Elementos para uma Teoria Portuguesa da Descolonização

 

 

Portus cale, portus garbe

Venho de longe e de tão perto, daquele Portugal cujo nome oficial foi, durante séculos, o de Portugal e dos Algarves, mas que, ainda hoje, continua a ter o carácter pluricultural e universalista da distância de tais Algarves na esfera armilar que circulariza o nosso escudo nacional. Daquele Sudoeste da Europa, com os seus arquipélagos atlânticos, que, mais do que uma nórdica finisterra, continua a ser porto de partida, cais de todas as necessárias viagens para a redescoberta de novos mundos. Mas, aqui e agora, neste nosso tempo, tão tecnologicamente dito como de aldeia global e, por vezes, escatologicamente qualificado como  fim da história, ainda continua por cumprir a exigência de todos nos tratarmos como filhos de Andram (Gil Vicente). Porque, como proclamava Almada Negreiros, se as frases que hão salvar a humanidade já estão todas escritas, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo a humanidade.

 

Não há dúvida que, dessa finisterra, nasceu Sagres, pelo Atlântico, a caminho do Sul. Que, outrora, partimos, ousando regressar ao ventre mátria, de nossa mãe distância, na senda daquele abraço armilar, daquele universalista quanto mais além, mais além ainda (Paul Claudel) que talvez constitua a principal significação partilhada das comunidades da lusofonia, esse núcleo central da nossa memória e dos nossos valores, donde nos vem a identidade e a autonomia.

 

Começámos por ser Porta de Chegada daquele mundo antigo, que se reduzia ao mapa de Ptolomeu e que podemos qualificar como a Idade Mediterrânica da História. Então, nos confins do Ocidente europeu, onde a terra acaba e o mar começa, fomos recebendo, em sucessivas vagas, a visita de fenícios, gregos, romanos, germânicos, judeus, berberes e árabes. Gentes de todas as sete partidas que, de Leste para Oeste, procurando um lugar onde, nos foram ensinando a aprender o aprender, da religião, da filosofia, do direito, da álgebra, da tecnologia.

E nacionalizando essas tendências importadas pela arte da simbiótica, eis que adquirimos técnica para nos podermos lançar numa nova partida, para esse além de nós a que podemos chamar mundialização.

 

Desde o século XV que, descobrindo as descobertas, nos fomos descobrindo e, com judeus e árabes, africanos, indianos, malaios, chineses ou índios americanos, também diluídos dentro de nós mesmos, conseguimos esquecer o círculo vicioso das guerras santas contra guerras santas entre gentes do mesmo Livro, ousando fazer guerra contra as ondas do tenebroso, os misteriosos cabos bojadores e os fantasmas dos adamastores.

E assim navegando em estradas flutuantes superámos as Tormentas e unimos, pela boa esperança, o Atlântico e o Índico, transformando todo esse espaço no novo Mediterrâneo da história. Chegava a hora de uma terra maior, do tal planisfério, onde se circulava, não apenas de Leste para Oeste, mas também de Norte para Sul, com novas estrelas do norte, a que chamámos cruzeiro do sul.

 

A viagem por cumprir

Faltava, no entanto, cumprir a viagem: ir além dos cabos, da Índia, da Taprobana, esse circum-navegar que é partir para regressar ao sítio da partida. Descobrir que a terra inteira  podia ser unidimensional, que a humanidade não cabia nem no ptolomeu da fantasia nem na abstracção de um planisfério; faltava descobrir que, em vez de chegar a uma índia cartografável, importava navegar, como proclamava Fernando Pessoa, para uma índia que não vem nos mapas e chegar lá em naus feitas daquilo de que são feitos os sonhos. Faltava cumprir o abraço armilar, isto é, assumir o globalismo de uma terra-esfera onde não são possíveis periferias, tenebrosos, ou aquelas ilusórias perspectivas etnocêntricas de um mundo quadrilátero, com quatro cantos onde só nos sítios onde reinamos temos a ilusão de estar debaixo do Céu.

Faltava descobrir que tanto o Leste como o Oeste, tal como o Norte e o Sul, são, dia a dia, subvertidos pela revolução dos corpos celestes, em torno de um eixo e à volta do sol. É esse novíssimo mundo que agora, e sempre, pode ser, se os homens forem homens.

