DAS TEIAS DA GEOPOLÍTICA
AO NOVO MUNDO DA GLOBALIZAÇÃO
Tópicos da intervenção no colóquio sobre As Relações Transatlânticas
Foi nos últimos vinte anos do século XIX, principalmente a partir das teorizações de Friedrich Ratzel (1844-1904), que se delinearam as teias da geopolítica. A partir de então, desenvolveu-se uma tese, segundo a qual o elemento primordial de qualquer comunidade política seria o território.
Assim, Ratzel veio proclamar que o Estado seria especialmente caracterizado tanto pelo espaço (Raum) como pela respectiva posição (Raumsinn), estabelecendo algumas das chamadas leis da geopolítica:
que o espaço é factor primordial na grandeza dos Estados;
que um largo espaço assegurará a vida dos Estados;
que um grande território incita à expansão e ao crescimento de um Estado e que actua como força que imprime nova vida ao sentimento nacional;
que em todos os tempos só foi poder mundial um Estado que se fez representar em vários espaços.
Conforme as suas próprias palavras, toda a vida do Estado tem as suas raízes na terra, numa terra marcada por três elementos fundamentais: a situação (Lage), o espaço (Raum) e a própria fronteira (Grenze).
Estas teses vão, depois, ser desenvolvidas por Karl von Haushofer (1869-1946) que, aplicando as leis de Ratzel vai proclamar a necessidade de um espaço vital (Lebensraum), considerando até a existência de uma injustiça na distribuição do mesmo, especialmente em benefício dos pequenos Estados no cinturão Leste da Europa.
A geopolítica nasceu assim no contexto do processo de unificação alemã, posterior a 1871, criando um modelo pretensamente científico que constituía mera literatura de justificação dos interesses expansionistas alemães.
Se Ratzel deu cobertura à ânsia de Weltpolitik do segundo Reich, já Haushofer assumiu as angústias da Alemanha derrotada na Grande Guerra de 1914-1918, preparando, aliás, muitas das teses que serão aplicadas no terreno pelo terceiro Reich de Adolfo Hitler.
É evidente que os projectos imperialistas de outras potências não podiam subscrever as terras que proclamavam que a terra é poder. Outra teria de ser, por exemplo, a postura teórica dos poderes anglo-saxónicos, desde o Reino Unido aos Estados Unidos da América, mais interessados na proclamação do sea power.
Vai caber essa tarefa ao almirante norte-americano Alfred Thayer Mahan (1840-1914) em The Influence of Sea Power Upon History, de 1890, onde defende que os Estados dotados de um território com uma larga frente marítima teriam tendência para a hegemonia marítima e para serem adversários das potências terrestres. Por outras palavras, criava-se agora uma teoria que tentava justificar o desenvolvimento da marinha de guerra norte-americana, baseada numa estratégia de aliança com os britânicos e que também se baseava em factores políticos como a defesa do modelo de free trade baseado na industrialização.
Estes dois caminhos da primeira geopolítica contemporânea representam aliás dois projectos de construção de modelos de superpotências, as quais haveriam de confrontar-se na primeira e na segunda das guerras mundiais deste século. Se na primeira foi inequívoca a derrota dos modelos de impérios centrais, já na segunda se deu uma espécie de revisão da primeira edição vitoriosa, com algumas variantes:
em primeiro lugar, tal guerra mundial, começando por ser uma espécie de guerra civil europeia, como salienta o Professor Doutor Adriano Moreira, acabou por ganhar laivos de guerra civil mundial;
em segundo lugar, porque os vencedores não foram apenas as potências marítimas britânica e norte-americana, isto é, a união federal da América do Norte (United States) e a união monárquica e democrática dos britânicos (United Kingdom), dado que outro inequívoco vencedor foi a união comunista liderada pelos russos (União Soviética) e esta última potência assumiu-se como um grande Estado Continental;
em terceiro lugar, tal guerra não acabou em 1945, dado que imediatamente se desencadeou o processo da chamada guerra fria, apenas encerrado em 1989, e que produziu tanto a emergência autonómica de um novo Estado Continental (a República Popular da China), como a constituição do chamado Terceiro Mundo, após os movimentos descolonizadores que atingiram o seu clímax nos anos sessenta.
