DO ATLÂNTICO AO ÍNDICO, A BOA ESPERANÇA!

Por José Adelino Maltez

 

Esta crónica é escrita em pleno coração da África negra, dado que estou a fazer uma viagem de ligação aos esforços de dois principais partidos oposicionistas de Angola e Moçambique, não para tomar partido, que o não sei, e até nem posso, ou quero, mas, antes, para tentar compreender, bem por dentro, a luta pela construção do Estado de Direito em dois modelos pós-totalitários e pós-autoritários.

 

Parto do princípio que a construção do político em África não pode ser mera aquisição de um modelo de pronto-a-vestir, adquirido, no hipermercado politológico das chamadas transições para a democracia, ou na "free shop" de uma qualquer mordomia subsidiada. Aliás, não haverá democracia em África se ela não for uma democracia efectivamente africana, enraizada no chão moral de uma história sofrida. Quem continuar a traduzir em calão modelos organizacionais que não se adequam ao corpo e à alma dos africanos está, na verdade, a trair todos os que lutam por este valor universal.

 

Também aqui, a liberdade, enquanto libertação, implica espremer gota a gota o escravo que cada homem conserva, escondido, dentro de si. Porque apenas conseguimos passar de súbditos a cidadãos, quando nos auto-determinamos como homens livres.

 

Aliás, a democracia e o Estado de Direito apenas serão valores realmente universais quando os africanos puderem trazer ao mundo da democracia e do Estado de Direito o seu contributo autónomo. Pedirmos aos africanos, e aos partidos que eles constituíram, a mera adesão passiva a um modelo que lhes seja exógeno, é propagarmos a hipocrisia, dos que pegam em mentalidades formadas pelo totalitarismo e as pintam de democratas.

 

O mundo precisa dos contributos civilizacionais da dimensão africana de solidariedade e de espiritualidade e, sobretudo, daquela noção bem africano de tempo, daquele médio e longo prazo que nos podem dar as raízes da eternidade, da permanência e do profundo sentido da história. Como me dizia o Zé Pedro Kachiungo, "os suíços fabricam os relógios, mas os africanos inventaram o tempo..."

 

Quanto mais Angola for angolana e quanto mais Moçambique for moçambicano, mais esses países da lusofonia serão heterónimos da minha própria pátria. E mais cumplicidades e afectos poderemos intercambiar. Para navegarmos no mar sem fim dos oceanos morenos que nos continuam a aproximar.

 

Quanto mais peregrinarmos nosso passado comum, sem paternalismos ultrapassados e sem vinganças envergonhadas, mais futuro seremos e mais exigências de construção do presente se nos exigirão.

 

Que bom sentir-me longe das questiúnculas politiqueiras que nos enredam domesticamente, tanto da judicialização da política, como da politização da justiça. Que força sentir-me universal, fora dos estreitos limites dos construtivismos da constituição Valéria e dos muitos outros eurocalmos capitulacionistas que, em nome das prebendas, se deixam esmagar pelo rolo compressor da hierarquia das potências, mesmo quando invocam o estreito atlantismo dos que não entendem que o nosso Atlântico sempre foi além das Tormentas e nos deu a boa esperança da circum-navegação.

 

Em Angola e Moçambique sinto que cada povo é apenas uma comunidade de destino no universal, onde as nações são daquelas entidades colectivas que, qual pessoas em ponto grande, são seres que nunca se repetem, tecendo laços espontâneos de solidariedade humana.

 

Cada nação é sempre um ponto de passagem para a super-nação futura da república universal. Assim todo o povo que não assumir um sentido de missão civilizacional, tende a ser colonizado e a não cumprir o seu dever para com a humanidade.

 

O verdadeiro nacionalismo português, se não quiser viver na estreiteza do egoísmo, tem que sentir-se como peixe na água face ao emergir do nacionalismo libertador de angolanos e moçambicanos.

 

Quem me dera poder dizer, em Luanda e no Maputo, o que António José de Almeida proclamou no Brasil em 1922: nós, portugueses, agradecemos o facto de tais povos quererem ser independentes!

 

Acontece que, com o fim das guerras civis, em Angola e Moçambique, alguns influentes portugueses começaram a considerar que seria politicamente correcto desconfiarmos daqueles que alguns falsamente julgam como os vencidos do processo, apontando para a necessidade de só dialogarmos com os pretensos vencedores. Como se, numa guerra civil, marcada pela paz dos bravos, pudesse haver vencidos e vencedores. Como, se em democracia, deixassem de existir minas, armadilhadas pelos anteriores instigadores do conflito. Como se os negócios de Estado a Estado pudessem ser instrumentalizados pelos partidos que, num lado, ou noutro, ocuparam o Estado.