Mas o tal diálogo de culturas só é possível  se nos expatriarmos nas nossas próprias origens (Heidegger), isto é, se reconhecermos  a contemporaneidade filosófica  de todas as civilizações (Toynbee). Para tanto, talvez importe refazer alguns dos pretensos mandamentos das leis dos homens que todos vamos balbuciando de forma hipocritamente unanimista.

Falta uma cidade à imagem e semelhança do homem, uma cidade que não seja grande demais nem pequena demais, mas suficiente na sua unidade. Uma civitas humana onde possam conciliar-se tanto a exigência de independência de cada  grupo nacional como a liberdade e a participação de cada cidadão, o que só é possível quando houver uma comunhão pelas coisas que se amam.

Falta também uma nova noção de saber que vá além do pretenso cientismo dos tempos modernos, essa ilusão da morte de Deus (ou do deicídio) que gerou o terrorismo de uma certa razão paroquial - a mesma que determinou que só existe aquilo que pode medir-se ou experimentar-se intencionalmente.

Falta, sobretudo, respeitar uma antiquíssima (mas não antiquada) concepção de homem: aquela que entende cada  homem concreto como um homem completo; onde cada homem seja um ser que nunca se repete, vivendo uma história onde cada acontecimento é também um acontecimento que nunca se repete. E porque cada homem é um fim em si mesmo, só podemos salvar a humanidade se nos salvarmos, cada um de nós, fazendo aos outros aquilo que queremos que nos façam a nós. Isto é, só salvando os imperfeitos homens que temos, e somos, poderemos salvar a humanidade.

 

 

Aqui e agora, como um dos herdeiros da liberdade europeia, apenas quero proclamar que a história está sempre a recomeçar. Que só há  fins da história para os pretensos vencedores. Porque, como dizia um herético português, não será que vencer é ser vencido? Porque só fazendo o passado presente, podemos ter saudades de futuro.

O pequeno-grande povo português que, nos fins da Idade Média, se lançou, com pragmatismo, na aventura dos descobrimentos, da expansão e do diálogo de culturas, não só deu novos mundos ao mundo, desenhando o mapa da terra como planeta unidimensional, como também semeou o diálogo universal do abraço armilar, essa circum-navegação pelo ius communicationis que redescobriu o homem como animal de trocas, tanto de bens económicos como de bens espirituais.

 

Os vários impérios portugueses

Uma das consequências do processo foi a emergência do mundo que o português ajudou a criar, esse espaço plural e policêntrico de povos, culturas, Estados, Igrejas e comunidades cujo nome talvez seja mais que o da formal CPLP.

Ora, um dos vectores desse tal mundo foi, sem dúvida, a tentativa de criação de sucessivos espaços políticos sujeitos ao domínio do aparelho de poder português. Aquilo que podemos qualificar como a procura de vários impérios, ou, como na modernidade vai dizer-se, de várias áreas de soberania, acrescentadas ao inicial reino dos séculos XII, XIII e XIV.

Portugal e o Algarve, o compósito núcleo inicial do reino, é aumentado, logo no século XV,  pelos senhorios conquistados no Algarve de além-mar, em África e na Guiné, até que, com D. Manuel I, passam a visualizar-se os acrescentos de forma já sistemática, falando-se em senhorios  de conquista, de navegação e de comércio.

É este o pluralismo do império primeiro, onde há um reino no d’aquém e um senhorio no d’além, tanto à maneira dos antigos Imperadores - pela conquista - , como pelos novos métodos da navegação  e do comércio - onde as coisas novas são algo de fluído, sem a rigidez territorialista da quadrícula fronteirizada. Como o próprio Francisco de Vitória  então reconhecia, a novidade portuguesa estava no comércio com as gentes exóticas as quais não subjugaram e com grande vantagem, ao contrário do modelo madrileno de Carlos V que persistia na serôdia ideia de monarquia universal e de imperium mundi, enquanto o nosso modelo assumia a modéstia de se constituir como simples intermediário da respublica universalis.