Diremos, aliás, que, em termos de linguagem geopolítica, passou a valer mais a explicação de um outro almirante, desta feita francês, Raoul Castex, para quem existe sempre uma espécie de perturbador continental, uma potência continental que decide caminhar para o mar, esse touro que as potências marítimas têm de deter, num movimento defensivo que só consegue ser eficaz quando obtém o apoio da chamada reacção orgânica do sistema internacional.
Uma tese que, aliás, sempre se aplicou aos processos imperialistas de construção da unidade europeia, de Carlos V e Filipe II, em nome dos Habsburgos de Madrid, a Luís XIV e Napoleão Bonaparte, dado que em qualquer destes exemplos históricos, o perturbador foi sempre detido por uma coligação negativa de outras potências, apenas conjunturalmente aliadas, dado que as mesmas, no dia seguinte à paz, ainda entendida como mera ausência de guerra, logo continuaram o jogo dos Estados em Movimento.
De qualquer maneira, tanto na sua versão de poder terrestre de cariz continentalista, como no seu momento maritimista do sea power, as teorias geopolíticas ficaram sempre presas a uma perspectiva política marcada pelo predomínio da ideia de território, entendido como condição ontológica básica do político.
Estas teorias desencadearam um conjunto de falsas ideias feitas que permitiram duas terríveis guerras mundiais, atingindo-se desta forma o clímax daquele modelo de Estado Moderno entendido como mero indivíduo geográfico, conforme a expressão do estrategista sueco Rudolf Kjellen.
Todos aqueles que reduziram a política a um simples espaço, confundindo os pressupostos com as causas, tanto contribuíram para as teses nazis do espaço vital como a teoria do imperialismo de Lenine. Isto é, continuaram aquele primitivismo que dá o nome de ciência a certas ideologias anacrónicas. Com efeito, a chamada geopolítica serviu para cobrir com um manto diáfano de doutrinarismos a verdade nua e crua das realidades, chamadas políticas de expansão de certos Estados que ainda se concebiam como pessoas em ponto grande e em luta permanente uns contra os outros.
Esta geopolítica apenas fez regressar o mundo àquele estado de natureza, onde os Estados se assumiram, não como os bons selvagens, mas como os lobos uns dos outros, esses esfaimados arreganhando-se numa luta de todos contra todos. Um estado de natureza onde o direito voltou a confundir-se com o poder, onde cada um tinha tanto direito quanto o poder que detinha, num direito que, assim, passou a medir-se pela força, dado que, neste ambiente, a razão da força passou a ser mais forte que a força da razão.
Foi assim que a geopolítica contribuiu para a eliminação daquele direito universal que era marcado tanto pelo jus gentium como pelo jus communicationis da respublica da pax romana e da sua sucessora christiana que nunca se esqueceram da república maior e da civitas maxima da sociedade do género humano. Assim se foi transformando o mundo num espaço de vingança privada, dominado pelo princípio das soberanias absolutas, não limitadas pela moral, pelo direito e pela natureza das coisas, dado que elas sempre foram fiéis ao lema do tem razão quem vence.
Não faltaram sequer as visões ditas científicas de um Halford John Mackinder (1869-1947), no The Geographical Pivot of History, de 1904, onde se visionou a Rússia como um simples Estado Pivot, como aquele poder terrestre que poderia liderar o mundo e vencer as potências marítimas se dispusesse de transportes mecânicos dotados de rapidez e de eficiência. Uma russofobia que o mesmo autor desenvolveu em 1919, em Democratic Ideals and Reality, onde fantasiou a mesma Rússia como o Heartland da World Islanda, daquela ilha do mundo que seria constituída pela soma da Europa, da Ásia e da África. Não faltou sequer um outro escrito de 1943. The Round Worçld and the Winning of Peace, onde voltou a temer a união da Rússia com a Alemanha, estabelecendo, deste modo, um diálogo com as teses de Haushofer, então líder intelectual do plano imperialista alemão.
