Corrupção,
plutocracia e falta de educação
Numa coluna quinzenal de intervenção opinativa sobre o campo da política, talvez valha a pena resistir à tentação de comentar o regresso à imaginativa cenografia dos criadores de factos políticos, típica da nova “velha direita”, dos comentadores oficiosos do oligopólio SIC/Lusomundo e do Professor Eduardo Prado Coelho, embarcando na análise da hipótese de ressurreição da AD-“saco de lacraus”, depois da morte tão anunciada de Durão Barroso, do vislumbre de um novo partido santanista-portista, ou das variadas candidaturas presidenciais de ex-ministros do comércio e turismo, que muito admiramos pessoalmente. Se viajássemos nestes meandros, poderíamos correr o risco de concluir por um elogio aos Professores Fernando Rosas e Francisco Louçã, bem como ao “partido dos directores-gerais do sistema”, dito Bloco de Esquerda, o que, para nós, seria tão desesperante quanto foi Cunhal a louvaminhar Paulo Portas ou o Professor Cavaco Silva a propôr uma frente oposicionista de empresários e jornalistas. Eis o sucedâneo dos três efes da regra da monarquia napolitana, onde se falava em “feste, frumento forca” e donde traduzimos em calão anti-salazarista o “fado, futebol e fátima”.
Glosemos antes as farpas do Presidente Sampaio sobre os políticos de má fama que nos desprestigiam e sobre a hipótese dos actuais partidos passarem a meros grupos de pressão. Deixemos as restantes questiúnculas para as manobras do ministro-“apparatchik” Coelho, a má-língua dos Passos Perdidos, os bonecos da contra-informação, as experiências laboratoriais do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, e as bicas das noites da oposição. Não queremos alimentar o decadentismo donde costumam emergir os rábulas exóticos em vésperas de epitáfio que, tecnocratas das convicções alheias, com discursos de fazer chorar as pedras da calçada, vão mudando de opinião conforme os directórios partidários que os podem “nomear” deputados nacionais ou europeus, e onde o crime da incoerência continua a compensar o pontapé pelas escadas acima.
Entremos no fundo que envolve a questão. Com efeito, os repúblicos, nome português que deveríamos dar aos galicanos “politologues” e ao ânglicos “political scientists”, assinalavam, até há poucos anos, que um sistema político, como máquina de decisões voltadas para o ambiente que o rodeia, nomeadamente para os subsistemas sociais, é uma caixa negra com buracos de entrada e de saída, onde as entradas, são normalmente de duas espécies: as exigências, ou reivindicações, por um lado, e os apoios, por outro. Esta perspectiva já foi revista e hoje reconhece-se que o principal input não está na diálectica entre a pateada e o aplauso, mas antes no indiferentismo e na apatia, no crescente número de cidadãos que não se sentem da oposição nem da situação e que passam para a terceira via do Zé Povinho do nosso Bordalo, fazendo um gesto feio ao sistema, mas por amor ao regime. Por isso é que, em Portugal, os regimes e os governos não costumam cair por causa da oposição, caem de pôdre...
Partindo deste pressuposto, pode dizer-se que, aqui e agora, não está em crise o regime do Estado de Direito e da democracia pluralista. Estão em crise aqueles que, no palco da política, o dizem servir, mas que apenas dele se servem. Porque não conseguem exercer a mobilização política, que é uma das principais funções dos partidos, nem geram confiança, o fundamento íntimo da democracia. Assim, o sistema político português, de tanta engenharia social mal amanhada, de tantos actores que não sabem ser autores, e de tanto recurso ao marketing e às agências de comunicação, não consegue mesmo comunicar com a sociedade nem com a verdadeira opinião pública da “vox populi”. Pior: com tanta falta de povo comum, eis que situacionistas e oposicionistas somados, pelo centralismo estadual e partidocrático, podem vir a constituir uma minoria sociológica relativamente aos que se abstém do quotidiano da cidadania, naquilo que poderemos qualificar como processo de evasão política, mais grave que o da evasão fiscal e que o da crise da administração da justiça. Basta assinalar quanto seriam desastrosos os resultados de um eventual referendo sobre a mudança da lei eleitoral...