Na prática, podemos assinalar vários impulsos nesse movimento expansivo de acrescentamento. O primeiro, inaugurado pela (re)conquista de Ceuta em 1415, gerou o império marroquino, que teve o seu ponto de regresso com Alcácer-Quibir em 1578.

O segundo impulso, a partir da viagem de Vasco da Gama, em 1498, levou ao império português do Oriente, muito especialmente o mundo indoportuguês, cujo ciclo, depois da queda de Goa, em 18 de Dezembro de 1961, e da invasão de Timor pela Indonésia, em Dezembro de 1975, vai terminar com a devolução de Macau à China em 20 de Dezembro de 1999.

O terceiro impulso, desencadeado a partir da descoberta oficial do Brasil, em 1500, terminou com a revolta do Ipiranga, curiosamente liderada pelo próprio herdeiro do trono de Portugal, contra a secura do geometrismo jacobino e mercantil que comandava o revolucionarismo político-militar instalado em Lisboa. E aqui, o modelo, começando pelo estabelecimento do senhorio, através de uma pluralidade de capitanias, consistiu fundamentalmente num processo multiplicador orgânico que instaurou nesse novo mundo, um novo reino, à imagem e semelhança do ponto de partida. Um processo que atingiu o clímax depois da capital da monarquia ter sido transferida para o Rio de Janeiro e da criação do Reino Unido de Portugal e do Brasil.

O impulso mais tardio foi o desencadeado a partir das feitorias africanas, quando largámos a costa e a mera exploração das companhias majestáticas e nos lançámos nas campanhas de ocupação e no  povoamento, sobretudo a partir do último quartel do século XIX, depois da Conferência de Berlim.

O quinto e derradeiro impulso de partida, mas já não de acrescentamento, proveio da emigração dos séculos XIX e XX, principalmente a que, a caminho da Europa central, foi protagonizada, nas décadas de cinquenta e sessenta deste século, pela geração da mala de cartão.

 

 

As consequências

De todas estas viagens levadas a cabo por uma entidade já qualificada como nação peregrina, ficaram misturas, memórias, diásporas e, sobretudo, novas sínteses e novas emergências: novos povos, novas unidades políticas e novas culturas miscigenadas, gerando-se um arquipélago de cruzamentos, onde a memória de uma história comum e da prática de um modo de estar no mundo fez nascer uma civitas amoris.

Uma comunhão promovida tantos pelos parcos agentes oficiais e oficiosos do aparelho de poder central como também, e principalmente, pelo chamado império sombra, por essa massa de gentes da comunidade à solta, em acção livre de directivas hierárquicas, dos  navegantes aos comerciantes, dos missionários aos simples aventureiros, todos eles sempre à procura de um lugar onde, que a mãe-pátria não podia, não queria ou não sabia propiciar, gerando, em cada um dos que partiam, o paradoxo de uma revolta plena de saudade.

Desse complexo, gerou-se um arquipélago de comunidades. Não apenas portuguesas, não apenas lusíadas e lusófonas, mas também de lusodescendentes, pelo sangue, pela língua, pela cultura ou então pela memória de um encontro ou de um sonho de futuro, através da procura de uma construção conjunta.

Um comunidade feita em torno das coisas que se amam, um patamar a caminho do mais belo de todos os ideais políticos: a construção de uma república universal, de uma paz pelo direito, marcadas pela afectividade das emoções, entre as quais se destaca o lastro de um difuso humor merancórico.

 

 

 

O fim do ciclo imperial

Depois do fim do ciclo do nosso mais recente império terrestre, aquele que teve como principal teatro o povoamento e as campanhas africanas do quase século que vai da Conferência de Berlim aos acontecimentos de 1974, eis que se tornou obsidiante frase de Pessoa, segundo a qual  minha pátria é a língua portuguesa. Uma invocação que tem servido de mote para as mais variadas glosas sobre a necessidade de consolidação de uma comunidade lusofalante, cujas parcelas alguns comparam aos heterónimos do mesmo super-Camões  do nosso século.

