Educacionólogos,
avaliólogos e outros ornitólogos
De todos os
ministros do presente governo de Portugal, aquele com quem mais coincido, no
plano dos valores, do companheirismo de geração
e dos combates comuns, é, sem sombra de ironia, o cidadão Guilherme d’Oliveira
Martins. Assim, porque sei das crenças, da autenticidade, do imenso saber, da
paixão como professor e da hiper-informação do actual Ministro da Educação,
sinto-me no dever de proclamar, quase à maneira de Guerra Junqueiro, que o
nosso sistema educativo, caso se mantenha a actual entropia e o
consequente lixo não incinerado, corre o risco de só poder dar alguma luz
quando arder. E sempre convinha não continuar a dizer que, em Portugal, o
importante não é ser ministro, é tê-lo sido...
E isto por uma
óbvia razão: as adiposidades do comunismo burocrático da 5 de Outubro,
esse inferno dos aparelhos inventados para o cumprimento das boas intenções
dos nossos educacionólogos, avaliólogos e outros ornitólogos,
continua a pautar-se por um dicionário autista, incapaz de se relacionar com o
concreto das circunstâncias da vida e de servir os valores a que diz obedecer.
A
culpa, apesar de não ter que morrer solteira, também não está, por inteiro,
no Professor Veiga Simão, no Engenheiro Roberto Carneiro, no Doutor Marçal
Grilo e em toda essa honrosa nomenclatura de reformadores, tão
magnificamente sustentada pela excelência dos construtivistas vindos da
Universidade de Lourenço Marques e que, como lobby reitoral, se
fundacionaram misticamente, confundindo o público com o privado, para
destruírem o privado que com ele não privatiza, ou que a ele não vai recorrer
depois de, também por ele, ser entrameado, de acordo com a regra do pirómano
bombeiro.
Metaforizando,
direi que a culpa está no educacionês
que nos impede de dizer que o rei vai nu, e que, fábula por fábula, continua a
a esgrimir os argumentos do velho, do rapaz e do burro, de
tal maneira que o dito burro acaba por ser menos burro que todos os que lhe
chamam burro, enquanto os velhos continuam a pensar que são rapazes e o
rapazes, apesar da idade, são, talvez, mais velhos que os velhos, não sabendo
que só é novo aquilo que se esqueceu e que o antigo é o moderno, de que o
moderno há-de ser antigo, para vieirizarmos um pouco, nestes tempos em que os
modernistas já são todos pós-modernos e os reaccionários pensam que são
reformadores.
Com efeito, o sistema
educativo insiste em laborar no preconceito que, já nos anos setenta, foi
denunciado pelo meu querido Professor Guilherme Braga da Cruz: menospreza as
virtudes da verdadeira sabedoria científica, esse espaço de conhecimento
situado entre a metafísica e o bem senso, e, por isso, usa e abusa da
hiper-departamentalização educativa, gerando inúmeros especialistas em casca
de árvores que não conseguem compreender a floresta, com o consequente vazio
de cultura geral e de senso comum.
Se já
tínhamos os educacionólogos, esses especialistas no cartesiano
despedaçar da boneca, mas que, de análise em análise, nem sequer a essência
do todo conseguem intuir, eis que, mais recentemente, inventámos os avaliólogos,
abstractas entidades do mesmo género avícola, herdeiras do nosso ancestral
inquisitorialismo, que, utilizando a técnica do pombalismo, do miguelismo, do
devorismo, do positivismo, dos salazarentos e do gonçalvismo, por enquanto
ainda sem cacete, se entretêm a escrever vários capítulos de uma nova
Dedução Cronológica e Analítica, onde, apesar de não ousarem o
estabelecimento de um novo livro único, invocam sacrossantos paradigmas
ultrapassados, não percebendo que só é moda aquilo que passa de moda e não
sabendo o que são revoluções científicas, conforme o manifesto do Thomas
Kuhn. Porque os nomes nunca conseguiram fazer a coisa, eis que o hábito de
reformador, mesmo que usado por um revolucionário arrependido, não gera, por
si mesmo, o monge criador da ratio
studiorum.
