DA CIDADE E DAS SERRAS

Artigo publicado em 6 de Julho de 1989

 

 

Os sangrentos acontecimentos de Barqueiros e a indigitação do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, para sucessor autárquico-político do Engenheiro Nuno Abecasis, constituem, sem dúvida, os principais factos políticos deste começo do verão. Temos, de um lado, a incompreendida revolta do país rural, descendente em linha recta da Maria da Fonte e ainda mobilizável pelo tocar dos sinos a rebate na torre da paróquia; temos, do outro, país urbano, conservadoramente burguês, muito catedrático ou muito engenheiral, com restos de marqueses e muitas festas "jet set", que costuma ditar, através das leis e dos jornais, os caminhos da modernidade e das reformas, emocionando-se com o povo, através de algumas visitas às barracas ou à Feira do Relógio.

É, no fundo, o reflexo da nossa secular antinomia entre a cidade e as serras, particularmente sentida no conflito entre miguelistas e pedristas, impropriamente designados como absolutistas e liberais pela historiografia dos vencedores, mas que, desde sempre, tem marcado os diversos regimes políticos portugueses.

Se o país urbano e burguês ganhou a referida guerra civil de 1828-1834, venceu a Maria da Fonte, com o recurso a tropas estrangeiras, implantou a República, conquistando Lisboa e transmitindo o facto à província através do telégrafo, e comandou o PREC de 1974-1975, também é verdade que, de vez em quando, o país rural costuma estragar o esquema e impulsionar algumas alterações estruturais no tal processo. Noutras ocasiões , ficamos pela simples revolta individual de alguns cidadãos que, cansados da vida, decidem partir para os mais variados Vales de Lobos, não pactuando com a hipocrisia institucionalizada nem cedendo à frustração.

Depois do 25 de Abril de 1974, esses sinais de revolta foram particularmente sentidos com a resistência antigonçalvista de 1975, personificada tanto em Francisco Sá Carneiro, o aristocrata de Entre-Douro-e-Minho, como, de certo modo, em António Ramalho Eanes , o austero militar de Alcains. Depois disso, importa também sublinhar tanto ratificação popular da ascensão ao poder de Aníbal Cavaco Silva, o dito homem de Boliqueime, como a episódica liderança do transmontano Adriano Moreira, no CDS.

A antinomia em causa, apesar de ter algumas manifestações na esquerda, costuma ser mais evidente a nível da direita e, nas actuais circunstâncias, é particularmente sentida no interior do PSD. Lembremo-nos da distinção feita pelo Professor Sousa Franco entre os ditos rurais, então adeptos da emoção sá carneirista, e os ditos urbanos, que se diziam pela verdadeira social-democracia à alemã, segundo os modelos de Helmut Schmidt. Recordemos, também, as mais recentes dissenções, dentro do cavaquismo, entre o Grupo de Lisboa e os grupos da província.

Diga-se , de passagem, que esses tradicionais conflitos da direita costumavam ser superados pelo recurso ao meio termo da síntese coimbrã, onde os filhos dos rurais se alcandoravam à aristocracia através de um doutoramento. Foi assim no pós-28 de Maio, com Oliveira Salazar;foi assim no CDS, depois da saída de Freitas do Amaral, com Francisco Lucas Pires;foi assim no PSD, depois de Balsemão, com o recurso ao saudoso Professor Mota Pinto.

Com Cavaco Silva deu-se uma espécie de transacção. O Grupo de Lisboa não entrou com Marcelo Rebelo de Sousa nem com José Miguel Júdice;o Grupo do Norte apostou forte no minhoto Eurico de Melo; mas quem mais deu cartas foi o Grupo de Coimbra, espiritualmente liderado pelo penafidelense Barbosa de Melo, que fez ascender às culminâncias do Estado o jovem matosinhense Fernando Nogueira, também ele emigrante doutoral nas ribas do Mondego. E, assim, um algarvio emigrante em Lisboa, ungido por um doutoramento em Inglaterra, passou a símbolo da unidade.

Entretanto, tendo em vista a campanha para as presidenciais, procurou-se a constituição de um Grupo de Lisboa alargado, corporizado, primeiro, em torno do gabinete de campanha de Diogo Freitas do Amaral e, depois, na malograda Fundação Século XXI, que tiveram no "Semanário" e na "Olá", inspirados pela imaginação criativa do Profesor Marcelo Rebelo de Sousa, os principais instrumentos de expressão.