E aqui importa sublinhar que, ao contrário do que aconteceu com o Estado espanhol que, nos finais do século XIX, foi obrigado, por pressão dos interesses norte-americanos, a abandonar Cuba e as Filipinas, apenas tentando, um pouco à maneira dos objectivos do nosso D. Sebastião, uma forte permanência colonial em Marrocos, os portugueses só fizeram uma aposta africana nestes últimos cem anos, quando se desencadeou um movimento de reconstrução imperial, fortemente influenciado pelos ciclos imperiais daquelas potências coloniais do Ocidente europeu que tentavam humanizar a violência do mercantilismo e a hipocrisia do free trade em nome de um missionário white man’s burden.

Aliás, talvez tenhamos construído o essencial da presença portuguesa nesse continente durante as décadas de sessenta e setenta deste século, face ao desafio da chamada guerra colonial ou das campanhas de África, esse simples capítulo da guerra da África Austral, inserido no mais vasto livro da guerra fria. O que bem se demonstra pela circunstância de tal episódio bélico atípico não ter acabado com o nosso abandono de 1974-1975, tendo-se, inclusive, agravado em Angola e em Moçambique, já sem a participação portuguesa.

À maneira de Santo Agostinho, podemos dizer que em 1974-1975 não foi o mundo português que acabou, mas sim um novo mundo português que começou, dado que talvez continuem fecundantes as esperanças de Portugal. Porque, como dizia Arnold Toynbee, numa civilização em crescimento, a um desafio opõe-se uma réplica vitoriosa que vai imediatamente gerar um outro desafio diferente a encontro do qual se ergue uma outra réplica vitoriosa.

O que estamos a viver nesta viragem de milénio, para utilizarmos palavras do nosso saudoso mestre, Agostinho da Silva, antigo professor da minha Escola, pode ser Portugal a morrer como metrópole e a renascer como comunidade livre, já que dominar os outros é a pior forma de prisão que ter se pode. Porque, Portugal, ao contrário do que tantos dizem, não diminuiu, antes se multiplicou, dado que libertando os que mantinha sob o seu domínio, reconhecendo-lhes independência para a vida, renasce em Pátrias. Porque o que Portugal foi tem servido para que Portugal não seja, pois a ilusão portuguesa de império terrestre acabou por ser subvertida pela sorte do capitalismo industrial. Porque Portugal, impelido ainda pelo seu afã de mar e sentindo no mar a verdadeira garantia de independência chega, porém, a África, parasitado pela economia europeia e,  já, euro-americana.

Isto é, a descolonização, ou o abandono, de 1974-1975, pode não ter sido o fim de Portugal se vier a ser entendida apenas como o fim de certo princípio, isto é, se os portugueses tiverem engenho e arte para uma reinterpretação d'Os Lusíadas através da Mensagem, estruturando-se o Portugal, poder ser por meio dessa superação do império que é a procura do mar sem fim e dessa nova fé que é a conquista da distância de uma super-nação a caminho da república universal.

O Portugal persistente ficou simples Europa do Sudoeste, só podendo ser verdadeiramente europeus se assumir uma certa  maneira portuguesa de entender a Europa. Dessa Europa que desbravou o mar oceano, para Ocidente e para Sul. Que descobriu a América e o Brasil, que transformou as tormentas em boa esperança e que peregrinou o caminho marítimo para a Índia, a China e o Japão. A Europa que circum-navegou a terra inteira num abraço armilar, como gostava de sublinhar outro dos nossos permanentes mestres, Almerindo Lessa.

Por mim, quero reconhecer que valeu a pena esse investimento lusotropical de cinco séculos e que a própria Europa necessita desta visão portuguesa do universo. Porque, como dizia Fernando Pessoa, foi por Portugal, pelos Descobrimentos que se deu  a conversão da civilização europeia  em civilização mundial.

Voltando a Agostinho da Silva, talvez importe proclamar que falta uma realidade mais alta, aquela que nos permite efectivamente fazer do mar, o mar sem fim, aquela que se comporia do que melhor tiveram Ocidente e Oriente, uniria Cristo e Lao-Tseu e nos daria, num eterno sendo e vir a ser, aquele Espírito Santo que á a fusão perfeita do Todo e do seu Nada.

Porque, utilizando agora palavras de Fernando Pessoa, só pode conseguir tal intento a nação que for pequena, e em que, portanto, nenhuma tentativa de absorção territorial pode nascer, com o crescimento do ideal nacional, vindo por fim a desvirtuar e desviar do seu destino espiritual o original imperialismo psíquico, o imperialismo dos poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece.