Isto é, em pleno século XX e no auge da segunda guerra mundial, os cientistas do poder em movimento reeditavam os mitos bíblicos do monstro terrestre (o Behemot) e do monstro marinho (o Leviathan), num jogo onde milhões e milhões de homens iam efectivamente morrendo, já não como carne para canhão, mas antes como massificada pasta de alimentação para genocídios e explosões atómicas.
E tudo se fazia com a higiene laboratorial das teses científicas, com as universidades transformadas em institutos auxiliares da carnificina. Porque a ilusão cientificista do positivismo dominante na modernidade continuava a tolice de separar a ciência da moralidade, a política do direito e o homem do transcendente, dessa ordem misteriosa de símbolos, onde, mesmo para aqueles que não acreditam em Deus, sempre esteve a ordem superior da natureza ou o princípio estóico do kosmos ou do mundo, entendido de forma panteísta.
Por outras palavras, as teias da geopolíutica acabaram por conduzir a ciência e a racionalidade para a loucura das bruxarias, onde Hitler, Estaline e os lançadores de bombas atómicas não foram os convenientes diabos reencarnados, mas aqueles humanos, demasiadamente humanos que ousaram chegar ao sol com as suas frágeis asas de cera.
Em nome da ciência deixávamos assim de praticar aquela humilde lição de bom senso que manda atingir um conhecimento modesto àcaerca das coisas supremas, bem como aquela moderação que nos diz que a própria virtude precisa de limites.
Com efeito, desde os alvores do absolutismo que o político se territorializou, isto é, quando nasceu a ideia de fronteira física, quando na terra se tentou traçar uma linha entre nós e os outros, linha que, conforme a expressão de Nicos Poulantzas serviu para separar e dividir, cortar para quadricularizar, celulizar para englobar, segmentar para homogeneizar, individualizar para esmagar as alteridades e as diferenças.
Era o tempo do Ocidente dos Estados, da Europa das potências, dos Estados em movimento e o mundo passou a ser uma espécie de grande teatro de operações militares e mercantilistas com os soberanos a moverem as peças de um xadrez de guerras iluministas. Todo o mundo passou a ser uma grande mapa onde se foram desenhando Estados, Estadinhos e Estadões, independentemente da vontade das populações, algumas das quais foram obrigadas a deslocações forçadas e outras, vítimas de genocídios.
Era o apogeu do tal esprit geométrique que, exacerbando os territórios, esqueceu as comunidades e eliminou a dimensão espiritual e simbólica das repúblicas, em favor dos aparelhos de poder. Chegou mesmo a determinar que cujus regio, ejus religio, isto é, determinou-se que cada povo dependente até as crenças religiosas do respectivo soberano teria de seguir, porque a obediência é que faria o imperante. E assim se foi cortando o mundo em fatias estaduais, desenhadas a régua, compasso e esquadro.
As populações passaram a ser pintadas com a cor dos empregados domésticos dos soberanos e estes até deixaram de ser efectivos príncipes, assumindo-se como meros pais de uma casa, ora na versão gregas de oikos despotes, ora na versão latina do dominus (o nosso dono).
Isto é, as pátrias deixaram de ser uma síntese entre um chão e uma ideia e próprio chão deixou de ser um chão de sonhos, porque a pátria como raiz, reduzindo-se ao presente deixou de ter o chão moral propiciador daquelas raízes que se estendem para o passado e para o futuro.
Aliás, na viragem do século XIX para o século XX, a geopolítica chegou mesmo a ser acelerada pelo determinismo das escolas do geographic enviroinment, onde se destacaram as teses de Ellen Churchill Semple, em Influences of Geographic Environment, de 1911, onde se considerava o homem como simples produto da superfície da terra: um filho da terra, pó do seu pó, mas que a terra concebeu e alimentou, impôs tarefas, dirigiu pensamentos, criou dificuldades que lhe robustecessem o corpo e lhe aguçou o engenho .
O terraquismo foi também acirrado mais recentemente pelas teses de certa vulgarização etológica, nomeadamente pelas imaginações literárias com pretensões a ciência que depois de rebaixarem a política ao reino animal, chegam mesmo a considerá-la como directa emanação de um instinto territorial.
