DA OPINIÃO CRÍTICA À OPINIÃO PÚBLICA
Não há membro da classe política ou partidocrática que se preze que não se angustie em regime de temor reverencial face à crónica dominical do Professor Marcelo Rebelo de Sousa na TSF. Com efeito, não há nada que se passe, ou ameace passar-se, nos estreitos passos perdidos do poder, bem como nas regiões semiautónomas da intelligentzia que com ele se promiscuem, principalmente nas zonas do tablóide off set e do pequeno écran, que não seja minuciosamente conhecido e examinado pelo mais popular dos nossos doutores em direito. Afinal, a melhor demonstração de como politicamente vivemos em circuito fechado, não por culpa do examinador, mas sim por causa da parvunculice do objecto analisado.
Deste modo, ainda se lêem com algum proveito retro alguns politólogos do princípio do século, como Ostrogorski e Michels, para os quais qualquer massificação da actividade política traz sempre consigo o reforço da lei de bronze da oligarquia. Que quanto mais se massifica a política, mas indiferentistas se tornam as massas e maior capacidade operacional ganham os grupos minoritários habituados a circular nas culminâncias do poder e a controlar as rédeas da besta leviatânica.
Bem mais ao estilo das crónicas de costumes, sempre diremos que as nossas autoconvencidas elites cabem quase todas nalgumas sacristias eclesiástico-televisivas, em dois ou três corredores de faculdade produtoras de candidatos a mandarins, em certos telefones bancários e noutros tantos salões herdeiros de lojas de antanho. Aliás, entre nós, quase todos podem encontrar-se em conselhos gerais de algumas fundações, em meia dúzia de conselhos fiscais e em certos altos lugares que gravitam em torno do sector público administrativo.
Outrora chamaram-lhe barões, os tais devoristas que substituiram os frades, por ocasião das privatizações de 1834-1836, e que assim nos foram escouceando, como nos ensinou Almeida Garrett. A base da tal classe bancoburocrática, conforme as palavras de Antero de Quental, a mesma que nos foi atrofiando e que, com o salazarismo, se deixou de anticlericalismo e tratou de pactuar com os frequentadores da sacristia dos regressados frades.
É esta a base da tal opinião crítica que, bem no íntimo, gostaria de uma qualquer nova forma de sufrágio censitário, coisa que vai fraudulentamente conseguindo pelas vias tortuosas dos grupos de interesse e dos grupos de pressão, agora que já se perdeu aquela vergonha que o medo do partido comunista propiciava. Sempre o receito do chicote a evitar a preponderância da corrupta cenourinha.
Acontece apenas que a nossa abusante opinião crítica, habituada a domar o touro do poder em pegas de cernelha, já quando ele está na fase final da lide, e estonteado por muitas chocas enfeitadas com pendentes, costuma mandar para o risco da pega de caras, quando a besta ainda está raivosa, alguns líderes de extracção rural, chamem-se Cavaco, Eanes, António Guterres ou Fernando Nogueira. É que, apesar de tudo, o colégio eleitoral assemelha-se mais ao público que lê A Bola e que lia a Crónica Feminina do que aos que se costuma exercitar em mimetismo face ao Olá e a outras revistas da mesma cepa.
Já a massificada opinião pública depende sobretudo dos programas sensacionalistas da nossa teledemocracia. Eis a razão pela qual os líderes tanto têm que ser examinados pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa como pelo Senhor Herman José, os dois principais talkmen do nosso sistema de comunicação política.
A prova dos Parabéns constitui, sem dúvida, um dos principais desafios de qualquer líder políticos destes nossos tempos, a tal forma de exposição plebeia que nas monarquias costuma ser reservada às famílias reais, bem mais traquejadas neste desnudar de intimidades familiares.
Acontece apenas que a democracia de opinião não se reduz a intelectualidades aplicadas e lamechiches críticas, dado que a nossa democracia se está a transformar num campo de manobras de profissionais de bisbilhotices e voyeurismo, desde as que são levadas a cabo pelos encartados cronistas sociais a formas mais cientificamente elaboradas que entram nas raias daquilo que, certo dia, foi qualificado pelo Dr. Fernando Nogueira como a cultura da delacção.
