DEFESA PARA O FUTURO

O caso do ISCSP em Fevereiro de 1999

 

Protesto individual de um educador,

em nome da liberdade académica,

da liberdade de expressão

e da liberdade de circulação.

 

Por

José Adelino Maltez

 

Membro do Conselho Científico do ISCSP

 

 Chamemo-lhe M. Este verdoso faz-se herói da escola sempre que pode, foi acolhido e integrado pelo instituto, mas nem assim assimila os valores do mesmo. E tanto assim é que, aquando do Sarau Académico de Solidariedade, realizado na Sala Verde do Palácio, o M que compareceu no ISCSP à hora marcada, conseguiu produzir a inacreditável afirmação de que não ia ao Sarau, porque não frequentava instalações invadidas e porque não acompanhava invasores!!! E quem são os invasores? – Os estudantes, os professores, os funcionários, as outras AE’s e figuras públicas que vieram dar apoio, o ISCSP!!!! Aqui o verdoso ultrapassa-se a si mesmo e expulsa-se a si próprio, fazendo-nos um favor, da Sala Verde e do nosso convívio: Para sempre? O momento é histórico e decisivo: A coesão é indispensável e total! Seremos implacáveis com os verdosos... Os verdosos estão proíbidos de entrar na AE...

 

De um Comunicado anónimo emitido pelo comité de luta (sic)

ISCSP, em 22 de Fevereiro de 1999

 

Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho Científico do ISCSP. Caros colegas

Julgo que é do conhecimento de todos os colegas o processo de equívocos em que enredaram o meu nome. Em nome da defesa da honra, não posso deixar de proferir a seguinte declaração:

Há dias, numa certa noite, ao ser mobilizado telefonicamente para um sarau estudantil, decidi comparecer e dizer aos mobilizadores, olhos nos olhos, que não subiria ao primeiro andar por não concordar com a metodologia. Tudo por não aceitar dar aulas em instalações da propriedade do Estado que deveriam ser legitimamente possuídas pelo ISCSP, mas sem formas de detenção controversas. Tudo por considerar que não estavam esgotadas as vias simbólicas de manifestação, as formas institucionais e processuais de reclamação de direitos e as vias diplomáticas do diálogo e da pressão admitidas, e até estimuladas, pelo Estado de Direito Democrático. Muito especialmente porque considero perigoso que, na universidade, todos os poderes passem a depender das seduções da teatrocracia e até das votações do braço ao alto.

A resposta dada a este face to face, sincero, directo, no próprio local e no próprio momento da controvérsia, foi a conhecida. Depois de novo telefonema, em tom de ultimato, de um dos mobilizadores, no qual lhe disse que formalmente não poderia ser incluído numa lista de solidariedade, onde temia o cheque em branco, como, aliás, veio a acontecer, eis a dinâmica do enxovalho das noites da má língua promovido por revolucionários de café e discoteca.

Estamos, neste momento, a viver a crise típica dos estados febris que se sucedem a certos vazios de poder e a sublimação das tendências recalcadas que precedem as movimentações para a conquista ou para a manutenção em certos poderes políticos, universitários ou sociais (tudo com minúscula, assinale-se). Nem sequer a crise é apenas do ISCSP, dado que, sobre nós, confluem, talvez freudianamente, crises de outros círculos maiores da nossa instituição universitária, de outras instituições universitárias, onde coincidimos individualmente, e, sobretudo, de muitas carreiras e correrias pessoais, que provocam um ambiente propício à pequena demagogia dos pretensos césares de multidões, com emanações de terrorzinho de salão, de assembleia, de corredores (na expressão correspondente do inglês), de cartas anónimas e de telefonemas com grunhidos animalescos, onde já funcionam as ameaças e as interferências na própria vida privada de quem não quer ser formatado pela corrente.

Não me parece que os tempos do estado febril da sociedade, sejam eles adolescentes, adultos ou serôdios, se mostrem propícios a decisões de médio e longo prazos, necessariamente harmónicas que reconheçam e dinamizem a poliarquia de paradigmas que, neste momento, conforma o ISCSP.

Talvez não convenha cedermos aos tempos onde a raposa passa a usar as garras do lobo e a serpente a querer voar como as rapinas. Nem sequer vale a pena a linguagem das pombas a abater ou dos cordeiros a imolar. Não acredito nos animais falantes.

....

