A DENÚNCIA DO SIMULACRO
Os
leitores desta minha coluna já se habituaram a que, ciclicamente, abra tal
espaço à participação da minha amiga M. Teresa Bracinha Vieira. E costumo
fazê-lo sem grandes comentários, para que não se perca a força e a beleza do
Verbo. Como ainda recentemente declarava Mário Chamie ao jornal “Estado de São
Paulo”, onde se reconhecia que os ensaístas e intelectuais de hoje não escrevem
crítica, mas fazem a celebração selectiva de um nicho de escolhidos, “a poesia
é sempre inaugural e desconcertante, porque nela há uma solidão regida pela ética
da verdade e da beleza, um bem maior que dignifica a vida e o
destemor honesto do dissenso. Navegar contra a corrente é combustível dessa
ética, já que a favor das correntes nem mesmo o mar se move. Navegar contra a
corrente é preciso, pois nos ensina a descobrir e a conviver com o sentido de
mão dupla, no ir e vir das ideias e das coisas”. Aqui vos deixo este contributo de revolta e de esperança:
A todos deveria ser garantido o direito ao Ser e à sua transmissão por vida ou por morte.
Eis uma tarefa que não
deveria carecer de afirmação e que, contudo, tem a função de se opor à fácil
digestão de tudo o que nos rodeia, enquanto ordem do dia.
Ao longo da História,
sempre a desengonçada praga de seres fictícios infectou as fontes de energia
dos humanos que reivindicavam em silêncio ou não, a capacidade de se
surpreenderem e interrogarem face à profundidade dos mundos.
Hoje, impõe-se a
obnubilação a quem se aventure, insistindo-se em designar o que não deve ser
olhado, interditando a espessura do mundo e dos seres.
Acredito, não ser
desprovido de sentido, os inúmeros elucidários de como elaborar documentos sem
interesse geral ou particular, bem como a forma que devem revestir as procurações
de mando, os requerimentos não especificados mas que se destinem a averbar o
foro do Ser, não esquecendo todas as
necessidades de consultar as formalidades após falecimentos e demais assuntos.
A tentativa de fractura da
pedra filosofal a tudo obriga.
Acresce, que há que
reduzir ao mínimo custo de manutenção, este estado de coisas, já que a tarefa
da uniformização da sensibilidade existente, teve o seu preço ainda que
realizasse e concretizasse o titanismo estereotipado.
Assim, glorificam-se como
símbolos da dignidade os excelsos na arte de ludibriar.
Universidades,
laboratórios, empresas e famílias, muitas delas, formam hoje uma casta de
avanços infinitesimais que elevam o “saber” que produzem a um estranho nevoeiro
capaz, muitas vezes, de ensombrar o Conhecimento que desde Aristóteles
constituíram o saber humano.
Incapazes de ver para além
do estreito círculo de pequenos achados inúteis, gentes liliputianas, pululam
ligadas a redes de troca do esquecer do Ser, exalando ácidos suores que impedem
os
Homens de clonar a
esperança.
Agrava-se a vida em penar,
a quem quer que tente perceber o mundo interior da absurdidade para que se
deixe de doar parcelas de equívoco que simulam o Todo: de acto mais totalitário,
desconheço melhor exemplo.
Esquecem ou desconhecem,
os radares deste absurdo exército, quais os diferentes pontos de escuta e a
qualidade dos mesmos, razão pela qual, e por via de escassas dúvidas, esta teia
nos seus interstícios, tem por objectivo agredir cegamente a própria identidade
dos seres, retirando-lhes as raízes, sem as quais o mendigar é certo e donde a
liberdade se encontra excluída.
Aguçada a insânia face ao
sucesso do mercado, torna-se urgente reagir aos protagonistas destes tempos e
destes horizontes.
Ninguém desejará
sobreviver preso ao mundo que lhe resta, ao qual se lhe pode subsumir o nome de
“écran-circo-simulado-de contrato-social.”
Não se descuide, todavia,
que o Homem solitário, sofrido e lúcido, não é mero espectador do irrisório mas
trágico espectáculo que não traz à cena.
Este Homem solitário é em
Si um universo separado do destino do restante universo a que se opõe.
Este Homem solitário
acredita que o Estado se mantém também graças ao medo.
Este Homem solitário é
avassalador face à máquina central: enfrenta-a para dar resposta à sua própria
exigência; cumpre sem preço e sem dono o seu próprio íntimo.
Este Homem solitário é
atento à comunidade e aos desígnios com que a desejam confundir, sobretudo
quando por subtis trejeitos se vai entendendo ser um “robot” mais valioso do
que uma multidão tão cedo desta vida descontente.
Vive-se o plexo da
anulação das vidas, da desflorestação das ideias, desdenhado-se os dias
anteriores e posteriores à transgressão, ainda que condenada a não ter preço
como a poesia.
É o desejo de nenhuma
insurreição enfim possível!, que o cimento oculte o brilho!
Não descuido, devo dizer,
que também faz parte integrante de um processo que inculca a meta-mercadoria, a
supressão da magia da infância em cada um de nós, exactamente aquela que leva o
espírito ao desassossego do porquê, aquela cujo propósito era distinguir
sabores e dá-los a experimentar...
Resta a palavra e a
atitude; a denúncia do simulacro.
Creio que sempre germinará
uma força sagrada face aos que só dispõem de aparência de vida; face aos
diminutos por excelência que para si demarcam os limites do universo e, quando
já se não olha em volta, quando não se medem consequências ou, em cegueiras de
poder incontidas, se não cuide que os seres enfrentam riscos insanáveis,
doenças irremediáveis, ouro esverdinhado, então que alguém lembre:
“Vai, voa, Sonho
pernicioso (...) E o Sonho partiu após estas palavras”.
ILÍADA
BEM COMUM DA SEMANA
Não faço parte da procissão apoiante
do Presidente Sampaio, mas tenho de reconhecer que, muitas vezes, a exigência
da função faz ao monge o que, dantes, ao dito cujo, fazia o hábito. Numa altura
em que o Executivo e a partidocracia dominante, incluindo situacionistas e
oposicionistas, cedem ao rebaixamento dos fins da política, como se manifestou
no queijo limiano e agora ameaça explodir com a banana madeirense, é salutar
que a pessoa que assume a função de vértice do nosso corpo político, consiga
pôr o superior acima do inferior e dialogar directamente com os povos e com o
mundo, como o fez no Alto Minho e em Nova Iorque, no encontro sobre a SIDA.
MAL COMUM DA SEMANA
As medidas de austeridade anunciadas por Pina Moura podem ser qualificadas conforme a metáfora do pirómano-bombeiro. Quem semeou os ventos do laxismo despesista e das mordomias, em vez de recolher as justas tempestades, assume agora a função de obrigar o justo a pagar pelo pecador. Curiosamente, as principais medidas anunciadas, e qualificadas como de excepção, porque são mera exigência da boa gestão, constituem uma confissão sobre o anterior regafobe. Os governantes nunca foram donos dos dinheiros públicos, são meros depositários de um alheio que a todos pertence. A questão financeira continua a ser uma questão que tem a ver com a moral social.