Recordar tudo isto, aqui nos Açores, nestas ilhas de terra incerta, onde terra, mar, magma e fogo são, dia a dia, desafiados pela vontade, pela razão e pela imaginação do homem, talvez seja simbólico.
Recordar tudo isto neste lugar vértice de um modelo político arquipelágico, não apenas os das nove ilhas, mas também o de outras ilhas irmãs mais a sul, mas também de um rectângulo de terra a que muitos dão o nome de continente, mas que, historicamente e psicologicamente sempre se assumiu como uma ilha separada do bloco europeu pelo fosso, real e imaginário, do muro de Castela. Recordar tudo isto talvez seja didáctico.
Com efeito, todos aqueles que têm exacerbado o papel dos Açores devido à sua posição estratégico, quase reduzindo as ilhas a mero porta-aviões ou a uma ponte cais entre a América do Norte e a Europa Ocidental, quase sempre esquecem que as chamadas riquezas estratégicas também geram apetites estratégicos. Todas as potencialidades estratégicas são também vulnerabilidades estratégicas se não forem ocupadas pela força material e anímica de um determinado poder político. Por outras palavras, as vantagens estratégicas dos Açores e a própria dimensão arquipelágica deste Portugal maior que nos resta são uma ilusão se forem perspectivas apenas do ponto de vista das teias do determinismo geográfico, da geopolítica e daquelas teorias estrategistas que não sabem equacionar o pode internacional de uma determinada comunidade política de forma globalista.
O poder político tanto do ponto de vista dos factores internos como no plano das relações internacionais nunca foi uma coisa susceptível de um ter. O poder político em sentido global sempre foi uma relação entre variáveis complexas e só pode ser entendido como uma network structure, como uma relação de relações, como uma rede de redes, tal como só pode ser gerido através de uma instituição das instituições.
Assim, o jogo do poder não se reduz ao xadrez dos Estados directores e dos Estados secundários, entendendo-se estes últimos como simples peões que a longa manus das superpotências vai movendo e comendo.
Há poderes pequenos que podem assumir-se como poderes funcionais e que ultrapassam as contas da aritmética e da geometria, fazendo das fraquezas forças. Porque os pequenos poderes, segundo a mera perspectiva das forças materiais, podem transformar as respectivas vulnerabilidades em potencialidades.
Aliás, as pátrias, mais do que o espaço de uma simples terra, sempre foram a emoção que os homens criaram a propósito da sua terra, da terra dos seus mortos e da terra onde nascerão os seus filhos.
E nós, portugueses, dotados daquele telurismo atlântico de que falava Miguel Torga, sempre soubemos vencer os determinismos geográficos.
Depois daqulea reconquista onde a fronteira sul sempre foi o espaço aberto do ermamento que ondulava como as searas, eis que passámos a ser desafiados pela fluidez do mar, eis que descobrimos que na maior parte da terra havia mar. Gerámos assim um novo espírito de fronteira que sempre nos animou a violarmos as fronteiras estabelecidas, descobrindo e semeando novos espaços e novas terras.
Direi também, como Fernando Pessoa, que importa redescobrir a nossa alma atlântica, encetando o regresso a um mar oceano bem maior que o simples diálogo entre a potência marítima da América do Norte e as potências do arco atlântico da Europa ocidental.
Se o Atlântico é necessariamente o Atlântico Norte, ele não é apenas o Atlântico Norte. Fomos nós que inventámos o Atlântico a caminho do Sul e as próprias ilhas dos Açores não se reduziram a simples ponto de passagem do mero diálogo nortenho. Basta recordar que por aqui passava a antiga rota do Brasil e a antiga rota da Índia que assumia o caminho da Guiné, de Angola e da Boa Esperança.
