ESTAR À DIREITA OU SER DE DIREITA
A recente discussão sobre as fronteiras entre a direita e a esquerda veio, de novo, suscitar o eterno problema de qualquer sistema político pluralista, onde há sempre quem esteja à direita e quem esteja à esquerda, por força do sufrágio popular, bem como quem seja de direita e quem seja de esquerda, por força das convicções, das concepções do mundo e da vida, dos valores, dos princípios, das crenças.
É evidente que se o estar à direita ou à esquerda é sempre relativo a um certo espaço e a um certo tempo, já o ser de direita ou de esquerda atinge o plano das crenças e dos princípios, ultrapassando, portanto, o mero circunstancialismo geográfico dos hemiciclos parlamentares e dos seus mimetismos sociológicos. Basta pensarmos no liberalismo burguesmente capitalista do século XIX que, de uma posição de esquerda revolucionária, evoluiu para uma situação de direita, enquanto certos tradicionalismos antecapitalistas até passaram para a esquerda socialista.
Em Portugal, aqui e agora, quem está à direita pode não ser de direita tal como o ser de esquerda pode não significar estar à esquerda. Há muitas direitas e muitas esuqerdas e, felizmente , há cada vez mais direitas e cada vez mais esquerdas. Em Portugal, aqui e agora, vive-se em plena era de uma pós-revolução que se assume como uma espécie de ressaca de uma revolução que se disse de esquerda contra uma direita que seria o antigo regime, posições essas que penetraram de forma absorvente o imaginário dos actores políticos, expandindo-se na verborreia discursiva.
Vamos procurar detectar essas muitas direitas da direita, tentando pôr entre parentesis o que certa esquerda arqueológica continua a mistificar sobre a direita. Porque, neste concreto quintal de Portugal, uma das grandes linhas de demarcação entre a direita e a esquerda talvez esteja no facto da direita, por se se sentir refutada, ter a humildade de ler o que a esquerda, que se pensa triunfante, escreve e de não ser tão frequente a situação inversa...
Sobre a concreta direita portuguesa do nosso tempo, podemos dizer, muito prembularmente, que hoje ela não tem cartilha, raramente está de acordo quanto à ordem de preferência dos respectivos mestres e não reconhece ninguém como efectivo líder. Vive cada vez menos à procura do tempo perdido e começa a perceber que a respectiva unificação política só pode conseguir-se através de um movimento ascendente, de cima para baixo: da Sociedade Civil para o Estado, da inteligência para o Poder, dos princípios para a acção.
A natural variedade da direita implica que possam estabelecer-se vários tipos-ideais de direita, várias direitas dentro da direita, conforme a perspectiva de análise e os conceitos operacionais.
Há, em primeiro lugar, a chamada direita sociológica, uma grande massa de portugueses que sente que é de direita, mesmo quando não se diz de direita, e que vai votando, útil ou inutilmente, em vários partidos. A maioria deles apenas reage instintivamente e só de formas intermitente se congrega num determinado partido político.
Paralelamente a esta grande direita silenciosamente despolitizada, existe uma direita politicamente comprometida com o ser de direita e é neste grupo que os vários cortes operacionais podem adquiri contornos adequados.
Pensemos, desde logo, na distinção entre a chamada direita dos interesses e a chamada direita dos valores ou direita dos princípios. A distinção tem utilidade, não tanto para contrapor a má direita do boa direita, mas, sobretudo, para chamar a atenção para o facto de existir , e sempre ter existido, uma direita que não aceita os valores do capitalismo individualista. Uma direita que mesmo quando luta por um programa liberal de governo, não está a confundir os meios com os fins nem as vias com os objectivos.
Sou daqueles que acredita serem os valores da direita portuguesa como globalmente incompatíeveis com os valores de certos liberalismos estrangeirados, mais ou menos traduzidos do calvinismo anglo-saxónico que talvez pouco tenham a ver com certas constantes do modo português de estar no mundo, tanto antes como depois da reforma luterana.
Outro dos cortes conceituais que costuma fazer-se da direita, conduz à distinção entre a direita tradicional e a nova direita. As expressões são bastante equívocas porque há muita direita velha que é revolucionariamente antitradicionalista e muita direita nova que não é, nem gosta de ser chamada como nova direita.
