Sobre o dia três de Outubro do ano de dois mil e três, os portugueses misturando os nomes de Diana, Lynce e Martins da Cruz, caíram no vício já denunciado por um tal Camilo Castelo Branco, cento e cinquenta anos antes: que vivemos numa “época essencialmente analisadora, onde o nosso público é zelosamente empenhado em julgar os grandes e pequenos acontecimentos, desde a revoltosa queda de uma dinastia de quinze séculos até à demissão imprevista de um cabo de polícia. Também julga os grandes e pequenos homens, desde os heróis de cem batalhas até bagageiros inofensivos: desde César a João Fernandes”.
Daqui a um ano, ou a cento e cinquenta anos, a história apenas registará que, nesse dia do cair da folha, ratificámos parlamentarmente a adesão dos países Leste à União Europeia e que a nossa democracia continuou a ser uma “paródia de democracia”, porque nem os ministros tinham assumido interiormente a cultura do Estado de Direito nem o povo quis saber do que se passava com o seu destino europeu. Falemos, portanto, com clareza.
Apesar de não ser especial simpatizante do estilo ministerial de Martins da Cruz, compreendo os dramas de uma jovem chamada Diana e a revolta de um pai que, por causa de uma lei mal feita, viu diminuído o respectivo estatuto de carreira, só pelo facto de aceitar ser requisitado em regime de comissão de serviço para as transitórias funções de ministro da república.
Só que vivemos num Estado de Direito e não em regime absolutista. Se em regime absolutista, aquilo que o ministro diz tem valor de lei e o próprio ministro não está sujeito à própria lei que edita, já em Estado de Direito um despacho ministerial não pode interpretar autenticamente uma lei e, muito menos, utilizar a analogia relativamente a normas extraordinárias. O Estado de Direito é chato e não admite o curto-circuito da cunha, até porque o nome “ministro” significa, pura e simplesmente, “servus ministerialis”, isto é, “escravo da função”: aquele que mais manda, mas também aquele que mais é mandado, porque tem que dar o exemplo a todos os outros da nossa dependência face às leis, incluindo as que são mal feitas.
Nesse dia três de Outubro, quando milhões de euros de cocaína davam à costa de Sines e se descobria uma frondoso arbusto de “cannabis” no jardim de uma universidade lisboeta, a ministra Manuela Ferreira Leite nunca poderia cair na tentação de lançar no mercado negro a droga recolhida no litoral alentejano, para resolver o justo fim da nossa não convergência com as palermices eurofinanceiras. Tal como os serviços do ministério da ciência e do ensino superior deveriam instruir adequadamente um processo, onde outro justo fim, mas sem cobertura legal, nunca poderia ser atingido através das malandrices da pega de cernelha.
Numa altura em que as boas intenções e a experiência do ministro Lynce eram necessárias à república dos portugueses, para que se cortasse a direito o complexo de sistemas fechados que enevoa o processo do ensino superior, vamos assistir ao reforço dos muitos “lóbis que não uivam”, mas que, nesse sector, continuam a mandar mais do que qualquer ministro.
O professor catedrático Lynce, porque era um universitário impoluto, um catedrático eminente e um entusiasta militante laranjinha, sempre com a simplicidade austera dos agrónomos, começava a ser incómodo para todos os que usurparam as palavras “catedrático”, “professor”, “universidade”, “autonomia universitária” e “cultura de avaliação” e talvez ameaçasse todos esses velhos corporativismos e que, a partir de agora, esfregam as mãos de contentes, porque mudamos de ministro para que se continuem suicidárias políticas inventadas pelos fantasmas de ex-ministros e ex-reitores da classe gerontocrática, sempre a brincarem à conspiração de avós e netos.