Trata-se, evidentemente, de uma das parcelas da extinta AD que tanto começou por apoiar Cavaco Silva contra o CDS de Lucas Pires e Adriano Moreira, como, mais recentemente, passou a criticar acerbamente Cavaco Silva, pelo menos até à recente indigitação do candidato do PSD e do CDS à Câmara Municipal de Lisboa. Curiosamente, tanto Marcelo Rebelo de Sousa como Freitas do Amaral foram dois dos principais ministros daquele governo de Balsemão que marcou o fim da AD e que teve como centro principal de residência a Quinta da Marinha e os arredores.

O anunciado regresso do jovem catedrático de Direito, já caracterizado como "uma abertura à direita " por parte de Cavaco Silva e insistentemente qualificado, pelos respectivos promotores, incluindo os "media" de Santana Lopes, como um regresso à AD, constitui , sem dúvida, um importante sinal de reestruturação da direita politico-partidária.

Pode tratar-se, em primeiro lugar, da primeira grande vitória de Diogo Freitas do Amaral nesta sua segunda liderança do CDS, pressagiando o necessário entendimento com Cavaco Silva para os anos noventa e obrigando Lucas Pires à continuação do exílio europeu.

Significa, em segundo lugar, a institucionalização política dos que se acolheram à sombra da Fundação Século XXI e que, até agora, se sentiam em regime de subemprego político.

Marca, em terceiro lugar, a clara marginalização de toda aquela direita que quer ser fiel aos valores rurais do dito Portugal profundo e que, mais uma vez, corre o risco de partir para os exílios interiores dos vários Vales de Lobos da nossa revolta.

Acontece apenas que, enquanto a nossa direita do asfalto , entre Lisboa e Cascais, embandeira em arco com o marcelismo e já canta vitória sobre um PS, ainda encasulado em cepticismo, Barqueiros, tal como, há tempos, Valpaços, continuam a constituir a contracorrente desta nossa caminhada para o glorioso século XXI.

Esse tal país das freguesias, com a pele tisnada pelo sol-a-sol, as mãos calejadas de envernizar enxadas e as mulheres de vestes negras, que não frequentam nem as "Olás" nem as capelinhas recentemente inventariadas pelo "Independente", continua a dizer que não entende os homens das leis abstractas, mesmo que catedráticos do Entre-Campos, os doutos engenheiros dos regulamentos técnicos e das vistorias bem como os zelosos burocratas autores dos formulários dos impostos ou dos empréstimos bancários, isto é, os clásicos pedestais daquilo que Oliveira Martins considerava a mentalidade banco-burocrática.

Um simples regulamento sanitário, por exemplo, foi o pretexto para a Maria da Fonte e essa estranha aliança entre os restos das guerrilhas miguelistas e os esquerdistas do setembrismo. Do mesmo modo, uma nova directiva sobre taxas e impostos pôs Coimbra sob lei marcial, já neste século, durante a chamada da Revolta do Grelo.

Em Barqueiros, concelho de Barcelos, neste começo do Verão de 1989, o tal Portugal do Remexido e da Patuleia demonstrou que não pertence apenas aos livros da história. Os que ousaram olhar a morte de frente , desobedecendo a um regulamento técnico sobre am a exploração de caulinos, e defendendo, com rebeldia, uma certa concepção de vida local, transformaram o Portugal Velho num Portugal redivivo.

Permanece, com efeito, um certo Portugal disposto à revolta contra todos os que, em nome de tais leis abstractas e de tais regulamentos técnicos, querem violentar a efectiva vontade popular dessas pequenas repúblicas que são as nossas freguesias rurais.

Foi esse Portugal profundo que em 1975 deu conteúdo popular à resistência anticomunista, cortando as estradas em Rio Maior e na Batalha e elegendo como condestáveis Bispos e Arcebispos, no Centro e no Norte, quando, em Lisboa, muitos políticos da direita urbana se preparavam para partir para o Brasil ou tentavam conversar com os novos senhores nos bares da revolução ou nos corredores dos ministérios.

Se a direita que temos não entender este renascido movimento das "pátrias chicas" e se iludir apenas com os jogos do poder, os factos políticos e os populismos clubistas, mesmo que ganhe eleições na destribalizada Lisboa, está a convidar a esquerda politico-partidária a assumir o que ainda resta de povo com valores e que talvez ainda seja a maioria do eleitorado.

 

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Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.