Logo, a memória profunda da açorianidade pode ajudar a portugalidade a recordar que estas ilhas precisam de um Atlântico maior, transatlântico, de um Atlântico que seja mais do que um simples espaço entre terras, mediterrânico. Por aqui passou o caminho para o novo mundo de outrora, quando os portugueses assumiam a missão universal de dar novos mundos ao mundo. Por aqui pode voltar a passar o pensamento para um novo mundo que está a nascer. Para esta nova história que os homens estão a fazer. Porque não é a história, enquanto processo histórico, que faz os homens, mas antes os homens que fazem a história. Sim, são os homens que fazem a história, embora sem saberem a história que vão fazendo, como assinalava Alexis de Tocqueville. Porque a história acontece, feita por homens que nunca se repetem, através de acontecimentos que também nunca se repetem. Ela sempre foi mais produto da acção dos homens do que da intenção programática de certos homens.
Importa assinalar que depois de 1989 se tem assistido a um importante choque teorético no sentido da compreensão da nova ordem internacional. Desfeitas as visãoes de uma restrita geopolítica, cuja fogueira fantasmagórica ainda foi alimentada pelos debates ideológicos da guerra fria e abandonadas as teses do fim da história, autores como Walker [1990 e 1993], Allan e Goldman [1992], Hogan [1992], Tucker [1992], Edmond Jouve [1992], Badie e Smouts [1992], Baldwin [1993], Beschloss e Talbott [1993], Campbell [1993], Moynihan [1993], Rothgeb [1993], Amin [1994], Jim George [1994], Booth e Smith [1995], Joshua Goldstein [1995], Holm [1995], Kegley [1995], Kratoschwill e Lapid [1995], Robert Art [1995], Snow e Brown [1995], Kazancigil [1980], Krasner [1985], Lane [1988], Thompson [1988 e 1995], Easton [1988], Frieden e Lake [1991], King e Schneider [1991], Kuttner [1991], Gilbert [1992] e Brzezinski [1993] e tantos outros tratam de recupera as antiquíssimas ideias da globalização e da sociedade do género humano. E mesmo em Portugal surgiu pela primeira vez, em 1996, uma Teoria das Relações Internacioanais, da autoria do Professor Doutor Adriano Moreira, onde, de acordo com a autonomia do nosso pensamento se quis pensar o mundo em torno do tópico do poder dos sem poder.
Com efeito, depois de 1989, comprimiu-se de maneira radical a margem de manobra dos factores internos de poder, de tal maneira que o sistema político quase deixou de ser uma consequência da soberania e, no plano interno, corre o risco de tornar-se mero subsistema, face à economia globalizada e à própria internacional das sociedades civis. E, face ao desafio de tal mundialização, a reflexão sobre o fenómeno político, libertando-se daqueles quadros que pareciam permanecentes, foi obrigada a ter uma espécie de saudades do futuro, dado que, para conseguir entender-se o nascimento do amanhã, teve de voltar a peregrinar-se pelas origens, a fim de se ultrapassar certa ditadura de um pretenso processo histórico que acompanhava o gnosticismo da modernidade.
Com a queda do muro de Berlim em 1989 e o subsequente colapso do sovietismo ruiu a velha ordem mundial estabelecida pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial em Teerão, Yalta, Potsdam e São Francisco. A tal ordem mundial ainda estabelecida pelo conceito mecânico da paz como mera ausência de guerra e que viveu, durante quase quatro décadas segundo o ritmo da bipolarização da guerra fria e que atingiu a dimensão dramática do equilíbrio pelo terror.
Mas as ilusões do fim da história foram imediatamente desfeitas com a emergência da questão do Golfo, em 1990, que levou à operação Tempestade no Deserto do ano seguinte. Logo verificávamos que, afinal, não havíamos atingido o gnóstico estabelecimento de uma nova ordem mundia. Continuávamos em regime de autêntico pandemónio e, em muitos casos, vivíamos o regresso da história que, muitas vezes, se traduzia num retorno ao tempo da Grande Guerra.
O regresso da balcanização e das teocracias levava até que, em plena Europa, com a guerra da Bósnia, se mostrasse à evidência, como o político ainda não conseguia pacificar as relações do Estado com a Nação e se mostrava incapaz de conter as explosões do transcendente nos meandros da cidade dos homens.