Com efeito, nem toda a direita foi salazarista e até existe uma certa direita democrática anti-autoritarista e antitotalitária, desde a direita republicana, independente da maçonaria, àquilo que foi oposição monárquica ao salazarismo, primeiro integralista e , depois, personalista.
Não nos esqueçamos que muita da direita que hoje dizem tradicional, até foi vanguardista, modernista e messianicamente construtora de um Estado Novo que, em muitos aspectos, foi efectivamente novo. E quem fala na direita saudosista esquece, pura e simplesmente, que o saudosismo foi uma criação republicana, daquilo que pretendia ser uma esquerda republicana e que, com o correr do tempo, acabou por ser acolhido e difundido por certa direita filosófica.
Referindo sumariamente a questão da nova direita, importa sublinhar que muita da direita nova não cabe no neoenciclopedismo da chamada nova direita/nova cultura, difereindo fundamentalmente nas raízes doutrinárias e no complexo axiológico.
Há a direita que está nos partidos e a direita que se diz independente. Só que a direita que está nos partidos não se torna ipso facto dependente e a direita dita independente tem, não raras vezes, sujado as mãos em compromissos partidários conjunturais.
Outros cortes operacionais ainda poderão fazer-se com alguma vantagem. Pensemos, por exemplo, na distinção a fazer entre a direita que sempre foi de direita e certos cristãos-novos da direita, especialmente os filhos espirituais dos nossos sucessivamente retardados Maios de 68. Há, de facto, alguma borbulhagem direitista com certos resquícios leninistas, estalinistas e maoistas, especialmente a nível de alguns opinion makers e de outros semiclandestinos fazedores de estratégias e de factos políticos.
Há também alguma direita que se ufana em ser direita oficialmente reconhecida pela esquerda dominante como inteligente e que, de tanto se envaidecer por esses elogios, corre o risco de se transformar na direita que convém à esquerda.
Concluindo, podemos dizer que há muitas direitas que se podem transformar na futura direita de Portugal. Porque quem neste momento está à direita, apenas está à direita da esquerda, diluindo-se crescentemente num situacionismo hibrido e de sistema que proclama não ser de direita nem de esquerda.
Um situacionismo que segue, naturalmente, as lições de todos os situacionismos que não são carne nem peixe, dado conceberem a maioria de forma meramente quantitativa.
Se, por exemplo, um qualquer membro deste governo, sinceramente social-democrata, segundo a ideologia bernsteiniana, cometesse a asneira de dizer politicamente tudo aquilo que pensa, seria naturalmente rejeitado pela maioria. Daí que ele tenha talvez de calar noventa por ecnto daquilo que pensa.
Se outro qualquer membro do governo que não leu Bernstein, nem no resumo de uma enciclopédia especializada, e gosta de dizer que não é político, começasse, do mesmo modo, a dizer tudo aquilo que pensa, em nada se distinguiria de um socialista catedrático, ministro de Bismarck, Napoleão III, Oliveira Salazar ou Lurdes Pintasilgo.
Não pode, pois, o actual poder proclamar que o mito do pragmatismo é de fazer o discurso da ordem e da modernidade. A essência do poder é procurar manter-se, como muito judiciosamente confessou Oliveira salazar.
Daí que, hoje, ser-se de direita ou ser-se de esquerda começa a ser um risco. Risco de quem prefere a coragem de ser minoria, porque sabe que a saúde não deixava de ser um bem, mesmo que só houvesse doentes no mundo.
A coragem daquelas minorias que proclamam a necessidade de uma prévia revolução moral ou cultural, como dizia Péguy. A insolência de quem diz não ao politique d'abord, preferindo o primado do espiritual.
A serenidade histórica daqueles que não se importam em defrontar os ventos da história e as ondas da moda.
Já Jacques Maritain dizia que não há governos mais fracos que os governos de direita dirigidos por homens de esquerda. Que dizer de governos que estão à direita, dirigidos por homens que não são da direita, mas que estão marcados por fantasmas de direita e por complexos de esquerda?
A resposta pertence ao tempo. À esquerda que é de esquerda e à direita que é de direita.
Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.