Apenas manifesto a minha dor pelos desenvolvimentos recentes do poder infraestrutural. Pelas consequências da conquista e manutenção do poder na rede institucional em que estamos inseridos, todos poderão ver, amanhã, a constelação causal e as acções reversíveis do processo em curso.

......

Declaro, com toda a frontalidade, em nome da normativista "moral de convicção", que tanto não aceito o autoritário "quem não está contra mim, está a favor de mim", como repudio activamente o totalitário "quem não está a favor de mim, está contra mim". Os fins não justificam os meios... Concordarmos com o fim de novas e melhores instalações, e até da "reposição da legalidade" historicamente esbulhada, não significa concordarmos com os meios usados pelo poder estudantil associativo actualmente dominante na escola. E só um pensamento binariamente linear pode, em seguida, concluir, que quem assim pensa e actua tem necessariamente de apoiar a intervenção policial na própria escola.

Num Estado de Legalidade e numa Escola de Legalidade não me parece educativo que se utilizem tanto a via revolucionária da acção directa, de quem ousa fazer justiça pelas suas próprias mãos, em nome da primordial vindicta privada sem os limites da legítima defesa, como o vanguardismo da lei de ferro da oligarquia partidocrática. Num Estado de Direito Democrático, onde a Escola deve integrar-se, não considero justo que se ceda à pressão da nostalgia revolucionária ou dos candidatos a princeps que mimeticamente confundem o pretérito perfeito com o futuro aventureiro.

As regras da democracia representativa e pluralista não admitem excepções para o corporacionismo universitário, estudantil, burocrático ou professoral. Prefiro o sufrágio universal (do voto secreto), a liberdade livre (dos liberdadeiros) e o respeito pelas minorias (da poliarquia). Repudio a tirania das maiorias, o elitismo de salão, a ditadura da moda, o império do vazio e o ostracismo.

Já pratiquei estes princípios de cidadania quando corriam os crepúsculos autoritaristas e os consequentes ventos da moda da tradução em calão do nosso pensée 68 ou do pretenso PREC do jacobinismo leninista à portuguesa.

Continuarei a praticá-los mesmo que a degenerescência invoque sinais ideológicos contrários em nominalismo, mas iguais na metodologia, nos gestos e às vezes nos próprios figurantes da cena. E muito menos cederei se o processo for marcado pelo nihilismo. Quem tem razão a curto prazo, pode não tê-la tanto a médio prazo como a longo prazo. E só é moda aquilo que passa de moda. Não tenho medo de estar de acordo comigo mesmo, ainda que venha a estar em desacordo com todos os outros. Tanto é mau o despotismo de um, ou de poucos, como o despotismo de todos.

Julgo saber analisar laboratorialmente os invocadores da pequena Razão de l’Etat c’est moi bem como os pretensamente "lúcidos" praticantes da "moral de responsabilidade". Também percebo a vontade de poder dos que dizem querer salvar a cidade, apenas a pensar na paróquia, no quintal, na casa, na bolsa, na barriguinha, na inveja ou nas vaidades. E entendo o libidinoso de muitas ânsias dominandi, o dogmatismo de acaciana pacotilha e o indisfarçado desejo quanto à imposição de um paradigma único, de um pensamento único e de um politically correct tribalista. Prefiro, neste tempo dos tais homens "lúcidos", ter "a lucidez de ser ingénuo".

Já fui julgado pelo tribunal da oclocracia e a sentença foi publicada no dazibao. Só falta o sanbenito e a queima da efígie.

Com efeito, um cobarde comunicado da pequena inquisição revolucionária veio insinuar a mais nojenta das acusações: a de que fui acolhido e tolerado nesta instituição. Não tenho tolerância para ser incluído na caderneta das criaturas toleradas! Ninguém me pode "doar" aquilo a que tenho direito, por concursos públicos, provas públicas, escritos públicos, conferências públicas e aulas públicas! E nem sequer peço solidariedade àqueles colegas que se prontificarão a lavar as mãos como Pilatos. Numa escola de política não pode haver pulhítica.

Vou continuar a viver como penso, sem pensar muito em como viverei aqui. Apenas reclamo o direito de continuar a cumprir o meu dever de professor. Não venho aqui oferecer a minha cabeça na bandeja para a vindicta dos que, por outras razões, me pretendem transformar em bode expiatório. Venho assumir a coragem de ter comigo uma ampla minoria constituída por mim mesmo.

.........

 

Com as melhores saudações académicas

José Adelino Maltez