Esses acontecimentos do fim da década de oitenta, desde a ascensão de Gorbatchov à queda do muro de Berlim, com a imediata implosão da URSS, foram até menos causa do que consequência de algo que tem sido qualificado como revolução global e que o Professor Adriano Moreira, há mais de duas décadas, na senda de Teilhard de Chardin, teorizou como a lei da complexidade crescente nas relações internacionais, pela multiplicação das dependências e interdependências que é acompanhada por uma também multiplicação quantitativa e qualitativa dos centros de decisão, movimento de contrários, ou, melhor dito, de distintos, que geraria novas formas políticas, os grandes espaços, bem como órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão. Numa convergência acompanhada por uma divergência que exigiria uma nova unidade, assistindo-se tanto a uma planetização dos fenómenos políticos, com a consequente marcha para a unidade do mundo, como a uma dispersão, a uma fragmentação, a uma multiplicação quantitativa e qualitiva dos centros de decisão, nomeadamente com a progressão quase geométrica do número dos Estados e dos organismos internacionais.
Essa aparente contradição (por um lado, a crescente mundialização, e por outro, as exigências opostas da diversificação que, por exemplo tem levado a que no tempo dos grandes espaços se viva, simultaneamente a idade dos nacionalismos), constitui, aliás, o mais evidente sinal do complexo. Porque é complexo tudo o que é mistura de contrários. E porque, do complexo só poderemos sair, não pela vitória de um pólo sobre o outro, através da antítese vitoriosa sobre a tese, a que se seguiria uma síntese, mas sim pela harmonia.
A superpotência URSS não era suficientemente poderosa para ser autárcica. Podia ter SS20, mas deixou que um simples Cessna aterrasse na Praça Vermelha. Podia ter iniciado com o Sputnik e, depois, com Gagarine, a era da astronáutica, mas não sabia produzir transistores nem máquinas fotocopiadoras. Era suficientemente poderosa para amedrontar o mundo com as bombas termonucleares, mas não conseguiu domar os mujahidini no Afeganistão nem ainda hoje consegue controlar os tchetchenos, tal como os norte-americanos não conseguiram aguentar o voluntarismo dos guerrilheiros vietcong.
O primeiro dos sinais de convergência no sentido do mundialismo foi, sem dúvida, a grande revolução técnico-científica. Uma revolução científica que já não é apenas a mera continuidade da Revolução Industrial do século XIX, isto é, a mera exploração da massa pela energia, ou a exploração da natureza pelo homem, mas antes uma revolução das tecnologias da informação, que conhece a lei da entropia, descoberta por Rudolf Clausius nos finais do século XIX, a existência de uma nova grandeza variável da energia ... a quantidade de energia que, sendo gasta numa mudança, é irrecuperável pelo sistema e fica para sempre na zona do desperdício no balanço da energia do Universo.
Basta recordarmos, em termos de teorias estratégicas, que as tradicionais contraditas entre os defensores do poder terrestre e do poder marítimo foram superadas pelo aparecimento do poder aéreo e, mais recentemente, com a chamada Iniciativa de Defesa Estratégica, a guerra das estrelas, pelo anúncio do poderes supra-terrestre, supra-marítimo e supra-atmosférico, que deixaram de ser um exclusivo da ficção científica
Outra das fundamentais vertentes da revolução global é a revolução dos mercados. Primeiro, com o reconhecimento do homem como animal de trocas, de mercadorias e de serviços, aquela revolução do doux commerce, na qual muitos profetizaram a inevitabilidade das armas da paz se substituírem às armas da guerra. Aquela revolução pacífica que leva muitos a citarem os exemplos da Alemanha e do Japão que, depois de derrotados, há cinquenta anos, se assumem hoje como os novos senhores do mundo, sem terem de investir em defesa e segurança. Podem não ser superpotências, não têm assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, mas fazem parte do Grupo dos Sete.
Contudo, a revolução dos mercados, assume hoje novo sentido com a emergência da chamada geofinança, dessa network structure dos fluxos financeiros diários que passam pelas bolsas de valores de todo o mundo, e onde, minuto a minuto, podem pôr-se em causa empresas, moedas, países ou grandes espaços. Um quase esotérico sector, onde apenas parecem saber operar dez grandes holdings de peritos capazes de dominarem os segredos desse processo, esses novos poderes que, segundo Bouthros Bouthros-Ghali, transcendem as estruturas estaduais, gerando um poder mundial que escapa aos Estados..
