ESQUERDISMOS

Sentados na passividade dos nossos sofás, vamos assistindo à desmontagem, pedra a pedra, de um monstro de betão que, a ocidente, se designa, justamente, por muro da vergonha, simples segmento de uma outra fronteira mais ampla que outros designaram por cortina de ferro. Marcas vivas das trancheiras mentais de uma especial forma de guerra, a dita guerra fria, onde a política se transformou na efectiva continuação de uma guerra civil mundial por outros meios.

Observando inadvertidamente o que se passa em Berlim, corremos, contudo, risco de nos esquecermos de olhar para dentro de nós, para as origens guerreiras das nossas famílias politico-culturais, criadas durante o processo revolucionário à imagem e semelhança dos contendores dessa guerra civil mundial.

Porque na política portuguesa continua a existir uma outra espécie de muro da vergonha que maniqueísticamente continua a dividir-nos políticamente entre Deus e o diabo, entre um pretenso bem e um pretenso mal, onde bem e mal se confundem nas respectivas posições antitéticas.

É esse maniqueísmo que persiste nas nossas tradicionais posições de esquerda sempre em guerra santa com um qualquer fantasma, fosse o fascismo de antigamente, sejam os conservadores de hoje, conforme transpareceu no recente discurso do Dr. Jorge Sampaio para os socialistas europeus ouvirem.

Nos outros tempos do PREC foi a fronteira entre os que eram pela revolução e os que estavam contra a revolução. O muro chamava-se , então, muralha de aço de um tal companheiro Vasco que declarava, monomaniacamente, que quem não estava por ele estava contra a gloriosa marcha do comboio da história.

E a velha esquerda da pré-revolucionária oposição democrática, dita da unidade antifascista, se, durante os primeiros tempos do PREC, ainda festejou os primeiros de Maio do unitarismo, pouco a pouco, começou a perceber que as fronteiras do essencial passavam no seu próprio seio.

Com o 28 de Setembro, o PS, que ainda ia de Manuel Serra a Francisco de Sousa Tavares, incluindo as próprias excrescências trotskistas de Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira, chegou mesmo a considerar que o spinolismo era um desvio de direita para-fascista. Com efeito, só a partir da questão da unicidade sindical e, muito particularmente com o caso "República", é que o soarismo vai quebrar o cordão umbilical que o prendia ao sincretismo genético da dita unidade antifascista e estabelecer as novas fronteiras da pós-revolução: a liberdade, à maneira ocidental, das democracias burguesas e os socialismos revolucionários marxistas-lenistas ou marxistas-terceiro-mundistas.

Paradoxalmente, os homens da Alameda que ajudaram a quebrar as algemas do gonçalvismo, os campeões da liberdade da "Europa connosco" mantiveram o programa marxista do PS, apesar de, na respectiva prática, sempre ter sido outra a teoria.

Com efeito, só no Congresso pós-soarista que levou Vítor Constâncio ao poder é que o PS eliminou o marxismo do respectivo programa e decidiu enveredar pela via rocardiana que o continua a comandar. Ao mesmo tempo, subiam ao poder no partido todos aqueles esquerdistas que durante o PREC estavam à esquerda intelectual do PS de Mário Soares, mas que, na pós-revolução, tiveram tempo para encher de clássicos liberais os vazios da respectiva formação do pós-guerra.

Hoje, Jorge Sampaio e os respectivos companheiros continuam a sofrer as angústias existenciais da respectiva geração. Uma esquerda que para se afirmar tem necessidade que exista um determinado inimigo de direita, para que as respectivas premissas possam atingir uma qualquer racional conclusão. E quando ele não existe inventa-se. . .

O problema está no facto de não existir esse necessário adversário, seja uma direita troglodita e autoritária, de acordo com as pieguices de certas revistas francesas, seja um "status" politico-económico que permita a existência de conservadores de obra feita.

O mal do Dr. Constâncio e do Dr. Sampaio não é que não tenham razão. Eles talvez tenham razão, a nível de esquerda, evidentemente, mas para uma esquerda que não existe nem aqui nem agora. Talvez por isso é que o Dr. Constâncio desistiu; talvez por isso é que o Dr. Sampaio foi obrigado a ter que fazer uma coligação localizada com um PC ainda liderado por Álvaro Cunhal.

Para derrotar os conservadores, situados a oeste, foi obrigado a um casamento de conveniência com os conservadores situados mentalmente num leste que tende a desaparecer.

É evidente que o Dr. Sampaio não está a repetir o frentismo popular das teses de Dimitrov nem o unitarismo antifascista desejado por Cunhal nos tempos do PREC. Talvez o conforte a memória do primeiro governo do Presidente Mitterrand, essa espécie de contrato a prazo e com muita má fé de ambas as partes, mas qualquer das modalidades não parece suficiente para a instauração da credibilidade da liderança do PS que já se disse jovem.

O Dr. Sampaio mais do que lutar com Marcelo Rebelo de Sousa e com Cavaco Silva, já que Freitas do Amaral lhe ofereceu aliança a prazo, tem que combater um adversário que, infelizmente para ele, não se manifesta: todos aqueles socialistas que o consideram como simples líder de transição.

O Dr. Sampaio sabe perfeitamente que os socialistas portugueses, na sua maioria, pouco se preocupam com a modernização ideológica do socialismo europeu e português e que raros devem ler a revista "Finisterra". A maioria dos seus "camaradas" de partido tem saudades do poder, seja o do PS sozinho, sonhando a frustrada mexicanização, seja o PS do Bloco Central, sem as medidas de austeridade de Ernâni Lopes, a poder gerir os milhões dos fundos comunitários.

O PS que temos é de um esquerdismo quanto baste que prefere as delícias da "era dos organizadores", ora tecnocratas, ora gestores públicos, ora beneficiando da transformação das nacionalizações do 11 de Março em EPs e IPEs, ora clamando por privatizações rigorosamente controladas pela manutenção do emprego.

Todos esses PSs pragmáticos pouco tem a ver com a excelente mobilização de jovens doutrinários e de idealistas da esquerda mais ou menos liberal que o Dr. Sampaio levou a cabo, tentando transformar a "Convenção da Esquerda Democrática" num partido para o nossos tempos.

O Dr. Sampaio, com o ausente-presente de Belém, tem os dramas que teve o velho PRP, com o Dr. Afonso Costa entre Paris e Lisboa, e nem sequer pode gerir os benefícios do clientelismo de quem detém o poder em maioria.

Tem, pelo menos, o prazer de conversar com o escritor José Saramago e com todos aqueles que, no PCP, apostariam num rápido pós-cunhalismo ou pós-brejnevismo , com menos espectros e menos figuras de cera. Só não sabemos se o Dr. Sampaio tem jeito para missionário da esquerda que se deixou hierarquizar pelo defunto totalitarismo do "sol da terra".

Em todo o caso, seria triste e empobrecedor que a política portuguesa perdesse por causa dos Paços de Concelho de Lisboa esta nobre dedicação ao sonho do socialismo pós-marxista. Porque àgua mole em pedra dura tanto dá até que fura, mesmo que sejam os empedernidos muros de uma guerra civil fria que artificialmente nos dividem.

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Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.