CONTRA A POLÍTICA SEM ALMA
Por José Adelino Maltez
Os meus estimados leitores não estranharão que, nesta crónica quinzenal, volte a abordar uma temática aparentemente luso-africana, porque, parafraseando Pessoa, me apetece dizer que quanto mais à política a alma falta, mais a viagem pelo Atlântico a caminho do Sul me exalta. Assim, regressado de mais uma incursão pelo silenciado continente negro e deparando-me com imensas parangonas sobre a realização de mais um Congresso da Internacional Socialista em São Paulo, no Brasil, notei que, na imprensa portuguesa, nem uma só linha foi gasta com a realização do 52º Congresso da Internacional Liberal, em Dacar, no Senegal, onde o anfitrião foi o Presidente da República, Abdoulaye Wade.
Habituados a longos relatos da vida do Internacional Comunista e da Internacional Socialista, os portugueses também têm épicas notícias sobre a recente emergência da União Democrática Internacional, onde pontificam Durão Barroso e Aznar, mas falham quase todas as referências a uma organização criada a partir do Manifesto de Oxford de 1947.
Contudo, abundam os habituais discursos esquerdistas de luta contra o “neo-liberalismo”, os “milionários” e os “inimigos da classe trabalhadora”, nesta cada vez mais caquética “política à portuguesa”, que leva a nossa direita instalada a dizer-se social-democrata e a impor ao respectivo partido convergente declarações de fé antiliberais, em nome de uma qualquer compaixão fideísta.
Acontece que em Dacar se debateu a questão central das relações entre o Islão e Ocidente, tentando superar-se a tenaz doutrinária do “choque de civilizações” e apelando-se aos “homens de boa vontade”, para organizarem uma resistência intelectual contra os inimigos da “civilização do universal”. Ora, até foi o citado presidente muçulmano de civilização negro-africana que proclamou, em tal reunião, que “o liberalismo não é um liberalismo selvagem que conduz ao monopólio e ao imperialismo e nem sequer já é um liberalismo economicista, mas um liberalismo de rosto humano”, assente na tolerância, na igualdade de oportunidades e nas eleições livres e justas. E quem pudesse assistir ao ritmo inebriante do comício com que se encerrou o Congresso, talvez começasse a perceber que a rua não pertence apenas às clássicas direitas e esquerdas.
Porque em África, onde foram membros da Internacional Socialista, estadistas como Senghor, no Senegal, Bourguiba, na Tunísia, Nimeyri, no Sudão, e Mugawe, no Zimbabwe, tem que reconhecer-se o falhanço generalizado do estatismo e notar-se um difuso esquema sistémico que vive segundo o ritmo de uma espécie de “informel doctrinal”, onde as chamadas eleições tanto são “um alibi para o poder como uma armadilha para a oposição”, para continuar a citar o discurso do presidente Wade.
Foi, na verdade, estimulante ser um dos dois primeiros portugueses que, com crença liberal, participou na reunião desse clube mundial, que tanto não é marcado pelos preconceitos do Maio de 1968, que afectam a nossa esquerda politicamente correcta, como não se dilui nesses complexos da direita situacionista, sempre rigorosamente seguidores do modelo da “rolha boiante” nas ondas da moda. Porque, se os primeiros cedem ao rolo compressor do pensamento único, já os segundos não conseguem criticar doutrinariamente o fatalismo negocista do capitalismo selvagem nem o calculismo da direita dos interesses. Como se os negócios não tivessem regras e o mercado não tivesse que ser inserido nos quadros de um liberalismo ético.
Não faltam sequer alguns intelectuais do provincianismo lusitano que, assumindo a arrogância do “radical-chic”, transformam a palavra liberal naquela cereja com que tentam apagar o respectivo passado de marxismo-leninismo, às vezes, maoísta, e através da qual pretendem adornar o bolo pouco fresco de um sincrético social-democrata ou socialista-democrático, partilhado por inúmeros quarentões e cinquentões, frustrados pela impotência revolucionária a que, agora, chamam utopia.
Julgo que o liberal, hoje, não é um desses mecanicistas subscritores de uma cartilha fechada de doutrinarismos, mas antes aquele que, movido por princípios e valores, assume uma atitude culturalmente enraizada nas tradições político-culturais das diversidades humanas, entendendo-as como um caminho para o universal, sempre em nome da criatividade individual e da consequente defesa do Estado de Direito, tanto a nível interno, como a nível internacional.
Ora, não foi por culpa dos liberais portugueses que nos tornámos no terceiro país mais corrupto da União Europeia, porque, nestes mais de três quartos de século que nos separam de 1926, sempre temos sido governados por socialismos de direita e de esquerda, apesar de muitos terem posto na gaveta as respectivas doutrinas.
Assim se compreende a razão que leva grande parte do situacionismo político-cultural que nos enreda a optar pelo nem carne nem peixe, da mesma maneira como os comunistas e os neo-marxistas envergonhados qualificam como neo-liberal o que não passa de um mero utilitarismo oportunista.
Não é também por acaso que os países mais enraizada e continuadamente liberais do mundo são precisamente aqueles onde menores são os índices de corrupção e onde não há registos de atentados aos direitos, liberdades e garantias. A liberdade, a democracia, a justiça e o Estado não são utopias, ilhas sem lugar, mas exigências situadas para o aqui e agora.
Quando, como entre nós, o Estado de Direito se confunde com a legalidade hipócrita, é inevitável que se assistam às presentes telenovelas judiciárias e a outros enredos com que, por trás do palco, nos vão manipulando através de métodos típicos do KGB e dos irmãos-inimigos que se fazem à imagem e semelhança uns dos outros. Porque entre um marxista vermelho e um marxista branco, venha o Diabo e escolha!
A liberdade, a democracia, a justiça e o Estado de Direito não podem captar-se pelas técnicas da legitimação pelo procedimento. Não são instrumentos, são fins. Não pertencem ao mundo da chicana e da demagogia, exigem que cada um cresça por dentro e esprema, gota a gota, a mentalidade totalitária e autoritária que todos guardamos dentro de nós, para invocarmos Tchekov. A “hard-left” e a mentalidade de “esquerda-menos” da pretensa “soft-right”, que marcam o nosso situacionismo, tanto precisam de um reformismo íntimo como de um efectivo banho de realidade.
Como simples descendente dos velhos liberais liberdadeiros, desde os que se assumiram no século XIX aos que vêm da mais antiga tradição da “lusitana antiga liberdade”, talvez possa notar que bem necessitávamos de uma política com “mais suplemento de alma”, para voltarmos a poder conjugar pátria e liberdade, sonho e competitividade, honra e inteligência. O rei continua a ir nu e só se passeia por entre o povo das televisões, evitando as vaias multitudinárias, porque a corte da mentira continua a alimentar-se da cobardia e a noticiar apenas o que convém à persistente lavagem ao cérebro.
Séculos de inquisição, de devorismo e de autoritarismo estadual criaram estes restos de sociedade pós-totalitária onde, com muitas encenações de compadres, comadres, tias e sobrinhos, persiste um subsistema de medo e uma dinâmica de oportunismo que marcam esta sucessão de “spoil systems”, onde os directórios partidários continuam a confundir os partidos gestores com o Estado e os encenados líderes partidários a serem os efectivos donos do poder, principalmente nos subterrâneos e nas faces invisíveis do mesmo.
Se calhar, a palavra resistência volta a ser urgente, para vencermos estas guerrilhas civis frias da “informel doctrinal” que continuam a pôr em perigo a independência nacional.