Basta salientar que os três primeiros fundos de pensões norte-americanos a Fidelity Investments, o Vanguard Group e o Capital & Research & Management controlam dez vezes mais dólares que os conseguidos em Dezembro de 1994 pelo tesouro norte-americano, o Banco Mundial e o FMI para ajudarem a moeda mexicana
O mais importante dos novos poderes passa, assim, por esse fluxo da geofinança que tem as características do imediatismo, da desmaterialização, da permanência e do planetário, ao mesmo tempo que ressurgem formas de inconsciente colectivo, marcadas pelo revivalismo dos rumores, dos receios e da pópria fé das bruxarias, típica das sociedades de casino, dessa nova religião dos mercados que tem como missionários militantes os descendentes dos yuppies. A figura dos corretores aventureiros chega mesmo a substituir a dos garimpeiros e dos achadores de volfrâmio e a realidade quase se transforma numa ficção folhetinesca de telenovela, aproximando-se de muitos dos meandros do romance de Dona Branca.
Podem reunir-se, sob os holofotes televisivos, os líderes das superpotências ou dos G7 bem como as cimeiras da NATO ou da CSCE, mas não se conhece o rosto dos mestres do mercado, desses novos predadores, para quem sentidos como os da justiça e da honra parecem não contar.
A este respeito, importa sublinhar que revolução dos mercados foi sobretudo o processo de livre circulação dos capitais, precedido pelo processo da desregulação e das privatizações.
A economia desmaterializou-se. O poder deixou de residir nos elementos materiais, nos factores de produção da teoria marxista, como eram a terra, os recursos naturais e as máquinas, e passou a assentar em factores imateriais, como o conhecimento científico, a alta tecnologia, a informação, a comunicação e as finanças.
O poder transformou-se numa rede de poderes, deixou de ser uma coisa, um patrimonium, um ter e passou a ser uma relação, uma rede de muitos micropoderes, onde os novos mestres predadores e conquistadores já não são os detentores dos factores de produção nem os organizadores da era dos managers, mas sim os efectivos manipuladores da rede que conseguem por todos os meios a necessária inside information.
Todos este novos grupos escapam a anteriores formas de representação e de legitimação política e social e desprezam o bem mais precioso de qualquer democracia, aquela informação que permite a consolidação de uma opinião crítica. Aliás, os novos poderes têm com eles legiões de aliados e colaboracionistas, desde os quadros da tecno-ciência que trabalham para incorporar o avanço da técnica nos novos produtos e serviços - os quais estão a tornar caduco o tradicional conceito de universidade, dado configurar-se como um grupo cada vez mais cosmopolita que tende a depender mais das multinacionais do que dos subsídios estaduais, às tecnoburocracias dos Estados e das organizações internacionais -, até porque os gestores de alto nível tendem a ser educados nas mesmas escolas e nas mesmas universidades que mantêm a educação permanente, passando pelos criadores de símbolos, nesse conúbio entre os universitários e os opinion makers; paralelo à própria entrada dos grandes media no sistema dominante
Já não temos as sete irmãs das multinacionais petrolíferas, das grandes famílias que dominavam o tempo das trocas de mercadorias do auge da revolução industrial. Passámos para a sociedade da informação. Para uma informação que não se consome, como acontecia com o petróleo ou a alimentação, mas que se cria pelo uso.
Assistimos assim a uma revolução da informação que se traduz na uniformização e à ubiquidade da mesma que transformou todo o mundo numa aldeia global onde vale mais a foma do que a substância, o continente do que o conteúdo.
O homem massa passou, de simples auditor, a informe audiência, e grupos mais poderosos que os próprios Estados tratam de manipular aquilo que era o bem mais precioso da isegoria.