E isto, para
não falarmos nas fundacionais nomeações das comissões avaliadoras, onde,
desrespeitando-se frontalmente o princípio da imparcialidade, se arregimentam
os filiados duma facção científica dominante em certas escolas, para, nas
conclusões do relatório, se elogiarem mutuamente os seguidores da regra
carneiral e se perseguirem os concorrentes, eliminando o direito à diferença e
a liberdade de ensinar e aprender fora da cartilha do educationally correct
dos novos e iluminados candidatos a saneadores. Porque o segredo de seita ainda
não é segredo de Estado, talvez não seja inconveniente perguntar se vale a
pena sermos dominados pela geração dos doctorats de troisième cycle do
Mai 68 e das passagens administrativas, que, muito carrilhamente, nos
querem transformar no caixote de lixo das revoluções perdidas. Se, ao menos,
lessem o que vem dizendo Luc Ferry...
Liberalmente,
direi que, com estes especialistas em sucessivas derrotas, o sistema não merece
os custos que actualmente são suportados pelos contribuintes. Aliás, os educacionólogos
criaram não sei quantos ministérios dentro do mesmo ministério, com uma
série de círculos concêntricos de lobbies, onde, num piso, estãos os
fiéis dos ministros reformadores já reformados; noutro, os devotos de certas
maçonarias; mais adiante, os seguidores de algumas sacristias; depois, os
comunistas, os laranjinhas, os cor de rosa e eventualmente um ou outro CDS, não
excluindo os avençados e os quadros técnicos com escolares médias de
suficiente-menos, convidados para professores das escolas que podem vasculhar.
Por seu lado,
os avaliólogos, também marcados pela mesma tentação burocrática,
estão a gerar uma espécie de contra-ministério só aparentemente colaborador
do actual, onde abundam jubilados, reitores aposentados e políticos que querem
ser pares vitalícios, os quais, depois de falharem como reformadores e gestores
de universidades privadas, são agora chamados para, muito retroactivamente, mas
sem feedback, avaliarem o
que, antes, deformaram.
Todos estão
irmanados pela legitimidade da simples nomeação política centralista,
assumindo a mera dimensão decretina. E muito positivisticamente,
cumprindo o plano da revolution d’en haut, vão nomeando,
de cima para baixo, os seus hierarcas, cobrindo gnosticamente, com o manto
diáfano da ciência e da tecnoburrocracia (sic), meras decisões políticas e
até de vindictas carreirísticas, mas sem que assumam a responsabilidade
política dos que são eleitos. E tudo vão colorindo com o sofisma provinciano
e terceiromundista dos convites a peritos ditos internacionais que nos países donde são provenientes ninguém conhece.
Essa fauna
ornitológica, além de cara e inútil, começa a ameaçar a essência da
chamada autonomia das escolas e a experiência viva dos professores que
professam e ainda contactam directamente com a vida.
Se não
invertermos o rumo do neomarcelismo que confunde terceira via com terceira
idade e persiste em semear fantasmas, teias de aranha e gerontocracia na 5
de Outubro; se continuarmos a ter saudades do ministro Sottomayor Cardia e pena
que António Barreto não se tenha guterrizado, só poderá haver uma saída
para a autofagia: extinguir o actual Ministério da Educação. Para que o
sistema educativo continue aberto para baixo e para cima, para a realidade e
para os valores; para que o ministério cumpra a sua paixão; e para que
o cidadão Guilherme d’Oliveira Martins possa vencer a frustração de
António Sérgio, basta que, com o conhecimento modesto de coisas supremas, se
abram as janelas da descentralização e da devolução de poderes, mesmo que
haja correntes de ar e algumas constipações. Como diria Frei Bartolomeu dos
Mártires em Trento: excelentíssimos e reverendíssimos reformadores,
precisais de uma excelentíssima e reverendísisma reforma!