 

A simbiose

Pertenço àquele grupo de portugueses que continua a considerar como missão a nossa ancestral tendência para nacionalizarmos tendências estrangeiras com a consequente vocação para a simbiose e o hibridismo.

Porque somos mais propensos para a heresia para o dogma, para a heterodoxia do que para a ortodoxia, para a poesia do que para a filosofia. Mais crentes do que especulativos, mais homens de aventura do que calculistas, mais pragmáticos do que empiristas

Jorge Dias dizia que o português é um misto de sonhador e homem de acção, ou melhor, é um sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e realista ... Mais idealista, emotivo e imaginativo do que homem de acção ... individualista ... possui grande fundo de solidariedade humana e, sobretudo, a saudade, essa mistura de opostos, esse humor nosso merancórico.

Fernando Namora, mais recentemente vem falar na dualidade ou na dialéctica do nosso modo de ser consistindo nessa capacidade de sonho e por assim dizer de desmesura e ao mesmo tempo de reduzir o sonho a coisas  bem terrenas como o comércio, o oiro, a conquista lucrativa, essa estranha e inextricável coabitação da generosidade e da cobiça, do desprendimento e do sabor da coisa possuída, da impetuosidade arrojada com o súbito desencanto, da crença que não mede obstáculos com a ressaca derrotista, esse ter asas e, por fim, se bastar com o mísero chão.

Também Agustina Bessa Luís fala no português como poeta, soldado , aventureiro; intelectual e mundano; vítima e herói; experiente e desprecavido. Boa alma e cidadão discutível. Sentimental  e capaz de frio juízo sobre todas as coisas. A sua liberdade é interior e não feita à imagem das circunstâncias.

Como salienta a mesma ficcionista: nós temos uma cultura afectiva...Somos um povo que sempre quis viver aproximado do estado de natureza, e sempre quis evitar o estado de guerra. Aquele estado de natureza que permite aos homens viverem em comum conforme a razão, sem consentir  um superior a quem se outorgue competência além da que as leis conferem.

Eis-nos, um quarto de século volvido sobre a descolonização africana, de novo, no começo, por sobre as ruínas daquilo que muitos vaticinaram ser um Portugal dos tempos do fim. Aliás, muitos portugueses parecem esquecidos daquilo que Gilberto Freyre disse: que o português se tem perpetuado, dissolvendo-se sempre noutro povo a ponto de parecer ir perder-se nos angues e culturas estranhas. Mas comunica-lhes sempre tantos dos seus motivos essenciais de vida ... Ganhou a vida perdendo-a.

 

A pátria da língua portuguesa

A citada frase de Fernando Pessoa, da minha pátria ser a língua portuguesa,  implica algumas anotações, como o próprio poeta logo acrescentou, ao salientar que a base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e acção é a essência da vida. O idioma, por isso mesmo que é uma tradição verdadeiramente viva, concentra em si, instintiva e naturalmente, um conjunto de tradiçöes, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver, acrescentando que estamos neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diferentes, em que somos iniciados à nascença; e cada uma tem, no idioma que é o seu, a sua própria palavra de passe.

Aliás, a frase serviu de mote para aquilo que o português e cidadãos brasileiro Agostinho da Silva chegou a proclamar: agora Portugal é todo o território de lingua portuguesa. Os brasileiros lhe poderão chamar Brasil  e os moçambicanos lhe poderão chamar Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo que Fernando Pessoa julgou ser a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora é essa a Pátria de todos nós.

Diga-se, a este respeito, que se uma nação na Idade Média, era antes de mais, uma língua, eis que nestes últimos anos do século XX, tal asserção  pode voltar a ser mobilizadora da Comunidade Lusíada, onde, ao lado do ius soli e do ius sanguinis, tradicionais elementos determinadores de uma nacionalidade, se pode sobrepor um ius linguae, o ser-se natural da língua, como já referia Fernão de Oliveira na sua Gramática.

