ERA UMA VEZ,

NUM DEPOIS DE MAASTRICHT

 

 

Publicado em Roteiros

 

Era uma vez o Reino da Dinamarca, no primeiro dia do mês de Junho de 1992. É mesmo aqui e agora, neste preciso dia em que escrevo estas linhas, quando um dos dois mais antigos Estados Nações da Europa, através de um referendo, acaba de dizer não àquilo que os governos da Europa Comunitária pareciam considerar inevitável.

Era uma vez um Povo da Dinamarca que disse não àquilo que uma grande aliança dos principais partidos, das confederações patronais e dos sindicatos institucionalizados lhe sugeriam.

Talvez neste dia tenha recomeçado a Europa. A Europa dos Povos. A Europa dos Cidadãos. A Europa das Nações. Daqueles povos, daqueles cidadãos e daquelas nações que não querem ser incluídos na segunda velocidade dos Estados Secundários, nem ser condenados a andar a reboque de uma qualquer Pentarquia de Potências, sempre tentadas pela ideia da locomotiva dos Estados Directores.

É evidente que, como português e como europeu, me congratulo com a decisão do povo dinamarquês. Era preciso que a funda de um qualquer David derrubasse a arrogância do Golias da tecnocracia europeísta.

E apetece-me dizer isto sem qualquer ambiguidade. Como português sem responsabilidades institucionais no aparelho de Estado ou nos órgãos administrativos dele dependentes; como português sem participação, cimeira ou basista, nos directórios partidários; como alguém que pode dizer o que pensa porque não fala em representação de ninguém e nem sequer quer transmitir recados de outrem. Um português que gosta de ser europeu em Portugal e que, lendo os sinais dos tempos, tem esperança em Portugal e na Europa.

Com efeito, esta Europa institucional que vamos tendo, se é formal continuadora do projecto dos Tratados de Paris e de Roma da década de cinquenta, talvez não continue integralmente fiel ao espírito dos fundadores desse formidável movimento de paz pelo direito que se sucedeu à Segunda Guerra Mundial. Talvez tenha perdido muitos sentidos do gesto inicial.

Os sonhos só se realizam através das circunstâncias. Os sonhos de quem pensou em plena Guerra Fria têm de voltar a ser sonhados depois do fim do comunismo. A Europa não está apenas nas margens do Reno nem acaba com o alargamento a certas zonas ribeirinhas do Atlântico e do Mediterrâneo. A Europa, neste fim de século, pode ir da Ilha do Corvo a Vladivostoque. Pode juntar as Três Romas e todos os respectivos projectos de Renascimento. Pode e deve ser mais do que o processo de ultrapassar os contenciosos franco-alemão, britânico-continental ou hispano-central.

Era uma vez uma liberdade nacional dinamarquesa cuja democracia permitia referendos sobre acordos internacionais e admitia política para além dos partidos, dos patrões e dos sindicatos do sistema.

Era uma vez um reino da Dinamarca que não se amedrontou com o fim das ajudas e dos subsídios dos muitos fundos e dos futuros pacotes.

Quem me dera poder vir a dizer: era uma vez uma República Portuguesa, num qualquer dos anos que restam do século XX. Tem de ser uma vez a vez de um dos dois Estados Nações mais permanecentes da Europa. Quando o mesmo tiver a liberdade de poder por dizer sim à autêntica liberdade europeia, mesmo dizendo não a anteprojectos de gabinetes eurocráticos. Quando ele deixar de se sentir uma periferia a caminho da integração e se voltar a assumir como o próprio centro, tão europeu como qualquer outra parte da Europa.

Quem me dera poder dizer ser a vez duma Europa mais livre que, abandonando a tentação dos Estados Directores, proclame que a unidade não exclui a diversidade e, muito menos, o orgulho das seculares franquias nacionais.

Uma nova espécie de organização política de um grande espaço inter-estadual e inter-nacional. Uma realidade nova que quebre as estafadas classificações das federações e das confederações; que ultrapasse e surpreenda o jus intercivitates procedente do modelo da Paz de Vestefália, do cujus regio ejus religio destruidor da unidade da Res Publica Christiana, e do regime da hierarquia das potências consagrado na Conferência de Viena.

