A Intelligentzia ao poder!

 

 

Seguindo a clássica observação de Miguel Unamuno, segundo a qual a essência do homem ocidental é “ser do contra”, apetece continuar, nesta quinzenal crónica, a estragar a paisagem do pensamento único político-cultural do politically correct, promovido pelos ex-intelectuais orgânicos e pelos ex-bacilos revolucionários da nossa praça, esses que continuam a fazer da história uma espécie de continuação da guerra civil por outros meios.

Quero apenas recordar que, há vinte cinco anos, Portugal era dominado por um Ansuman Mané colectivo que não queria aceitar os resultados eleitorais do 25 de Abril de 1975 nem admitir as deliberações de uma Assembleia Constituinte, procurando manter uma violência militar que se recobria ideologicamente com cores revolucionárias.

Mais: vivíamos em plena guerra fria e pululavam políticos cunhalistas que eram agentes de Moscovo e serviçais do KGB. Como também não eram raros os que beneficiavam de apoios directos da CIA, que preferia Soares, e de outros serviços secretos ocidentais, que admitiam Sá Carneiro e Freitas do Amaral. Não faltavam sequer os idiotas úteis que iam servindo um ou outro lado da barricada (v.g. o MRPP e Otelo). Havia, evidentemente, um PCP que, então, se maravilhava com uma URSS, considerada como o sol da terra. E existia o outro lado da barricada, o grande partido da sociologia anticomunista, onde alinhavam movimentos como o PS, o PPD e o CDS, bem como as forças vivas da Igreja Católica e das associações sócio-profissionais anticolectivistas, nomeadamente a CAP e a CIP.

Felizmente, em 26 de Novembro, ganhou o lado comprometido com os modelos da Europa Ocidental, da Aliança Atlântica, da democracia pluralista e da sociedade aberta, graças à coragem de muitos militares dispostos a dar a palavra ao povo, onde não podem silenciar-se os Pires Veloso, os Melo Antunes, os Eanes e os Jaime Neves. Mais: entre os vencedores, também venceu o bom senso e a tolerância dos que construíram um regime onde os próprios vencidos puderam participar na plenitude dos respectivos direitos cívicos, sem que se tenham lançado as sementes da vindicta. Isto é, ganhámos todos, porque matámos menos e pudemos continuar a dizer que não é o processo histórico que faz o homem, mas o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.

Paradoxalmente, vinte e cinco anos depois, face ao crescente indiferentismo de muitos cidadãos que então eram activos, a história do 25 de Novembro começa a ser uma estória narrada pela casta dos ex-comunistas, quando eu pensava que o presidente Sampaio queria assumir-se como um herdeiro de Melo Antunes e que Guterres não se esquecia de ter sido um íntimo colaborador de Francisco Salgado Zenha, depois de ter sido assistente do Professor Sales Luís e monitor nuns cursos de formação apologética da juventude, promovidos pela assistência nacional da Mocidade Portuguesa, como facilmente seria provado nos inevitáveis processos estalinistas que os sovietistas promoveriam em nome da legalidade revolucionária, se se tivessem definitivizado no poder.

Assim se demonstra como Gramsci formou, de forma directa ou indirecta, a intelligentzia dominante em Portugal. Especialmente quando sugeriu aos revolucionários comunistas que não se preocupassem apenas com a conquista do aparelho de poder estadual, mas, sobretudo, com a ocupação daquilo que qualificava como sociedade civil, isto é, com os mecanismos da hegemonia ideológica, nomeadamente com o chamado poder cultural, das universidades aos jornais, do teatro ao cinema. Aliás, mesmo antes de 1974, apesar do autoritarismo do ancien régime a nível dos aparelhos repressivos do Estado, já os mecanismos ideológicos dos aparelhos hegemónicos estavam qualitativamente dominados por aqueles que, depois, iriam comandar os aparelhos de poder do PREC.

A estupidificação situacionista do Estado Novo, com os seus sargentos da censura e com as legiões de inquisitoriais denunciantes, acabou por gerar uma intelligentzia de esquerda, que, como o clero antes de 1789, se assumiu como uma ordem monástica ou como uma seita possuindo a sua própria moral. Como uma colectividade de ideologia e não profissional ou económica, de carácter interclassista, à qual pertenciam muitas pessoas que não eram intelectuais, ao mesmo tempo que outros tantos sábios e letrados, por não comungarem da ideologia, dela não faziam parte.

Por isso, os membros da intelligentzia grupusculizaram-se numa quase classe social, constituindo uma espécie de estamento que se assumiu como a vanguarda da sociedade e que tratou de atribuir a si mesmo a missão de educar os não iluminados do vulgo.

Infelizmente, esta casta, comprimida durante os primeiros anos da democracia pós-revolucionária, ressurgiu por causa da desertificação do espaço da direita democrática e liberal durante o cavaquismo, sendo particularmente fomentada a partir do Palácio de Belém, em nome das juvenis memórias dos presidentes Soares e Sampaio. Porque, no nosso sistema político, o Presidente da República, entidade sem poder, mas com muita autoridade, precisa de ser assessorado, nas suas funções sacerdotais, pelos clérigos da casta. Hoje, reforçada pelos subsídios estaduais do Ministério da Cultura e pelo partido dos directores-gerais do sistema, dito Bloco de Esquerda, está a aproveitar o cinzentismo da pré-campanha eleitoral das presidenciais para tornar Sampaio prisioneiro de Fernando Rosas, instrumentalizando o vazio de ideias que rodeia a campanha de Ferreira do Amaral, a fim de proclamar que a esquerda tem o monopólio da inteligência e da superioridade moral.

Como já não há URSS nem Ansuman Mané, julgo que a clarificação política de Portugal exige que a tal intelligentzia assuma a plenitude do poder, chamando-se ao governo Boaventura Sousa Santos, Vital Moreira, José Saramago, Pezarat Correia, António Hespanha e Maria de Lurdes Pintasilgo. O nosso melhor especialista em transicionologia, que podia ter sido adjunto de Mracelo Caetano se este conseguisse ser Adolfo Suárez, ou vice-presidente de um partido da democrazia cristiana à Vítor Romano Alves Simão Milícias Prodi, até não incomoda se continuar primeiro-ministro de Portugal.

 

Bem Comum da Semana

O 25 de Novembro de Bissau

Em Bissau começa a compreender-se que pode haver revoluções sem efusão de sangue, isto é, mudanças políticas assentes em actos eleitorais. A derrota de Ansuman Mané e o reconhecimento do direito à livre manifestação dos oposicionistas podem vir a demonstrar que há uma via africana para o sufrágio universal, o pluralismo e a sociedade aberta. Coragem, irmãos pluralistas da Guiné! Mantenham a vossa vontade de independência e reinventem a democracia de acordo com a vossas raízes culturais.

 

Mal Comum da Semana

O actual olhar europeu sobre África

Em cada cem homens, se há apenas 6 norte-americanos e 10 europeus, excluindo os outros 6 da ex-URSS, verificaremos que há apenas 11 africanos. Depois, como quatro quintos da riqueza mundial continuam a caber a apenas um sétimo da população mundial, e como África apenas representa cerca de 7% do comércio mundial, apenas acedemos aos acontecimentos de tal continente quando acontecem anormalidades sangrentas. Por isso, nada direi sobre as mortes misteriosas de Montepuez ou sobre o assassinato do jornalista Carlos Cardoso em Maputo. Moçambique merece mais do que más notícias.