Com efeito, sob a forma de investigação jornalística tem regressado uma tradicional veia lusitana que não se esquece da inquisição, da formiga branca, do pidesco e do saneador do PREC.
Agora não é o fradesco casseteiro, o carbonário bombista, a tesoura do sargento situacionista nem o orgasmo do vanguardista revolucionário, mas o decadentismo de alguma classezinha burguesóide pretensamente aristocrática que, com um fervor persecutório, trata de denunciar todas as subidas sociais, principalmente as que utilizam a via político-partidária.
O político que não tiver a linhagem de certos colégios finos da lisboetice, com o consequente apoio em certa classe de investigadores de escândalos, e não souber compensar essa deficiência pelo recurso a adjuntos, secretárias ou assessores de imprensa bem relacionados com o meio, corre o risco de sofrer o estigma do socialmente incorrecto.
Por outro lado, o mesmo político costuma perder o norte quando trata de se pautar apenas pela legalidade, isto é, quando considerar que é permitido tudo quanto a lei não permite, esquecendo que nesses domínios há também o padrão da moralidade. Porque, como diz a máxima do sapateiro de Braga, ou há moralidade, ou comem todos...
A casta bancoburocrática que regressa não admite certos acessos à elite no poder e pretende continuar a instrumentalizar políticos docilizados pelos salões da nossa praça.
Foi talvez por isto que os nossos líderes partidários, cansados de olharem para o umbigo donde brotaram, entraram em regime de contactos com o país e da consequente chamada aos independentes. O primeiro a fazê-lo foi o Dr. Monteiro que, muito poujadianamente foi até aos pescadores comer caldeirada e junto dos agricultores discutir mamites. Depois, o Engenheiro Guterres decidiu enveredar pelo banho de independentes dos chamados Estados Gerais e anuncia agora as lideranças abertas. Já o Dr. Nogueira preferiu começar pelo Alentejo profundo, em regime de estudos gerais, antes de debeter televisamente com o Engenheiro Guterres, coisa que só deve acontecer lá mais para o Verão. O próprio PCP não deixou de se encontrar com o mesmo país, chamando gente fina, como o escritor Saramago e o arqueólogo Cláudio Torres que, para irritação dos tarrafalenses, disse que depois de ter acabado a tal coisa do Leste morreu o comunismo para que viva o comunismo.
Por outras palavras, todos os partidos vêm assim reconhecer que não têm ideias nem propostas. Todos ensaiam uma cosmética de mudança para que tudo possa continuar como dantes, isto é, para que os aparelhos permaneçam incólumes e os canalizadores críticos chamados a comentar a actualidade dos nossos telejornais permaneçam os mesmos partidocratas.
E quando os líderes entram em blackoout à maneira da futebolítica, eis que nos surgem uns números dois todos apparatchiki, com arzinho yuppie a debitarem a cassette do líder.
São, aliás, os próprios partidos que reconhecem que a partidocracia deixou de cumprir a sua função, mas sem abdicarem um só milímetro dos respectivos privilégios de monopólio da representação política.
Eis as principais causas que têm levado à distância entre o país das realidades e o país dos altifalantes político-partidários. É por isto que a actual maneira de fazer política começa a enojar. Não tanto pelos militantes e pelos partidos, quanto pelo processo de comunicação política que utiliza as vias oligárquicas instaladas nos actuais mass media.
Não é assim que entraremos na democracia de opinião, com esta opinião crítica de canalizadores de opinião e com esta opinião pública a cantar os parabéns. O que temos são partidos marcados pela lógica da acção colectiva estudada por Mancur Olsen. Aquelas organizações onde a motivação para a participação não é o interesse colectivo, mas o benefício selectivo do ganho individual, onde a cenoura de uma recompensa é o único móbil que leva à militância, entendida como mero investimento privado no mercado político. A tal forma de reconhecer que o homem é um animal interesseiro e egoísta e que as boas organizações partidárias deste tempo de homens de sucesso são aquelas onde, muito maquiavelicamente, os vícios privados da ambição desmedida e da vontade de poder se transfiguram em virtudes públicas, à imagem e semelhança da teologia do mercado...
Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.