Se há transmissão de dados à velocidade da luz, se se deu a banalização dos satélites de telecomunicações, se as auto-estradas da informação tocam no mais pequeno computador doméstico, eis que temos apenas duas cadeias planetárias de televisão, a Cable News Network de Ted Turner e a Music Television que alteram os costumes, as culturas, as ideias e os debates. Temos, sobretudo duas agências de informação audiovisual, a Worldwide Television News (WTN) e a Visnews, que todos os telejornais do mundo vão diariamente reproduzindo.
Outra das revoluções globais tem a ver com a revolução demográfica, com o aumento da população do mundo e com alteração quantitativa na relação entre grupos étnicos, falando-se, a propósito, nas bombas demográficas do sul relativamente ao decréscimo da população branca. Com efeito, a população mundial que se manteve estável dos tempos de Cristo ao ano mil, multiplicou-se por vinte neste último milénio. Mas nestes últimos cinquenta anos o multiplicador entrou em ritmo quase febril. Se em 1939 havia 2 195 milhões de homens, esse número passou para 4 453 milhões em 1980 e para 4 842 em 1985, prevendo-se que atinge os 6 127 milhões no ano 2 000 e que atinja os 8 177 milhões em 2 025.
Actualmente em cada cem homens, há 22 chineses, 20 membros do subcontinente indiano, 10,2 europeus, 5,7 da antiga URSS, 5,5 da América do Norte, 11,4 africanos, 8,4 da América Latina. Mas se atendermos à distribuição da riqueza, verificaremos que quatro quintos da riqueza mundial cabe a uma sétima parte da população do mundo, contribuindo assim para a destruição de outro dos valores básicos de qualquer comunidade, a isonomia.
A mistura destas revoluções podia dar a esperança dos novos poderes, dos guerreiros do conhecimento, dos analistas de símbolos e soldados de software, com o apelo aos recursos humanos e à educação como paixão ou prioridade das prioridades. Mesmo os novos media, como o telefone satélite e os microcomputadores, poderiam fazer o apelo ao small is beautiful. E o doce comércio até parecia poder submergir a violência da guerra. Contudo, como assinala o Professor Adriano Moreira, o tempo acelerado das mudanças políticas subsequentes ao processo da revolução global, não foi acompanhado por uma paralela revolução cultural. Porque, se as revoluções parcelares se fazem no curto prazo, já as revoluções culturais e morais exigem sempre um tempo demorado, um médio e um longo prazo.
Diremos, a concluir, que também aqui nos Açores, pensando em português, para bem de Portugal que não podemos sucumbir àquela tentação do pensar baixinho que marca certos líderes de opinião, influenciados pelas sucessivas traduções em calão com que nos vão colonizando, pela recepção do pensamento único de certo mundialismo que não entende a concepção atlântica dos portugueses. Porque, para nós, o Atlântico e o atlantismo nunca se puderam reduzir a um sistem fechado imposto pela falta de horizonte do espírito geométrico e das teses gnósticas da geopolítica. Para nós, o Atlântico sempre significou passagem para o abraço armilar. Nós que desbravámos as tormentas e que entendemos o plus ultra do mais além, como o mais além ainda de uma índia que não vem nos mapas, nunca nos deixámos limitar pelos fantasmas do Adamastor. Fomos nós que abrimos as portas da boa esperança para os oceanos morenos e que, com Fernão Magalhães, rompemos os estreitos que permitiram a circum-navegação e o consequente entendimento da terra como uma esfera que gira à volta do próprio eixo e em torno do sol.
Foi pelo Atlântico, a caminho do Sul, do Norte, do Leste para Oeste e de Oeste para Leste, que excedemos a Europa para cumprirmos a Europa. Que saímos de Portugal para servirmos o mundo, para sermos mais universais e, logo, mais portugueses.
Que o Atlântico nos dê alento para irmos além do Atlântico. Para quebramos os mero bilateralismo do diálogo entre as margens ptolomaicas de um pretenso fim do mundo e nos lançarmos no multilateralismo e no universalismo. Se esse for o sentido da expressão relações transatlânticas, entendidas como via para uma nova compreensão da ordem mundial, valeu a pena este convívio de ideias. Porque como dizia o nosso Fernando Pessoa: quanto mais ao povo a alma falta, mais minha alma atlântica se exalta.
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Página revista em: 02-01-1999.