 

Com toda a brutalidade, direi que é bem difícil a construção da democracia e do Estado de Direito a partir de situações autoritárias de partido único, quando ainda estão vivos os sinais de aparelhos de poder gerados por uma mentalidade totalitária. Porque se desapareceram os sinais exteriores da anterior repressão, permanecem os subsistemas de medo e são dominantes os efeitos dos donos do poder, tanto a nível da corrupção material como da própria corrupção dos chamados intelectuais. Esses que dizem que o Estado são eles...

 

O oficialismo bonzo do permanecente comunismo burocrático, desde aquele que foi herdado do aparelho colonial ao que foi hiperbolizado pelo sovietismo africano, tem como contrapartida uma agressividade negocista e corrupta dos que, rasgando os anteriores princípios, se fica pela técnica do "enrichez, vous!" e pelo capitalismo selvagem da sociedade de casino.

 

Do quadrilátero angolano, onde importa mais construir um Estado a partir de uma solidariedade nacional, que parece ter ultrapassado o tribalismo, passámos para o cordão imenso da terra moçambicana, onde a ideia de construção nacional é marcante, do Rovuma ao Maputo.

 

Mas sentimos, nesse de Angola à contra-costa, que África continua à procura do seu necessário lugar no mundo, à procura de um qualquer pedaço de justiça universal, nesta voragem de uma globalização que não consegue mitigar o neocolonialismo predador que a continua a estigmatizar.

 

África já sofreu demais, da escravatura à colonização, das guerras civis às guerras por procuração. E nós, portugueses, sem vergonha de um passado de luz e sombras, se acreditarmos que toda a terra é terra dos homens, temos que voltar a proferir a não compreendida frase de António Enes, segundo a qual "não há Portugal sem África".

 

Meu atlantismo, ao dobrar a boa esperança, não deixa de o ser quando, nas costas do Índico, vou mareando. Se Angola é Diogo Cão, D. João II e o rei do Congo, Moçambique vem depois daquele Bartolomeu Dias que morreu tentando. Moçambique é Vasco da Gama, o piloto árabe que nos fez navegar além da Taprobana e o senhor rei D. Manuel I que nos consagrou a armilar.

 

Que Moçambique, apesar de "Commonwealth", tem o cê de cedilha em seu próprio nome bem nativo, um "cê" intraduzível que não é "zê", pois cedilha não zumbe como o chicote, e só se diz em português.

 

Moçambique, aqui e agora, é memória de Craveirinha e coragem de Mia Couto a denunciar Mugawe. Moçambicano foi nosso Eusébio, o senhor Mário Coluna e a velha selecção de hóquei do tempo de Adrião, esses muitos nomes que nos dão aquela comunidade de afectos que venceu a guerra colonial. Até foi aqui ao lado, na África do Sul, que o nosso Fernando Pessoa se formou.

 

Julgo que a paz tem que ser uma consequência da justiça, mas desde que esta tenha, na sua dependência, tanto o direito, enquanto anti-razão ao serviço da razão, como a política, enquanto sinónimo de democracia. De uma política onde o poder e a liberdade permitam um Estado de Direito, onde o Estado pode estar acima do cidadão, mas onde o homem tem que estar acima do Estado.

 

Foi este sonho de libertação que encontrei entre as gentes da UNITA de sempre e da esperançada RENAMO. Dois partidos que se estão a preparar para os novos combates da democracia, assumindo as raízes para poderem construir o futuro.

 

Os dois movimentos nasceram do povo e da resistência e, sem perderem a identidade, assentes na força das convicções, têm com eles a força da espiritualidade africana, dessa memória de sofrimento de quem sofreu o mal absoluto e quer assumir a necessária libertação. E durante estes dias, tem sido minha missão aprender com estes lutadores as preocupações que as más imagens de certos patrícios lusitanos têm propagado, servindo objectivamente os interesses dos que não querem que Angola e Moçambique caminhem para eleições verdadeiramente justas e efectivamente livres.

 

Como companheiro da mesma luta, vim aqui reaprender que vale a pena vivermos como pensamos, mesmo que não possamos pensar como vivemos. Por isso queria dizer aos meus habituais leitores que importa descodificar algumas mensagens dos fabricantes de mentiras que, continuadamente, esquecem que a própria liberdade portuguesa muito deve aos combatentes da UNITA e da RENAMO, dado que estes partidos nasceram da própria vontade dos angolanos e dos moçambicanos, em luta contra certas facetas do totalitarismo e do autoritarismo.

 

Se não quero diabolizar os partidos que estão no poder, do MPLA à FRELIMO, não posso esquecer-me do outro lado, cuja luta tem sido silenciada e desfocada pelos preconceitos interesseiros de certo estadual-negocismo português.