daquela ideia dominante de Estado transformada numa abstracção, numa ideia indefinida e inconsciente geradora de um patriotismo vago e infecundo. Porque, como repetia Eça de Queiroz, importa superar essa ideia de centralização onde se destrói a vida parcial e onde se forma no centro outro pequeno Estado que é a concentração das forças, das actividades, das concorrências, onde o governo é um grupo exclusivo de homens que parecem ter a virtude oculta, o segredo, a ciência misteriosa de governar; é uma magistratura suprema enfeudada numa certa família de chefes, que a ninguém deixam as insígnias sagradas e a púrpura distintiva. Só eles são os que concebem e os que pensam, os que dão a força e a luz.
Porque, conforme o mesmo Constant, a variedade é a organização, a uniformidade é o mecanismo; a variedade é a vida; a uniformidade é a morte.
Aliás, foi só depois da célebre Revolução de Cádis de 1811, a principal matriz emocional dos nossos vintistas, que, em Inglaterra, começou a aparecer a designação de british liberales que, pouco a pouco, foi denominando o velho partido wigh, o qual, a partir de 1840, passa a considerar-se como Liberal Party.
Importa assinalar este pequeno pormenor histórico para lembrar a todos os que continuam embalados na vaga de um doutrinarismo liberalista, por vezes demasiadamente estrangeirado, que há também, entre nós, enraizadas tradições liberais. Referimo-nos não apenas ao liberalismo institucional que vigorou em Portugal de 1834 a 1926, mas também ao fundo liberal dos factores democráticos da formação de Portugal que marcavam a nossa Constituição histórica anterior ao absolutismo, bem como aos próprios rastos liberais que permaneceram no regime do Estado Novo e que o desirmanaram dos totalitarismos fascista e nazi, dado que não foi possível comprimir a plurissecular democracia da sociedade civil.
Porque nunca um homem se pode banhar duas vezes nas águas do mesmo rio. A não ser os que não sabem reconhecer que há tantas maneiras de interpretar, que é difícil, qualquer que seja o assunto, um espírito engenhoso não descobrir o que lhe convenha.
Preocupante é, contudo, a circunstância de se manterem os subsistemas de Corte gerados por alguns pretensos super-senadores da República, esses grupos de pressão multiformes que se desdobram pelos bastidores da política, da cultura e da educação. Mais preocupante ainda será a hipótese de todos ou alguns desses fantasmas se federarem numa espécie de sociedade de egoístas, juntando anteriores irmãos-inimigos.
Na verdade, o chamado sector intelectual da Pátria Portuguesa vive uma curioso decadentismo, onde os principais teóricos do situacionismo, isto é, os canalizadores da opinião pública instalada nos grandes meios de comunicação oficiosos, começam já a falar em crise de regime, dado que o actual situacionismo segue a máxima do empirismo organizador de Salazar, segundo o qual o essencial do poder é procurar manter-se, na senda do dito de Mussolini, para quem o dever de qualquer regime é o de durar.
Por mim, prefiro seguir a velha lição liberal de Luís Mousinho de Albuquerque, para quem o princípio único de toda a Política é a Moral. Finanças, interesses materiais, formas de Governo, tudo é adventício, tudo é subordinado a esse princípio único. Tudo são entidades secundárias, tudo são acessórios do edifício da existência social. O valor fundamental é a independência portuguesa e o carácter nacional, importando servir o Estado...o Estado, a República...este dever todo moral, todo patriótico.
Seguindo tal exemplo, importa ser excêntrico a todas as parcialidades, a todas as exclusões, a todas as intolerâncias, para poder ser concêntrico com a nação, para que a nação seja governada para a nação e pela nação. Quer ser governada no interesse de todos, e não no interesse de alguns; quer ser governada pela influência colectiva de todos, e não pela influência exclusiva de uma parcialidade; quer o concurso de todas as virtudes, de todos os talentos, de todas as probidades para presidir aos seus destinos, sem distinção de cores, sem exclusões partidárias.
Por isso, há que assumir uma bandeira nacional, que seja excêntrica a todas as paixões, a todos os ódios, a todas as vinganças, em nome do desejo do povo que não aspira à governança, mas sim à felicidade. Por um governo representativo, não em nome, mas em realidade. Por um regime, verdadeiro e sincero, para que a nação seja governada com justiça, com verdade e com amor; porque mal dos povos que não são governados com amor, mal das nações que são regidas sem sinceridade.
Podem as nações ter a faculdade de renascer pela reacção contra a força; mas da gangrena moral ninguém ressurge, não é essa gangrena uma das fermentações tumultuosas que transformam uns produtos em outros; é a fermentação pútrida, que destrói radicalmente o ser orgânico, que desagrega, que dispersa os átomos componentes.