Insista-se: a apatia vigente não significa, por enquanto, um processo de rejeição do regime, nem sequer um distanciamento face aos processos da democracia pluralista e representativa. Eu próprio tenho contribuído para a circunstância quando não exerço o sufrágio, através de uma pessoalíssima resistência não violenta que toca as raias da desobediência civil. E faço-o porque, querendo “votar por”, já não estou disposto a passar o cheque em branco do pretensamente útil “votar contra” os medos de um papão inexistente, até porque as tácticas de Pinto da Costa já começaram a perder campeonatos. Aliás, só me apetece voltar a votar quando puder escolher políticos que tenham causas e vivam como dizem pensar, quando puder “votar em nós”, contra a falta de autenticidade e pela moralização da política.
Considero que a crise denunciada pelo Presidente Sampaio é uma crise de luxo, resultante do natural amadurecimento do própria democracia e que gera inevitáveis, mas localizados, sinais de apodrecimento que devem ser politicamente lancetados por políticos e não por corporativos cardeais, catedráticos, militares, aventais, banqueiros ou procuradores-gerais da república.
O
problema reside no interior dos nervos do sistema político, que já não
assenta na geração heróica dos construtores da democracia
pós-revolucionária, tendo-se insinuado três fundamentais vícios, não
suficientemente denunciados: o primeiro tem a ver com a corrupção; o segundo,
com a plutocracia; o terceiro, com a falta de educação.
Os
políticos emergentes, com efeito, têm a tal má fama de que falava o
Presidente Sampaio porque, devendo, não querem, ou não lhes interessa, saber
como se insinua a corrupção em sentido amplo. Essa clássica degenerescência
do poder, susceptível de ser definida como todo o processo de venda do poder
enquanto mercadoria, que implica a existência de um vendedor e de um comprador,
onde o primeiro é o burocrata ou o actor político investido de poderes e o
segundo tende a ser uma bandocracia possuidora de dinheiro, enquanto nos
intervalos pululam os híbridos, os estratos corrompidos que pertencem ao mesmo
tempo à burocracia, incluindo a dos partidos, e à bandocracia, incluindo a da
evasão fiscal e, eventualmente, a do branqueamento de capitais, e tudo isto no
seio de um sistema, onde grande parte dos factores de poder até já nem são
nacionais. Cá nestes restos do reino cadaveroso, vamos fingindo que tal
degenerescência não existe, quando não é ficção a jagunceira existência
de altos figurantes corruptos a nomearem gente honesta e de altos figurantes
honestos rodeados de gente corrupta, todos lavando as mãos como Pilatos em nome
da hipócrita legalidade, como se o Estado de Direito não fosse um Estado de
Justiça.
Neste
sentido, só uma restrita minoria de condutas corruptivas se enquadra nos tipos
do Código Penal e cai na alçada do poder judicial, dado que a banda larga do
processo tem a ver com o financiamento indirecto e com a promoção dos partidos
e candidatos a lugares políticos. Um cancro que só pode ser superado pela
necessária revolução de mentalidades face aos métodos da plutocracia e
daquilo que Antero de Quental qualificava como a aliança banco-burocrático,
esse conúbio do feudalismo financeiro e do negocismo com o comunismo
burocrático e o subsistema de medo autoritário, dominantes na nossa dona
Administração Pública. Um problema que não resulta da crise dos valores, mas
no facto do dinheiro se ter transformado no principal dos valores, o que leva
alguns a proclamar que quando me falam de “inteligências”, puxo logo do meu
livro de cheques...
E
tudo se agrava pela flagrante falta de educação da chamada classe política,
onde abundam deputados, assessores, chefes administrativos e directores-gerais
de aviário, ou de jobs for the boys. Com efeito, somos dos poucos países da
União Europeia onde, apesar da existência de duas centenas de licenciaturas em
engenharia, não há uma única escola de quadros para políticos profissionais
nem para altos quadros da Administração Pública.
O
cúmulo de todas estas causas gera o devorista “estado dentro do Estado” a
que chegámos quanto à nossa “selecção nacional” da política, onde a
evidência de meia dúzia de excelentes praticantes da arte disfarça a não
existência de uma “espinha dorsal” competitiva entre a média dos gestores
da partidocracia, da burocracia e da vida empresarial. Só uma Realutopia, mista
de aventura e pragmatismo, nos pode ajudar a largar este desencanto
neomaquiavélico da Realpolitik.