Ao contrário do que alguns têm especulado, não nos parece que os recentes acontecimentos políticos do mês de Julho indiquem qualquer “viragem à esquerda” no guterrismo. Depois dos intensivos debates sobre o estado do Estado da nação, a moção de aliada censura e o desempenho da presidência portuguesa da União Europeia, a que acresceu a apressada aprovação de algumas emblemáticas leis, desde a conservadora reforma da segurança social à não plebiscitada descriminalização do consumo de drogas, apenas podemos concluir que se deu o reforço centrista do situacionismo. Tentemos explicar este nosso eventualmente excêntrico ponto de vista, com meras razões de senso comum.
Com efeito, só os utopistas do passado, isto é, os reciclados de extrema direita e de extrema esquerda, é que conseguem fazer uma distinção substancial e ontológica entre a direita e a esquerda, não percebendo que tanto uma como outra são meras posições relativas que têm como pressuposto uma democracia pluralista e competitiva. Servem para qualificar meros partidos ou grupos de partidos, isto é, partes em competição com outras partes, onde qualquer esquerda precisa sempre de uma direita, e vice-versa.
Aliás, a direita e a esquerda variam conforme as circunstâncias, não sendo raro que muitas esquerdas sejam antigas direitas, e que surjam governos de direita com programas de esquerda, bem como governos de esquerda com mentalidade de direita. Por isso, as analogias com modelos antidemocráticos são sempre falaciosas, dado que todas as situações autoritárias e totalitárias sempre disseram que estavam acima da direita e da esquerda. Basta recordar que, à semelhança da terminologia de Estaline, também o partido único do nosso regime derrubado em 1974, no seu último congresso, chegou a assumir a designação de centro, quando já não podia esconder que havia partes em Portugal. E qualquer historiador nunca encontrará o Dr. Salazar a dizer-se de direita, até porque enquanto ele foi activista num sistema democrático sempre se disse centrista, nomeadamente quando apoiou parlamentarmente o super-situacionista governo de António Maria da Silva, durante a I República.
Felizmente, no nosso regime político, desde que se abandonaram as tentações vanguardistas, assistiu-se a uma sucessão de governos de esquerda e de direita, com eleitores geneticamente de esquerda a votarem em partidos de direita e o inverso. Foi assim com a Aliança Democrática, apoiada pelos Reformadores. Voltou tal a acontecer com a vitória relativa do PS de Mário Soares, que deu origem ao Bloco Central. Repetiu-se a dose com Cavaco Silva, que chegou a roubar eleitorado ao próprio PCP. E da mesma maneira funcionou a ascensão ao poder de Guterres, com muita direita anticavaquista a dar-lhe direito a situar-se no extremo-centro.
Com efeito, as secções portuguesas do Partido Popular Europeu e da Internacional Socialista que, hoje, coincidem com os antigos partidos do Bloco Central, porque se enfrentam em idênticos terrenos valorativos e sociológicos, estão pouco interessadas no desenvolvimento de uma dialéctica ideológica de esquerda/ direita. Ambos os partidos sabem que todos os inquéritos axiológicos feitos ao eleitorado português demonstram a existência de um vale sociológico de cerca de oitenta por cento de cidadãos, com duas margens rígidas de dez por cento, à direita e à esquerda.
Neste sentido, qualquer PPD histórico que não tenha nascido para a política a partir das alcatifas ministeriais, quando admite uma aliança com o PP, intui que só o poderá fazer se, como compensação, mobilizar grupos políticos mais à esquerda que os ditos democratas-cristãos actualmente deputados do PS, como o teria feito Marcelo Rebelo de Sousa, com a defunta Alternativa Democrática, e como actuarão Durão Barroso ou Santana Lopes, se lhes for dada essa oportunidade. Também aqui não há muitas diferenças entre os sociais-democratas e os socialistas democráticos, uns olhando para o estilo dos “populares” castelhanos, outros para as tácticas de Blair. Porque qualquer líder que pretenda governar Portugal quer sempre uma maioria política baseada numa maioria sociológica e não uma respeitável margem de dez porcento.
Só os representantes institucionais e parlamentares dos dois bloquinhos dos dez por cento é que estão interessados numa distinção substancial entre a direita e a esquerda, baseada em âncoras doutrinaristas ou tribalistas. Pelo contrário, para o PSD e o PS convém uma distinção meramente táctica ou processual, baseada em tópicos mais ou menos flutuantes.
O discurso estratégico de Paulo Portas é, aliás, eloquente, quando, em coincidência com o “Movimento 10 de Junho”, de Jaime Nogueira Pinto, e os antigos militantes do “Nação Una”, com Manuel Monteiro e Paulo Teixeira Pinto, acirra a ideia eurocéptica e recorda as lutas contra a despenalização do aborto e a regionalização, propondo um referendo contra a descriminalização das drogas, para lançar um conglomerado de ideias ditas de direita, em torno da soberania nacional e dos “bons costumes” da hipocrisia de Frei Tomás, do olha para aquilo que ele prega, mas não para o que ele faz. De igual modo, os esquerdistas ontológicos, mas com a mesma boa educação dos filhos da grande burguesia instalada, aproveitam todas as ocasiões para serem os campeões do antiproibicionismo desvertebrador, do ecologismo piegas, do laicismo anticatólico e de certas memórias antinacionais.
Pelo contrário, tanto ao PS como ao PSD interessa um hibridismo que lhes permita a contínua navegação no mar sociológico dos oitenta por cento de centristas, onde só as pessoas com mais de vinte e cinco anos nasceram antes do 25 de Abril de 1974 e onde só as pessoas com mais de quarenta e cinco anos podiam votar nos tempos da velha senhora .
Qualquer presente ou futuro Primeiro Ministro de Portugal, para conquistar o novo eleitorado, nunca poderá ser “fascista” nem “antifascista”, assumindo-se como europeísta q.b. e patriota “malgré tout”. E tem de repetir, mesmo que seja por intuição, o “empirismo organizador” que levou à emergência do cabralismo, do fontismo e do salazarismo, onde nunca interessaram doutrinarismos, mas o “attrappe tout” da personalização do poder, em nome de moderados “amanhãs que cantam”.
É por isso que o Engenheiro Guterres, se precisa do antifascismo choramingas do Presidente Sampaio, cujas memórias de líder de RGA dão utopia de esquerda passadista ao situacionismo, não pode dispensar a cobertura da direita dos interesses e dos seguidores do diácono Remédios. Quanto ao PSD, basta que tenha teimosa paciência e perceba a necessidade de constituição de uma equipa capaz de gerar uma vontade de poder nova, diversa de certo reviralhismo cavaquista, que nem o próprio Cavaco Silva já subscreve. Porque Durão Barroso não será pior que Aznar, estando praticamente ao nível de Marcelo Rebelo de Sousa e de Santana Lopes. A questão não está tanto na batuta do maestro, quanto na relação da orquestra entre si, na maneira como é possível fazer a harmonização dos contrários, típica da arte política.
E há muitos bons presidentes de equipas esquecidos que apenas as prepararam para outros serem campeões nacionais, pelo que, futeboliticamente, apenas diremos que os laranjas não podem perder tanto tempo como o Sporting nem enredar-se no complexo Benfica. Façam é uma limpeza no balneário e nos corredores do estádio e tenham cuidado com os árbitros do “sistema”, principalmente com os criadores oligopolistas da opinião publicada e os financiadores das campanhas políticas, beneficiados com a manutenção do pântano, isto é, numa direita que convenha à esquerda e numa esquerda que sirva os respectivos interesses de direita.