A Europa que pode ser constitui uma forma institucional a haver capaz de fazer a mistura da hegemonia do mais forte com o consentimento real dos menos fortes, como visionava Raymond Aron. Isto é, o estabelecimento de um universalismo, através de um mitigado neo-feudalismo, onde os Estados Nacionais se conciliem com os Estados Impérios, sem o irredentismo dos primeiros e sem a arrogância dos segundos. Uma nova fórmula capaz de fazer conservar a cada Estado, de forma simbólica, a soberania e a independência, mesmo que a soberania seja limitada e mesmo que a independência seja interdependência. Onde cada Estado possa actuar como uma espécie de pessoa/máscara no teatro das grandes representações internacionais. Onde esses diversos e diversificados Estados, do pequeno ducado ao grandioso herdeiro do Reich, do médio Portugal ao conglomerado espanhol, todos se possam unir através de uma espécie de encomendação a um nível superior, sem necessidade de um Papa Temporal, de um Imperador, mesmo que ideoógico, ou de um qualquer Pai dos Povos. Onde não seja preciso Napoleão, Hitler ou Estaline. Onde, em vez da hipócrita igualdade de cabeça, como acontece na Assembleia Geral da ONU, haja alguns Estados que sejam mais iguais do que outros, com direito a voto de qualidade, proporcional ao respectivo poder, sem a brutalidade institucional de um direito de veto, como acontece no Conselho de Segurança da mesma ONU.

Os avisos de Charles de Gaulle e de Margaret Tachter ainda tinham a sombra de potenciais hegemonistas. O sinal do povo dinamarquês não pode ser entendido como uma manifestação de quaisquer dissimuladas revoltas de candidatos a potências directórias. É apenas a consequência natural de uma exigência do direito à diferença. É, sobretudo, uma profunda manifestação democrática.

Porque, na democracia, o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido. Porque na democracia não há reis-sóis, individuais ou gabinetais que possam dizer L'État c'est moi. Na democracia, L'État c'est tout le monde, L'État c'est nous.

A Europa somos nós. Os dinamarqueses, os portugueses, os irlandeses, os gregos e os muitos outros povos das Franças, das Alemanhas, das Espanhas, das Britânias, das Itálias e dos Benelux.

A Europa não são apenas eles, os eurocratas, os parlamentocratas, e todos os cratas que temem as vozes irreverentes dos que não são moldáveis pelos unidimensionais partidos, sindicatos e patronatos, cada vez mais neo-corporativamente enquistados no statu quo, esses estados que condicionam os Estados.

Era uma vez uma Europa mais livre e mais unida, enraizada no direito à pátria e já descolonizada de algumas tentações imperiais, capaz de dizer a todas as nações sem Estado deste nosso tempo que a exigência dos grandes espaços não tem que ofender os princípios da auto-determinação nacional.

Era uma vez, nos primeiros dias de Junho de 1992, por acaso, os últimos da primeira Presidência Portuguesa da Comunidade Europeia. Lá para o reino da Dinamarca, os génios invisíveis da cidade tinham despertado e desfeito os fios sistémicos de uma tecnocrática política de sigilo que generosos iluminados pelos novos amanhãs que cantam haviam urdido. Apesar dos cidadãos, apesar dos povos, apesar da história.

Lá mais para o Sul, na cidade maravilhosa, sobre o oceano moreno, uma cimeira dita da Terra, apesar da retórica, ameaçava demonstrar a todo o mundo que a política podia ser feita por internacionais de sociedades civis, para além dos governos. Lá mais para o sul, começava a perceber-se que dizer ambiente, dizer ecologia, dizer paisagem tem de voltar a ser dizer pátria. Afinal, o que é antigo não tem que ser antiquado. Afinal, fazer passado presente é ter saudades de futuro. Afinal, pode voltar haver esperança. Esperanças de Portugal, futuro do Mundo.

 

Up Arrow.gif (883 bytes)

início.bmp (3862 bytes)

Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.