Mas também não nos esqueçamos do avisado conselho do mesmo Fernão de Oliveira: os homens fazem a língua e não a língua os homens. É que qualquer linguagem, especialmente a linguagem poética, ao criar imaginariamente uma nova realidade, gera um significante comunitário de afectos, susceptível de tradução política, se para tanto houver engenho e arte.

 

 

A comunidade de significações partilhadas

O pretexto para tão grandioso sonho radica na circunstância de, no dobrar do milénio, deverem existir cerca de duzentos milhões de seres humanos que terão a língua portuguesa como língua oficial.

Dizemos sonho e não utopia ou acronia. Com efeito, não é utopia porque há lugar e gente para o concretizar; não é ucronia porque a semente já existe. Poderemos qualificar tal projecto como um ideal histórico concreto, conforme a definição de Jacques Maritain, como uma imagem prospectiva, significando o tipo específico de civilização para o qual tende certa idade histórica; não é como as utopias, um ser de razão, mas uma essência de ideal relaizável (mais ou menos dificilmente... não como obra feita mas como obra a fazer-se), uma essência capaz de existência e chamando à existência para um dado clima histórico, respondendo seguidamente a um máximo relativo (relativo a esse clima histórico) de perfeição social e política e apresentando somente, - precisamente porque implica uma ordem efectiva para a existência concreta, - as linhas de força e os esboços ulteriormente determináveis de uma realidade futura.

Um espaço de lusofonia abrangendo Portugal e as comunidades portuguesas emigradas, com direito a voto no Estado da República Portuguesa, o Brasil, os  PALOP, os territórios do antigo Estado da Índia, Timor Loro Sae e todo esse arquipélago de pequenas minorias portuguesas, descendentes de portugueses ou filiadas na cultura portuguesa, que falam ou, pelo papiamento, ainda têm a memória, e saudades de futuro, do palavrar em português.

Resta saber se, entre todos esses lusofalantes, há a hipótese de construir, reconstruir ou consolidar uma comunidade de significações partilhadas ou um contexto de afinidades, onde muitas identidades podem confluir: não apenas as da eurolusitanidade, da afrolusitanidade e da brasileiridade, mas também a de outros lusopartilhantes, como os indoportugueses, os sinoportugueses, os timorenses, os lusodescendentes do Hawai, bem como os que também lusiadamente se revêem nas terras frias da Europa central ou nas brumas atlânticas

Com efeito, a possibilidade da Comunidade Lusíada, ou de uma Confederação dos Povos de Língua Portuguesa, abarca um espaço mais amplo que o do lusotropicalismo ou que o do saudosismo lusitano. E não deixa de poder ser uma comunidade de significações partilhadas mesmo quando as regras dos prontuários linguísticos não são canonicamente observadas na língua maternal ou na língua escolar

Ela tem sobretudo uma dimensão metapolítica, à semelhança do mar sem fim de que falava Fernando Pessoa, constituindo mais uma entidade espiritual que uma organização política,  revestindo a forma de um povo não realizado, a florescer, sem aquele peso da terra e do poder estadual, mas com o sem fim do poder dos sem poder que, no fundo, é a suprema forma de poder, porque a mais metafísica

 

 

O desafio lusíada

Deixem-me acescentar que, tal como pela etimologia semítica, Ibéria quererá significar passagem, passagem entre a Europa e a África, assim Portugal, onde a terra acaba e o mar começa, sempre foi um cais de partida para o Mar Oceano, o sítio onde as ondas lhe batem nos muros, sempre sensível àquela visão do poder que considera dependendo todo o manejo da monarquia da navegação de frotas e armadas, e dos ventos que se mudam por instantes, como dizia o Padre António Vieira no Sermão de Acção de Graças de 1695.

Conforme Jaime Cortesão, Portugal é o resultado de uma convergência atlântica, dado que tudo impelia a gente portuguesa para o mar... A actividade marítima estava não só nas raízes da nacionalidade, donde sobe como seiva para o tronco, mas é como que a linha medular que dá vigor e unidade a toda a sua história.

Por seu lado, Jorge Dias acentuava que Portugal não teria sobrevivido até hoje, como nação independente, se não tivesse ligado o seu destino ao mar, estabelecendo amarras tão fortes com outras terras e outras gentes.

Consideramos, com efeito, que a Comunidade Lusíada é apenas um passo para a recriação do espaço maior de uma nova leitura da respublica christiana com a Ibéria, a América de Língua Portuguesa, a América de Língua Castelhana e a África dos PALOP e, portanto, pela criação de uma comunidade onde a união ibérica se extinguiria como fantasma, porque é muito mais aquilo que, pelo futuro, nos une, do que aquilo que, no passado, nos dividiu.

O regresso ao futuro de um Mar-Oceano, neste Atlântico a caminho do Sul, talvez deva continuar a senda daquela antiquíssima rota da Índia que, pela Volta da Mina e pela Volta do Sargaço circundava pelos Açores e pela Madeira, a caminho ou no regresso da Guiné, do Brasil, de Angola. Daquela rota que, depois de varar a Boa Esperança e de refrescar-se no Rio dos Bons Sinais, navegava pelo Indico e pelos mares da China, do Japão e de Timor. Até porque o Pacífico tende a ser o Atlântico e este o Mediterrâneo dos próximos tempos...

 

Uma última palavra quero deixar para brasileiros, porque, entre os potenciais factores de dissociação do processo de consolidação da comunidade lusíada, avulta a circunstância da grande potência que é o Brasil, e que constitui a maioria absoluta do elemento humano da Comunidade Lusófona continuar a viver política e diplomaticamente num certo introspectivismo. E sem a participação liderante do Brasil nesse processo nunca será possível a vivência política de tal comunidade.

Até sou dos que sufraga a ideia de Joaquim Barradas de Carvalho, segundo a qual o Brasil representa mais Portugal do que talvez certas formas culturais de Portugal de hoje, demasiado presas a influências europeias e principalmente francesas, e quase subscrevo a tese de Agostinho da Silva, para quem no dia 1 de Dezembro de 1640, o que verdadeiramente se separou de Espanha não foi Portugal, foi o Brasil e que Portugal nessa data foi feito independente pelo Brasil e continuou independente porque só na Europa se podia, através da Corte de Lisboa, fazer a política do Brasil. Neste sentido, a própria mudança da capital para o Rio de Janeiro, face às invasões napoleónicas, significou que a nossa entidade política matricial mudou-se de sua província europeia para a sua metrópole transatlântica.

Acresce que muitos dos melhores intelectuais portugueses dos séculos XVIII e XIX são brasileiros de nascença e de mentalidade solta, de Alexandre de Gusmão a Matias Aires, de José da Silva Lisboa a José Bonifácio Andrade e Silva. Como esquecer que a primeira obra literária que se escreveu no Brasil é o Diálogo sobre a Conversão do Gentio do Padre Manuel da Nóbrega, redigida em 1557 ? Como esquecer que foi o brasileiro Diogo Gomes Carneiro (1618-1676) que escreveu a Oração Apodixica aos Crismáticos da Patria, em 1641? Como esquecer esse grande brasileiro chamado Padre António Vieira? Como abstrair de Agostinho da Silva ter a cidadania brasileira ? Com olvidar que foi Gilberto Freyre que deu à Comunidade Lusíada a teoria do lusotropicalismo?

Mas também não sou pessimista. Como proclamava António Ferro, mesmo que façamos tudo para nos desentendermos, para nos afastarmos, as nossas almas hão-de encontrar-se às escondidas, porque são partes do mesmo todo. Preferível, portanto, que juntemos, duma vez para sempre, essas duas saudades e que proclamemos dentro de nós - soberania que não ameaça as fronteiras de ninguém ! - os Estados Unidos da Saudade de Brasil e Portugal.

A viagem que durante cinco séculos encetámos pelos mares, além do mar, e, depois, como bandeirantes, através das selvas e sertões, tornou-nos cidadãos do mundo, vagabundos de um sonho universal. Basta tão só que não percamos o pragmatismo da Aventura e o realismo do Sonho. O que levou e continua a levar os Homens aos Descobrimentos é essa ideia eterna de ser o Homem a fazer a História e não a História a fazer o Homem, mesmo sem saber que História vai fazendo. Porque o Homem, dizia Pascal, supera infinitamente o Homem. Porque, como Paul Claudel pôs na boca de Cristóvão Colombo: quanto mais além, mais além ainda.